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Seção 4.1 – Os gregos: precursores da política e da democracia

4.1.2. A origem do conceito democracia

A palavra democracia, de origem grega, significa, pela etimologia, demos – povo, e

kratein – governar. Foi o historiador Heródoto quem utilizou o termo democracia pela pri-

meira vez no século 5 antes de Cristo (Outhwaite; Bottomore, 1996, p. 179).9

Há um entendimento unânime sobre as várias e possíveis “invenções” da democracia em períodos e espaços determinados da História e da Geografia do Ocidente: “como o fogo, a pintura ou a escrita, a democracia parece ser inventada mais de uma vez, em mais de um local [...] depende das condições favoráveis” (Dahl, 2001, p. 19). Grécia e Roma consolida- ram por séculos seus sistemas de governos, possibilitando e permitindo a participação de um significativo número de cidadãos. Com o desaparecimento das civilizações clássicas, a de- mocracia desaparece com elas e por um bom tempo ficará fora de cena no Ocidente.

A democracia grega era uma democracia direta em que os próprios cidadãos tomavam as decisões políticas na pólis. O modelo de democracia dos antigos foi denominado de de- mocracia pura, pois consistia em uma sociedade com um número pequeno de cidadãos, que se reunia e administrava o governo de forma direta. Já as democracias modernas nascem com a formação dos Estados nacionais e tendem a se configurar de maneira um tanto di- ferenciada. A complexidade da sociedade moderna exige uma outra forma de organização política, a da democracia indireta (também chamada de democracia representativa): “essa combinação de instituições políticas originou-se na Inglaterra, na Escandinávia, nos Países Baixos, na Suíça e em qualquer outro canto ao norte do mediterrâneo” (Dahl, 2001, p. 29). Já do ano 600 ao ano 1000 d.C., os vikings, na Noruega, faziam experiências com Assem- bléias locais, mas só os homens livres participavam: “abaixo dos homens livres estariam os escravos” (p. 29). Também na Inglaterra, ainda no período medieval, emerge o Parlamento Representativo das Assembléias, convocadas esporadicamente, sob a pressão de necessida- des, durante o reinado de Eduardo I, de 1272 a 1307.

9 O propósito deste capítulo não é aprofundar o debate sobre a origem da democracia clássica dos gregos e romanos (democracia antiga),

no entanto sugerimos alguns autores que tratam o tema: Anderson (1998), Arendt (1995),Hegel (1975), Minogue (1998), Kitto (1970), Jaeger (s.d), Chauí (1994), Aranha e Martins (1993), Barker (1978), Aquino et al (1988), Pinsky (1984) e Coulanges (s.d.). O desdobramento dos debates sobre o desenvolvimento do conceito de democracia, bem como os limites de seus pressupostos desde a democracia clássica ateniense até as vertentes contemporâneas, já foram muito bem expostos nos trabalho de Held (1987) e Dahl (2001), entre outros.

Bem mais tarde, nos séculos 15 e 16, a democracia reaparece gradativamente nas ci- dades do Norte da Itália no período renascentista:

Durante mais de dois séculos, essas repúblicas floresceram em uma série de cidades italianas. Uma boa parte dessas repúblicas, como Florença e Veneza, eram centros de extraordinária prosperida- de, refinado artesanato, arte e arquitetura soberba, desenho urbano incomparável, música e poesia magnífica, e a entusiástica redescoberta do mundo antigo da Grécia e de Roma (Dahl, 2001, p. 25).

É assim que, lenta e gradativamente, a democracia vai consolidando-se nas socieda- des avançadas da modernidade. Impulsionado pelas revoluções liberais, como a Revolução Gloriosa na Inglaterra (1688/89), a Revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789), o homem moderno passa a ver garantida, nas suas respectivas Constituições, a defe- sa dos direitos individuais (vida, liberdade e propriedade). Tem-se aí a consolidação da de- mocracia liberal, defendida, principalmente, por John Locke. É certo, porém, que tais direi- tos foram restritos a uma pequena parcela da população e que a desigualdade perdurou por muito tempo: na Inglaterra, em 1832, o direito de voto era para apenas 5% da população acima dos 20 anos de idade. O que está em jogo nas Constituições liberais e nos sistemas políticos modernos são única e exclusivamente os interesses da classe burguesa e o freamento da participação para o restante da população.

Nota-se que, mesmo que a democracia inventada pelos gregos nos séculos 5º e 4º a.C. fosse elitista e escravista (participação restrita), ela não deixou de significar um avanço em relação às tiranias teocráticas das civilizações orientais que a antecederam. Logo após esse período, a democracia desapareceu por séculos e, depois disso, foi só no final do século 18 e no século 19 que a idéia voltou a se tornar importante; e apenas no século 20 ela se viu devidamente afirmada na prática.10 É somente depois da Primeira Guerra Mundial que a desaprovação geral da democracia foi substituída pela aprovação generalizada (Outhwaite; Bottomore, 1996, p. 180).

É necessário ressaltar, ainda, que as civilizações greco-romanas eram, de certa forma, mediterrâneas, ou seja, dependiam desse mar para o intercâmbio comercial e cultural: “O transporte marítimo era o único meio viável para a troca de mercadorias a média e a longa

distância” (Anderson, 1998, p. 20). É inconcebível entender as civilizações antigas sem o mar, pois o mesmo era, segundo Anderson, “condutor do brilho duvidoso da Antiguidade” (Idem, p. 21).

Como vimos, a democracia foi uma criação da genialidade dos gregos, mais precisa- mente da pólis (cidade-Estado) de Atenas. O termo foi concebido a partir das profundas reformas sociais e políticas de Clístenes, no final do século 6º a.C. É importante ressaltar que o termo “democracia” não pode ser entendido sob a tradução cômoda e reducionista de “governo do povo”. Para os gregos, “democracia” representava o governo dos demos, que eram um tipo de distrito territorial composto por homens livres, capazes de tomar as decisões da “cidade” (pólis), isto é, uma forma direta de exercer a ação política, sem as formas repre- sentativas das democracias modernas.11

No chamado período arcaico (séculos. 8º a 6º a.C.), ocorreram grandes alterações com o desenvolvimento das atividades comerciais, o que determinou o aparecimento de diversas

pólis (cidades-Estados) na Grécia Antiga. A passagem da predominância do mundo rural da

aristocracia (donos de terras) para o mundo urbano vem acompanhada de outras mutações igualmente importantes, como o surgimento da escrita, da moeda, das leis escritas, e culmi- nou com o aparecimento de uma nova racionalidade, a Filosofia (logos), que deu autono- mia ao homem grego de pensar por si só. A origem do cosmos e do homem não será mais explicada a partir dos mitos e das divindades, mas a partir da própria razão do homem.

A conseqüência de tais alterações para a política se faz sentir de maneira diferente conforme o lugar. Em Atenas, porém, desenvolveram-se sobretudo as concepções de cidada- nia e de democracia, que viveram o seu momento de apogeu no século 5º a.C.12 Em oposi- ção à idéia aristocrática de poder, o cidadão poderia e deveria atuar na vida pública inde- pendentemente da origem familiar, classe ou função.13 Todos são iguais, tendo o mesmo direito à palavra e à participação no exercício do poder.

11 Conferir o artigo de Karnikowski (2000).

12 No século 5º havia talvez de uns 80 mil a 100 mil escravos em Atenas para 30 a 40 mil cidadãos (Wetermann, apud Anderson, 1998,

p. 176).

13 Hannah Arendt (1995, p. 41) apresenta uma diferença substancial entre a pólis e a família. Na pólis todos são iguais, na família há

diferenças: “A pólis diferenciava-se da família pelo fato de somente conhecer ‘iguais’, ao passo que a família era o centro da mais severa desigualdade”.

Na verdade, eram considerados cidadãos aproximadamen- te 10% da população ativa da cidade, sendo excluídos os estran- geiros, as mulheres e os escravos.14 O importante, no entanto, é que se desenvolveu uma nova concepção do poder, opondo a de- mocracia à aristocracia e o ideal do cidadão ao do guerreiro.15

O homem (cidadão) era detentor do saber – o ser da Filosofia tinha direito de filosofar, de participar da academia (culto à beleza física), do estudo e do poder (direito de comandar politicamente todos os interesses da pólis, por meio da sugestão/criação de leis e normas administrativas). A produção cultural, o pensamento filo- sófico, a academia, eram uma exclusividade dos varões, isto é, de uma minoria. Cidadão, segundo o teórico Coulanges (s/d),

é todo o homem que segue a religião da cidade, que honra os mesmos deuses da cidade, (...) o que tem o direito de aproximar-se dos altares e, podendo penetrar no recinto sagrado onde se reali- zam as assembléias, assiste às festas, acompanha as procissões, e participa dos panegíricos, participa dos banquetes sagrados e re- cebe sua parte das vítimas. Assim esse homem, no dia em que se inscreveu no registro dos cidadãos, jurou praticar o culto dos deu- ses da cidade e por eles combater (s/d, p. 135).

Os escravos e os bárbaros não podiam tomar parte dos am- bientes sagrados.

Segundo alguns teóricos, apenas 10% dos habitantes eram considerados cidadãos em Atenas. A fim de reduzir as despesas do Estado, o governo restringiu o direito de cidadania: somente os filhos de pai e mãe atenienses seriam considerados cidadãos.

14 Os dados sobre o número exato de habitantes (cidadãos, escravos e bárbaros) de cada cidade-Estado são divergentes entre os estudiosos.

Diz Kitto (1970, p. 110) que “só três poleis tinham mais de 20 mil cidadãos – Siracusa, Acragas (Agrimento), na Sicília, e Atenas”. Segundo Anderson (1998, p. 176), Atenas talvez tivesse uma população de 250 mil pessoas.

15 Segundo Aranha e Martins (1993, p. 191), apenas 10% dos atenienses eram considerados cidadãos (cerca de meio milhão de

habitantes), trezentos mil eram escravos e cinqüenta mil metecos (estrangeiros). % 5 & ) C Q I & 9 B 3 : ( " ) ( G& ' * 9 C ( * + " G (

As mulheres, os metecos (estrangeiros) e os escravos continuaram desprovidos de quais- quer direitos políticos (Aquino et al, 1988, p. 200).16 A mulher era considerada o “não- ser ”. Equiparada aos escravos, cuidava dos afazeres “domésticos”, servia como instru- mento de procriação, não participando, portanto, das decisões da pólis.17 O filho, de prefe- rência, deveria ser homem, sendo candidato em potencial a exercer a cidadania. O escravo servia de mão-de-obra para sustento e manutenção dos cidadãos (60 mil para 30 mil cida- dãos).18

Algumas características principais da pólis grega: reduzida extensão territorial; o cen- tro da vida política é o povo, ou o conjunto dos cidadãos; surge nas cidades-Estado gregas, pela primeira vez na História, o conceito e a prática da democracia ateniense (no tempo de Péricles); nasce, igualmente, o pensamento político e o Direito Constitucional; os cidadãos gozam intensamente de direitos de participação política. Em síntese, o grego é, por excelên- cia, o homem dado aos debates na Agora, aos discursos e às discussões políticas (Prélot, 1973, Livro 1, p. 32).19

16 “O cidadão era o homem cujos pais fossem ambos atenienses natos, sendo 20% da população, os outros 80% eram considerados

‘bárbaros ou comuns’ (Thomas, 1967, p. 62); “É verdade que havia ali uns 80.000 escravos de ambos os sexos, e apenas 40.000 cidadãos, o que daria dois escravos para cada cidadão” (Barker, 1978, p. 45). Ainda sobre a população de Atenas: “A população total de Atenas na época pode ser estimada de 300.000 a 400.000 habitantes. Este total inclui: i) cidadãos, suas esposas e seus filhos, totalizando mais de 160.000 pessoas; ii) os metecos, ou estrangeiros residentes, a quem os atenienses dispensavam tratamento generoso, e que chegavam a 45.000, contanto só os adultos, ou a mais de 90.000, incluindo as crianças; iii) os escravos, cujo número se estima em 80.000”.

17 A função essencial das mulheres, na Grécia, era apenas a procriação, além de serem equiparadas aos escravos: Aristóteles descreve que

mulheres e escravos eram mantidos fora da vista do público, eram os trabalhadores que “com o seu corpo, cuidavam das necessidades (físicas), da vida” (Política 1254b25). “As mulheres que, com seu corpo, garantem a sobrevivência física da espécie. Mulheres e escravos pertenciam à mesma categoria e eram mantidos fora das vistas alheias – não somente porque eram propriedade de outrem, mas porque a sua vida era “laboriosa”, dedicada a funções corporais” (Aristóteles, apud Arendt, 1995, p. 82-83).

18 A democracia ateniense, segundo Aquino et al (1988, p. 196), era uma democracia escravista, pois o trabalho escravo era a base da vida

econômica da sociedade, e os trabalhadores escravos, que consistiam senão a maioria, pelo menos uma parcela considerável da população da Ática, não possuíam quaisquer direitos civis ou políticos.

19 Péricles faz o elogio da democracia. Segundo o estadista, a democracia ateniense é a escola da Grécia e ressalta seu aspecto original:

“não imitamos a Lei dos nossos vizinhos” (Prélot, 1973, Livro 1, p. 56). Também Eurípedes e Isócrates deixaram seu testemunho em favor da democracia. Diz Isócrates: “Estabelecemos entre os outros a nossa Constituição” (p. 64).

Agora (Praça Pública) de Atenas20