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Oração interreligiosa

No documento rogeriosantosbebber (páginas 110-114)

CAPÍTULO 2: REAÇÕES DA ORTODOXIA CATÓLICA

1. Ganhos Irrenunciáveis para a Teologia

1.3 Oração interreligiosa

Uma das questões colocadas por aqueles que estão envolvidos no diálogo interreligioso é sobre quais fundamentos teológicos se pode edificar com segurança a oração interreligiosa395 a fim de se evitar “o relativismo e o sincretismo doutrinal e prático”396. O

Os buscadores do diálogo. In: TEIXEIRA, Faustino; DIAS, Zwínglio Mota. Ecumenismo e Diálogo Inter-

Religioso: a arte do possível, p.159-188. No Brasil, no diálogo do catolicismo com o candomblé vale ressaltar a

experiência pioneira de inserção de L’Espinay no mundo da “alteridade de uma cultura diferente”. TEIXEIRA, Faustino. A teologia do pluralismo religioso na América Latina. In: VIGIL, José Maria; TOMITA Luiza E.; BARROS, Marcelo. Teologia Pluralista Libertadora Intercontinental, p. 30. Em nível mais amplo, sobre a dupla militância no relacionamento entre o catolicismo e o candomblé, ver: BERKENBROCK, Volney J. A

Experiência dos Orixás: Um estudo sobre a experiência religiosa no candomblé, p. 342-347. 393 SCHILLEBEECKX, Edward. História Humana: revelação de Deus, p. 215.

394 BOFF, Leonardo. Diálogo inter-religioso na nova fase da humanidade. REB, N. 183, p. 30.

395 Ratzinger faz uma diferenciação entre a oração multirrelgiosa, aquela em que os grupos oram em

assunto torna-se ainda mais pertinente a partir do momento em que o teólogo Ratzinger questionou sua seriedade e mesmo sua veracidade397, além de apresentar “as condições elementares, sem o cumprimento das quais essa forma de oração se converteria em negação da fé”398.

Jacques Dupuis, “um dos teólogos católicos contemporâneos mais citados entre os que investigam o mundo das outras religiões”399 não desconsiderou a complexidade que envolve o tema. Exatamente por isso é que convida que sejam levadas em conta “as situações diversas com referência às famílias religiosas envolvidas, as circunstâncias concretas, a escolha a ser feita de orações que possam ser sinceramente partilhadas entre os diversos participantes e assim por diante”400. Outra distinção que se faz necessária é entre a questão de princípio e de fato da oração comum.

A proposta de Dupuis aqui apresentada pauta-se nas “razões teológicas que recomendam em princípio a prática da oração comum entre os cristãos e os ‘outros’”401. Uma vez delimitada a intenção do teólogo belga, o propósito é apresentar o embasamento teológico por ele oferecido. Mais que comprovar a validade e a veracidade da oração interreligiosa, a argumentação de Dupuis soa como um convite ao louvor e à ação de graças pela autodoação de Deus à humanidade captada de um modo todo particular por cada tradição religiosa.

Não ha dúvida que há um movimento de convergência dos fiéis das diversas tradições para um diálogo num nível mais profundo402, para além das teologias, operado pelo Espírito de Deus. À teologia das religiões aberta compete, como bem intuiu Dupuis, acolher o que Deus tem falado pelo espírito desta época “que comporta uma brecha radical entre o modo de viver a religião tradicional e o contexto cultural que mudou”403 para alargar as

grupos ou pessoas pertencentes a diversas religiões. RATZINGER, Joseph. Fé, Verdade, Tolerância: O

cristianismo e as grandes religiões do mundo, p. 100-103.

396 DUPUIS, Jacques. O Cristianismo e as Religiões: do desencontro ao encontro, p. 296.

397 Dupuis faz alusão à possibilidade de descrença na oração inter-religiosa da parte de alguns, a partir da

tão repetida frase que permeou o antes e o depois da Jornada Mundial de Oração pela Paz em Assis em 1986: “Estivemos juntos em Assis para rezar, não estivemos em Assis para rezar juntos”. DUPUIS, Jacques. O

Cristianismo e as Religiões: do desencontro ao encontro, p. 296.

398 Essas condições seriam as seguintes: orar juntos só é possível quando há unanimidade sobre quem ou o

que é Deus; deve também haver um consenso sobre o que é digno de ser objeto de oração e o que pode ser o conteúdo da oração (a norma, para Ratzinger, seria o Pai Nosso) e, por fim, “a oração não deve questionar de modo algum a nossa inserção e entrega na proclamação de Cristo a todos os homens”. RATZINGER, Joseph.

Fé, Verdade, Tolerância: o cristianismo e as grandes religiões do mundo, p. 102-103. 399 KNITTER, Paul F. Introdução às Teologias das Religiões, p. 147.

400 DUPUIS, Jacques. O Cristianismo e as Religiões: do desencontro ao encontro, p. 298. 401 Ibidem.

402 TEIXEIRA, Faustino. O diálogo inter-religioso: gênese e significado. In: TEIXEIRA, Faustino; DIAS,

Zwínglio Mota. Ecumenismo e Diálogo Inter-Religioso: a arte do possível, p. 152-153.

fronteiras dialogais da Igreja por meio da sutileza das experiências espirituais compartilhadas entre os cristãos e os “outros”.

Se pode haver algum tipo de resistência quanto a oração interreligiosa, há, entretanto, por parte do ensinamento recente da Igreja indicações sobre a viabilidade desta prática espiritual. Uma palavra de peso vem da Conferência dos Bispos Católicos da Índia:

Uma terceira forma de diálogo atinge os níveis mais profundos da vida religiosa; consiste em partilhar a oração e a contemplação. O objetivo dessa oração comum é antes de tudo o culto corporativo do Deus de todos, o qual nos criou para fazer de nós uma grande família. Somos chamados a adorar a Deus não somente individualmente, mas também como comunidade. Assim como em sentido real e fundamental somos um com toda a humanidade, adorar a Deus juntamente com os outros não é apenas para nós um direito, mas um dever404.

Com uma autoridade maior por expressar o pensamento do episcopado de todo um continente, diz o documento da Federação das Conferências Episcopais da Ásia: “o diálogo interreligioso acontece em vários níveis e envolve tanto indivíduos como comunidade. [...] Ele leva a níveis mais profundos de comunhão no Espírito, sem detrimento da experiência religiosa específica de cada comunidade, mas aprofundando-a. Tal comunhão encontra expressão através da oração comum, da leitura das escrituras e dos Livros Sagrados”405.

Outro pronunciamento que merece destaque é do papa João Paulo II em 1987: “[O diálogo com os povos de outras religiões] é um complexo de atividades humanas, todas

fundamentadas no respeito e na estima [...]. Onde as circunstâncias permitirem, isso significará compartilhar experiências e visões espirituais. Esse compartilhar pode tomar a forma de nos unirmos como irmãos e irmãs para rezarmos a Deus de modo a salvaguardar a singularidade de cada tradição religiosa”406.

Quanto à fundamentação teológica para a oração interreligiosa, um dos fundamentos que pode lhe dar legitimidade é o mistério de unidade que une toda a família humana, como prevê a Nostra Aetate (NA 1). Dupuis, ao se referir ao discurso de João Paulo II no qual o papa justificava teologicamente o evento de Assis, identifica três elementos importantes que compõem este mistério ao qual se refere o Magistério da Igreja: a origem em Deus de todo o gênero humano pela criação, seu destino comum em Deus mediante o mistério da redenção e

404 COMISSÃO PARA O DIÁLOGO E O ECUMENISMO DA CONFERÊNCIA DOS BISPOS

CATÓLICOS DA ÍNDIA. Guidelines for an Inter-religious Dialogue. In: DUPUIS, Jacques. O Cristianismo e as

Religiões: do desencontro ao encontro.

405 FEDERAÇÃO DAS CONFERÊNCIAS EPISCOPAIS DA ÁSIA. O Que o Espírito Diz às Igrejas.

Documento de síntese da Federação das Conferências Episcopais da Ásia. SEDOC, v. 33, n. 281, p. 38-50.

406 BAKALAR, Nick; BALKIN, Richard. A Sabedoria de João Paulo II: a visão do Papa sobre os temas mais importantes para a humanidade, p. 211.

a ação universal do Espírito Santo em todas as pessoas, em todas as religiões e especialmente em toda oração verdadeira e sincera que parte do coração de qualquer pessoa, cristã ou de qualquer outra tradição religiosa407.

Conforme observou Dupuis408, há um elemento comum no ensinamento de João Paulo sobre o Espírito Santo: ele está presente e ativo também nos membros de outras tradições religiosas e é ele quem os move a adorar a Deus. Portanto, ainda que não dito explicitamente, parece possível concluir que, em princípio, quando os cristãos e os outros membros de outras tradições religiosas se reúnem para rezar tal reunião seria uma expressão de sua comunhão no Espírito de Deus409.

Outro elemento, segundo Dupuis, que pode fundamentar a oração como expressão de comunhão e de unidade entre os cristãos e os “outros” é a comum participação de todos na universalidade do Reino de Deus instaurado em Jesus Cristo. A simbólica do Reino não é outra coisa que a presença universal do mistério de salvação em Jesus Cristo operante e ativo na história e em toda a humanidade. Quando cristãos e os outros rezam juntos, o que fazem é expressar sua igual participação no mistério de salvação universal oferecida em Jesus Cristo. Ainda que difiram os sinais sacramentais que medeiam esse mistério, nem por isso a pertença é menos verdadeira410.

Por fim, outro elemento sobre o qual se pode sustentar teologicamente a oração interreligiosa, é o pluralismo religioso de princípio, que considera as religiões como dons de Deus aos povos. Dupuis lança a questão se não seria este o fundamento último e mais profundo para a legitimidade e até para a oportunidade da oração em comum entre as diversas tradições religiosas. Para o teólogo do pluralismo inclusivo, a oração em comum certamente consistiria no reconhecimento agradecido a Deus, por parte das diversas comunidades de fé, dos dons superabundantes que ele fez e continua a fazer à humanidade através da história411.

407 DUPUIS, Jacques. O Cristianismo e as Religiões: do desencontro ao encontro, p. 299. 408 Ibidem, p. 300.

409 Giovanni Cereti testemunha esta realidade ao falar da Quarta Conferência Mundial das Religiões pela

Paz ocorrido em Nairobi em 1984. Num dia de oração quando uma tradição religiosa rezava, após um momento de silêncio um dos participantes fez uma oração em voz alta. A partir daí alternaram-se momentos de silêncio, louvores, agradecimentos, invocações, bênçãos e cantos propostos por fieis de diversas religiões. E conclui Cereti: “As expressões de oração com as quis se dirigiam àquele Único coincidiam tanto, que cada qual confiava que este Único iria acolher aquelas invocações, mesmo se as diferentes tradições religiosas os ensinara a chamá- lo com nomes diferentes. Se nossas teologias nos dividem, dissera um dos participantes da Conferência, a experiência religiosa nos une. De fato, esta profunda experiência espiritual unira-os a todos muito mais do que os ensinamentos doutrinais das religiões ali representadas teriam provavelmente permitido”. CERETI, Giovanni. Experiência espiritual nas religiões não-cristãs. In: SECONDIN, Bruno; GOFFI, Tullo. Curso de

Espiritualidade: experiência – sistemática – projeções, p. 223.

410 DUPUIS, Jacques. O Cristianismo e as Religiões: do desencontro ao encontro, p. 300. 411 Ibidem, p. 302.

Concluindo, pode-se dizer que estes são, para a teologia aberta das religiões, os princípios que devem nortear a oração comum entre os cristãos e os membros das demais tradições religiosas. Dupuis dá um passo importante para além de Ratzinger412 quando, ao contrário do teólogo bávaro, mesmo pontuando uma série de singularidades que compõem o universo da oração interreligiosa, fundamenta sua possibilidade e oportunidade não só com as tradições religiosas históricas como também com as tradições místicas, teístas ou não413. Claro que para tanto há uma perspectiva teológica subjacente que dá às outras religiões um significado positivo no plano divino global de salvação para a humanidade. Sem esta perspectiva, não há sequer movimento interior para uma abordagem positiva da questão.

Como ressalta Dupuis, ainda que no passado não se tenha colocado em destaque os elementos que fundamentam a oração comum entre os cristãos e os outros, eles estão aí de modo inconteste. A prática da oração comum baseia-se numa abertura recíproca ao Espírito que move os corações à maior abertura a Deus e ao próximo. Não, pois, sem motivo, se diz que a oração interreligiosa é a alma do encontro dialogal entre as diversas tradições religiosas414.

No documento rogeriosantosbebber (páginas 110-114)