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Origem e trajectória do povo cigano

Capítulo 2 – As Crianças Ciganas como minoria étnica e como grupo minoritário

1. Herança Social e Cultural

1.1. Origem e trajectória do povo cigano

A história do povo cigano é contada a partir do contacto com outras sociedades e os que a retrataram usaram, principalmente, acervos de arquivos oficiais, de locais por onde eles passaram. Sendo uma cultura agrafa, todas as referências, que lhe são feitas por estranhos, baseiam-se na tradição oral, trata-se pois de um povo sem história documentada. Só no século XV começa a História documentada do Povo cigano.

A origem do povo cigano ficou assim envolta de mistério e de fantasias, com muitas lendas e suposições escritas ao longo dos tempos, assim como as representações e os preconceitos que predominam, bem como uma imagem que dele temos, muito próxima do mito, estereótipo, elaborado a partir de lendas populares, do cinema, de reportagens de jornais.

De acordo com Casa-Nova (2009), são conhecidos alguns trabalhos no domínio das Ciências Sociais relacionados com a análise do grupo sócio-cultural cigano designadamente: o de Adolfo Carvalho (1892); Teófilo Braga (1879); Rocha Peixoto (1967), Francisco Alves (1925) e José Vasconcelos (1938), que revelam alguma curiosidade científica, mas não contribuíram para o conhecimento e compreensão dos processos de produção e reprodução cultural do grupo cigano. A autora considera o trabalho antropológico de Olímpio Nunes, intitulado o Povo Cigano, como o mais significativo, no qual é feita uma descrição pormenorizada da cultura cigana3.

Nunes (1981) descreve que as referências escritas ao povo cigano pouco de concreto nos dizem sobre a sua verdadeira origem e cita o médico e filósofo Henrique C. Agripa, num livro sobre a “Incerteza e abuso das Ciências” (publicado em Latim em 1530) que fala dos Ciganos assim: “os chamados egípcios, vindos duma região entre o Egipto e a Etiópia, descendentes de Caim filho de Noé, trazem ainda a marca da maldição de seu progenitor, levam uma vida de vagabundos por toda a parte, acampam fora dos povoados, nos campos e encruzilhadas, erguendo aí as suas tendas, fazem vida de salteadores, roubam, trocam, divertem as pessoas

3 Neste ponto socorremo-nos basicamente do estudo presente no livro de Olímpio Nunes, antes referenciado, bem como dos estudos da ACIMI, da historiadora Elisa Costa e de Liégeois.

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lendo a sina, fingindo adivinhar pela quiromancia, e com tais imposturas passam a vida a mendigar”.

Os registos da sua passagem, com referências ao seu modo de ser e estar, dos seus costumes “estranhos”, das suas profissões, etc., datam do século IX, de origem árabe e bizantina. A sua aparição, em Bagdad, terá sido por volta de 833, segundo historiadores árabes, onde revelaram extrema habilidade nas artes metalúrgicas e musical, qualidades que são atestadas, também, por documentos de fonte bizantina.

Nunes (1981) conta-nos também que em “filhos do vento” (J.L.Fevre), eles são os descendentes de um (fado- destino) que os impele a caminhar incessantemente numa vida errante, que parece preferirem a qualquer outra. Assim surgiram lendas ciganas, nascidas, umas do mundo da Bíblia, outras do Oriente de velhas religiões, tomando qualquer destes pontos como berço desta diáspora. Os textos do Génesis, frisando a maldição lançada sobre o irmão de Abel, evocam a origem dum povo nómada, lançado ao vento das desgraças.

Na realidade, segundo Liégeois (2001:29) só nos finais do século XVIII com base na análise linguística e com o contributo da antropologia física e da etnografia, se conseguiu concluir, que são oriundos da Índia. A sua língua – Romani ou Romanó – tem afinidades com o sânscrito “ parente de línguas vivas ainda faladas na Índia”. Sabe-se que daí emigraram, entre os séculos IX e XIV, em diversas vagas e que a linguística, permitiu através do estudo do vocabulário e das estruturas gramaticais dos dialectos ciganos de diferentes países, ter uma ideia do itinerário seguido. Costa (2001) refere também, que desde cedo a documentação denominava-os como egipcianos, egitianos ou egitanos e, de pronto, começaram a ser chamados ciganos e em Espanha de Gitanos.

De acordo com Costa (2001:16), em meados do século III, na sequência da conquista do Norte da Índia, parece terem ocorrido as primeiras migrações de grupos que estão na origem do povo chamado cigano. A autora refere ainda que só a partir do século XV, é que estes grupos começaram a convergir para a Europa, onde quase sempre afirmavam que sua terra de origem era o Pequeno Egipto, por isso foram denominados egípcios, egitano entre outros. Alguns grupos apresentaram-se como gregos e tsinganos e ficam conhecidos com grecianos na Espanha, ciganos em Portugal e Zingaros na Itália. Na Holanda a partir do século XVI utiliza-se a denominação heiden, que significa pagão. Na França também foram chamados de tsi – ganes, manouches, romaniche e boémiens.

Os seus costumes particulares, a língua desconhecida praticada, a sua “libertinagem” e até o aspecto físico, que lhe é característico, foram factores que contribuíram profundamente para a proliferação do grande número de hipóteses fantásticas e “maravilhosas” da sua origem, que a

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imaginação popular criou, suscitando, à população das regiões percorridas, sentimentos de curiosidade, mesclados de receio e desconfiança.

No espaço de um século, o povo cigano vai aparecer por toda a Europa. Sabe-se que o seu caráter misterioso, transformou a curiosidade inicial em hostilidade, devido a seus hábitos muito diferenciados. Eram considerados inimigos da Igreja que condenava as suas práticas sobrenaturais como a cartomancia e a leitura das mãos.

Nunes (1981) refere que, durante a Idade Média, eram variados os indivíduos que se entregavam á mendicidade e vida ociosa, muitos deles com o fim de explorar a caridade pública invocando propósitos religiosos, serviam-se de embustes para roubar e praticar uma série de atropelos à lei e à justiça social. Durante este período, formaram-se verdadeiras corporações de vadios, mendicantes, gentes de mal-andar, cuja presença era receada pelas gentes de bem. Sendo natural que muitos fossem confundidos com os ciganos. Adoptando-se uma atitude de reserva, de desconfiança, de marginalidade, que os afasta do convívio social, como indesejáveis e temidos. Estes grupos adoptavam a sua gíria ou linguajar próprio.

A partir do século XV, o mesmo autor refere que os ciganos passaram a fazer parte das “classes perigosas”. Por isso começaram as perseguições dos governantes, a que os ciganos não puderam escapar. As perseguições aos ciganos, por meio de leis, passam a exercer-se em vários países da Europa. São a consequência lógica de um género de vida incompatível com as regras de uma sociedade essencialmente proprietária.

Liégeois (2001:31) aponta que os motivos para imigrarem podiam ser os mais diversos, seja pela imposição de expulsão, a reclusão, o exílio, o degredo, perseguições (ou caçadas como sucedeu na Holanda nos séculos XVIII/XVIII), castigos corporais, ou a tentativa de forçar a sua sedentarização. O desejo de viajar a par de uma determinada organização social e económica (o comércio) pode implicar a procura de mercados diferenciados assim como dever-se a períodos conturbados vividos em certos países, podiam ser igualmente geradores da sua rejeição e consequente fuga.

A história do Povo cigano é preenchida por exemplos de políticas de exclusão. Percorrida e marcada por séculos de expulsão, perseguições, maus tratos, prisão, exílio, condenação à morte, evidenciando contornos de especificidades que na perspectiva de Liégeois (2001) reenviam para a existência de insustentáveis níveis de exclusão e reclusão a que este povo foi submetido ao longo dos tempos. O mesmo autor dá o exemplo da Alemanha, onde a partir de 1496, o Reichstag declarou os ciganos traidores aos países cristãos, espiões a soldo dos Turcos e portadores de peste. Acusados de ladroagem, feitiçaria e de raptos de crianças, viram- se obrigados a desaparecer.

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As populações, não tinham quaisquer referências que lhes permitissem situar os Ciganos e desconcertados pela sua originalidade, fosse o vestir, o falar, o modo de vida ou no tipo de contacto que se criou, construíram à volta dos Ciganos uma imagem sombria e repulsiva. Esta imagem misturava a feitiçaria, a ladroagem e a propagação de doenças. O Cigano, aos olhos de uma sociedade crédula e facilmente impressionável, ficou condenado para toda a vida (Liégeois 2001: 36)

Neste contexto, ninguém se preocupava em saber quem eram os Ciganos, embora claramente visados nos textos legais. A imagem estereotipada que lhes era associada era amplificada pelo legislador, que a utilizava como pretexto para o rigor da lei (Liégeois, 2001:37).

No século XX a Alemanha durante o regime nazi, foi a negação total dos Ciganos, levada à exterminação. Foram publicadas circulares, incluindo uma sobre a “luta contra o flagelo cigano”que referia as medidas efectuadas de combate aos Ciganos e as investigações biológico- raciais, a qual recomenda que se aborde a regulamentação da questão cigana do ponto de vista da raça” (Liégeois, 2001:37)

A política de exclusão irá transformar-se em política de reclusão, entendida como a integração, autoritária e geralmente violenta dos Ciganos na sociedade que os rodeia.

Ao longo dos anos e apesar de séculos de insistência, por exemplo na Espanha, a integração autoritária dos Ciganos revelou-se globalmente ineficaz por deficiente adaptação, por falta de realismo e de avaliação das dinâmicas sociais, designadamente da resistência dos Ciganos, e pela existência de sólidas dinâmicas sociais e culturais nos seus grupos (Liégeois, 2001).