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CAPÍTULO 4: O CONTEXTO DE TRABALHO, SIGNIFICADO, POSSIBILIDADES

4.2 A construção das relações sociais e dinâmica do cotidiano de trabalho no CAPS

4.2.9 Sobre a Rede

Sobre o funcionamento da rede de serviços existentes para o atendimento a usuários de álcool e outras drogas, a maior parte dos profissionais descreveu o fluxo da rede de atendimento psicossocial. Além disso, constatou-se como vem sendo apresentado nos diversos estudos a imensa dificuldade de se estabelecer um atendimento integral aos (às) usuários (as). Primeiro, a falta de intersetorialidade entre as políticas sociais, que ocorre tanto pela falta de conhecimento de como funciona e o objetivo dos serviços, como também a falta de uma comunicação entre eles. Em segundo ponto, existe um preconceito quando se trata de usuários de substâncias psicoativas, o que muitas vezes limita a inserção destes apenas aos serviços especializados, fator que reforça a não garantia de direitos estabelecidos no SUS e das premissas que orientam a política de saúde mental, conforme demonstra o depoimento da profissional a seguir.

[...] tem as UPA, a SAMU, O CAPS AD, ambulatório em saúde mental, posto de saúde. Sendo que o ambulatório não faz mais o serviço; o posto de saúde os usuários não procuram mais porque não vai ter sigilo, desde a gerência até o agente de saúde (MARGARET, 2016).

O acesso ao serviço de atenção básica é direito de todo e qualquer brasileiro, deste modo, proporcionar o tratamento é garantir medicamentos; a atenção comunitária, que forma o conjunto comunidade, família e usuário (a) no território; propiciar a educação em saúde; promoção e prevenção em saúde; consultas; encaminhamentos. E deve ser proporcionada preservando-se o sigilo dos casos. Além disso, a atuação da Atenção Básica é essencial no campo da saúde mental; as limitações são visíveis, mas a articulação é necessária, pois “[...] oferece um conjunto integrado de ações de saúde, no nível individual e coletivo, incluindo a promoção, proteção e reabilitação da saúde, na prevenção de agravos, o diagnóstico e o tratamento dos problemas de saúde significativos na população (BRASIL, 2006 apud SILVA et al., 2012, p. 147).

Com as explanações a seguir podemos presumir que vem ocorrendo a falta de integralidade nas ações e serviços de saúde; o indivíduo passa a ser visto como um ser fragmentado, e em que nem mesmo as condições de saúde-doença são percebidas e tratadas, justamente porque o que importa nas avaliações é a sua condição de usuário (a) de SPA. Para a entrevistada “Barbie, 2016” a falta do cuidado territorializado desemboca no agravamento de questões que poderiam ser resolvidas/tratadas ainda no território, sem a necessidade de um encaminhamento futuro para os serviços especializados.

[...] não entende que o cuidado pode ser feito no dia a dia no território, o que impossibilita um agente de saúde fazer um acompanhamento a domicílio? E na própria unidade básica, o enfermeiro. O médico da família está acompanhando essas situações? Então, percebemos que não funciona porque eles direcionam apenas para um serviço ou urgência, porque a pessoa às vezes está justamente sobre efeito e acaba da urgência para o CAPS AD, e às vezes essa pessoa não consegue ter esse acompanhamento em outro local. A questão AD é ampla, são vários fatores que influenciam na vida da pessoa (BARBIE, 2016).

Por isso, é preciso reforçar que a integralidade não tem como ser realizada jamais em um único serviço, “[...] Aliás, [...] integralidade é objetivo de rede [...]” (CECILIO, s/a, p.6). E o próprio SUS preceitua que a integralidade é um dos elementos norteador das ações.

Os entrevistados esclarecem a estrutura da rede que é proposta pela política, de acordo com a complexidade que cada serviço está apto para atender:

[...] os casos leves são tratados na unidade básica de saúde, que tem o clínico geral de lá tratando os casos leves de transtorno mental quanto de dependência química;

os casos de moderado a grave que são tratados nos ambulatórios, cada unidade de saúde, cada região das unidades de saúde tem um ambulatório de saúde mental. [...] a diferença do ambulatório para o CAPS é que não tem equipe multidisciplinar, psiquiatra e o psicólogo, então a pessoa vai para o ambulatório referência, daí vai ser acompanhada por um psiquiatra e um psicólogo são os casos moderados tanto de transtorno mental, o controle dependência química e os casos graves são tratados no CAPS [...] (CLOVER, 2016).

Porém, infelizmente podemos constatar a fragilidade desses serviços, por diversas questões, entre as quais se destacam nos depoimentos:

Aquilo que eu falei em relação ao SUS: é um sistema filosoficamente perfeito, mas sucateado, [...] a gente sofre abalos profundos com essa questão de descaso com a saúde, uma rede fragilizada, uma rede que não está integralizada, uma rede que precisa ser ampliada e, [...] uma rede que estar com risco de deixar de ser pública para ser terceirizada, que é outro aspecto que a gente tá vivendo [...] Não se acha os meios adequados para lutar contra isso porque não depende de um grupo e não depende de uma só pessoa, de uma categoria, depende da população mesmo [...] (PENÉLOPE, 2016).

Funciona de forma assim se você chegar a uma unidade básica de saúde ou a um CAPS mental e é um paciente mental que faça o uso de maconha, daí já mandam para o CAPS AD. Em conversa com uma funcionária de UPA, chegou na urgência um paciente com dor abdominal, mas era mental, [...] então a funcionaria informou que não poderia atender lá, teria que mandar para uma unidade psiquiátrica; foi questionado o porquê, já que ele estaria com dor abdominal. Chegam até a tratar e mandam para o CAPS AD. Hoje você vê [sic] pessoa mental que tem um problema sério de isolamento; [...] um CAPS AD que é um final de linha, a ação tem começar na unidade básica de saúde, e não é só pelos profissionais de saúde, são as demais instituições, em cada comunidade dessa que tem começar a discutir a questão da droga. Em um levantamento próprio nos prontuários que estão na ativa, [em] 90% dos casos o usuário começou a fazer uso entre 10 e 12 anos de idade, então tem que ser discutida mais à frente nas diversas instituições de saúde, igreja, escola, a diversas instituições, a família [...]. Vai esperar o paciente ficar detonado para chegar no CAPS, que é fim de linha, quando ele já está 20, 30 anos da vida dele, então se torna um paciente muito mais caro (LULUZINHA, 2016).

Oliveira (2011b) chama a atenção para a construção e consolidação de redes assistenciais descentralizadas, em observância com as desigualdades territoriais, ou seja, a possível produção de serviços que focalizem as demandas para a atenção integral de álcool e outras drogas, assim como outros setores sociais, como educação, Justiça, lazer, cultura. Nesse ponto, foram destacados pelos entrevistados,

[...] quanto às suas portarias, diretrizes e políticas em si, é uma política muito potente que realmente, se a gente conseguisse tornar real o que a política vem pautando a gente, teria serviços de excelência em álcool e drogas. Os nossos pontos de apoio: tem um consultório na rua, um dos dispositivos que a gente mais consegue ter mais diálogo e consegue ver resultados mais próximos; [...] a maior dificuldade em relação à rede é a urgência mental, que não tem compreendido qual o seu caráter, [...]; a saúde pública em si passa por um processo de precarização muito sistemático, histórico, a gente vê a perda de direitos sociais relacionados à saúde e os equipamentos e serviços cada vez mais precarizados, e as pessoas [que] aparecem para urgência, para a atenção básica não tem suporte necessário; eu acho que a rede

está muito fragilizada em relação ao número de profissionais, fragilizado em relação ao vínculo empregatício desses profissionais, a maioria contratado, resultado de oito anos sem concursos públicos na área de saúde, o último foi em 2008; a rede tá fragilizada pela baixa remuneração, pela desmotivação dos profissionais; [...] é um estigma há muito preconceito e as pessoas não querem trabalhar com esse povo (CAILLOU, 2016).

Torna-se fundamental potencializar as ações da atenção primária, e fortalecer o vínculo entre os CAPS e as UBS, principais portas de entrada dos (as) usuários (as) de SPA; discutir como tem sido a acessibilidade a esses equipamentos; desmistificar a proposta da redução de danos entre os profissionais e agentes de saúde, como uma estratégia que poderá contribuir para mapear na comunidade pontos de recorrente uso de substâncias psicoativas, e levar saúde para àquela população que não se sente abarcada nos espaços institucionais.