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3. A TEORIA DA PERDA DE CHANCE

3.1 Origens históricas da perda de chance

Inicialmente cabe destacar que foi na Itália e na França que o instituto da perda de chance ganhou maior força e expressividade em demais países do mundo. Frise-se que foi no direito francês que essa teoria surgiu como a ideia da reparação da oportunidade/chance perdida.

3.1.1 Na França - Perte d´une chance

O desenvolvimento de uma teoria específica para os casos em que a vítima perdia uma possibilidade de conseguir uma vantagem esperada surgiu na França, tendo em vista que foi neste país que houve maior dedicação por parte da doutrina e da jurisprudência para sanar o óbice encontrado pela vítima para demonstrar o requisito de certeza exigido à época para quem buscava uma reparação civil por uma oportunidade séria e real perdida166.

Em 17 de julho de 1889, através de uma decisão proferida por Chambre des Requêtes de la Cour de Cassation Francesa, foi aceita a indenização pela perda de chance de uma pessoa ganhar uma ação na justiça por conta de um comportamento negligente que impediu que o processo tivesse sua normal tramitação167.

Foi ainda na França, que tivemos as primeiras decisões acerca do tema, eis que lá a doutrina influenciou a Corte de Cassação, a qual passou a conceder indenizações à oportunidade perdidas, contribuindo, dessa forma, para a evolução e aplicação da responsabilidade civil pela perda de chance168.

Neste diapasão, vale citar também Rafael Peteffi, o qual explica que:

A jurisprudência francesa, a partir de um acórdão pioneiro, no final do século XIX, pode ser considerada como a mais criativa em relação às possibilidades de utilização da teoria perda de chance. A propósito, os juristas franceses apresentam um leque de hipóteses bastante variado, como responsabilidade civil pela perda de uma chance de lograr êxito em um jogo de azar ou em uma competição esportiva, tal como ocorreu

166 SAVI, Sérgio - Responsabilidade civil pela perda de uma chance. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2012. ISBN 978-852-247-2307, p. 3.

167 FERREIRA, Durval - Dano da perda de chance. 2017, p. 16.

168 SAVI, Sérgio - Responsabilidade civil pela perda de uma chance. 2012, p. 3

com um criador que teve seus cavalos de corridas arrestados, ficando impedido de inscrevê-los em competiçõe169.

Observa-se que a utilização da teoria da perda de uma chance, era no sentido de que a indenização tinha de ser feita independentemente da certeza do resultado final, consistente na perda da oportunidade de obter uma vantagem ou de evitar um prejuízo170.

Conforme se vê dos argumentos acima expostos, percebemos que as hipóteses supramencionadas constituem casos clássicos de utilização da teoria da perda de chance como dano autônomo, isto é, o processo aleatório foi definitivamente interrompido pela conduta do réu171.

Todavia, segundo o autor Rafael Peteffi, cabe destacar que a doutrina francesa é fortemente contrária à aplicação da responsabilidade civil pela perda de chance nos casos em que a noção de causalidade parcial necessite ser utilizada, ou seja, quando o processo aleatório não foi interrompido pela conduta do réu, como ocorre, por exemplo, na maioria dos casos de perda de chance na seara médica172.

Assim, em razão dos estudos feitos naquele país, ao invés de se admitir a indenização pela perda da vantagem perdida, passou-se a doutrina francesa a defender a existência de um dano diverso do resultado final, qual seja: o da perda de chance173.

Frise-se que foi ainda na França que o conceito de perda de chance começou a ser aplicada na área médica. No acórdão da Cour d´Appel de Grenoble, em 1961, houve o julgamento de um caso em que aconteceu uma falha em um diagnóstico médico que não conseguiu diagnosticar a existência de uma fratura que já se encontrava totalmente evidenciada em uma radiografia anterior, e com isso, acabou agravando o estado de saúde do paciente uma vez que provavelmente esse agravamento não teria ocorrido se tivesse o médico feito uma avaliação mais especifica e cuidadosa da situação da vítima174.

Por mais que a jurisprudência francesa venha aceitando de forma ampla a aplicação desta teoria, faz-se necessário salientar que ela só será aplicada pelos tribunais franceses se além dos elementos essenciais da responsabilidade civil, haja ainda a presença da chance real e séria do fato lesivo.

De acordo com Rui Cardona, em sua obra sobre o assunto:

169 SILVA, Rafael Peteffi - Responsabilidade civil pela perda de uma chance: uma análise do direito comparado e brasileiro. 3. ed. São Paulo:Atlas, 2013. ISBN 978-85-224-7535-3, p. 116.

170 SAVI, Sérgio - Responsabilidade civil pela perda de uma chance. 2012, p. 4

171 SILVA, Rafael Peteffi - Responsabilidade civil pela perda de uma chance. 2013, p. 156.

172 SILVA, Rafael Peteffi - Responsabilidade civil pela perda de uma chance. 2013, p. 156.

173 SAVI, Sérgio - Responsabilidade civil pela perda de uma chance. 2012, p. 4

174 FERREIRA, Durval - Dano da perda de chance. 2017, p. 16.

Assim, para que a perda de chance seja indenizável, não basta a constatação da previa existência, numa qualquer medida, da oportunidade ou da possibilidade de obtenção de um evento favorável ou vantagem por parte do lesado, em face do circunstancialismo concretamente existente, que tenham sido destruídas em resultado do facto lesivo ocorrido. Para tal, é ainda necessário que a concretização da chance se apresente com um grau de probabilidade ou verossimilhança razoável e não com caráter meramente hipotético175.

É importante deixar claro que a oportunidade perdida deve ser muito mais que uma simples esperança, ou uma hipótese, sem qualquer chance séria e real, e o debate acerca dessa teoria é grande, sobretudo na França, país onde ela surgiu há mais de 100 anos.

3.1.2 Na Itália - Perdita di una chance

Na Itália ocorreu certa resistência para aplicação da teoria da responsabilidade civil pela perda de chance, porém, tais barreiras foram quebradas mediante as manifestações favoráveis dos juristas italianos Adriano de Cupis e Maurizio Bochiola176.

Assim como na França, a doutrina e jurisprudência italianas passaram a visualizar um dano independentemente do resultado final, consistente na perda da oportunidade de obter uma vantagem ou de evitar um prejuízo. Ocasião em que se admitiu o valor patrimonial da chance por si só considerada, desde que séria, e a delinear os pressupostos para a aplicação de tal teoria177.

Embora os primeiros estudos acerca do tema tenham se iniciado em 1940, com o professor da Università di Milano, Giovani Pacchioni em sua clássica obra “Diritto Civile Italiano” 178, certo é que foi o professor Adriano de Cupis o primeiro autor a reconhecer o valor patrimonial da chance de vitória por si só considerada, enquadrando-a em uma espécie de dano emergente, afastando, dessa forma, as objeções acerca da incerteza do dano, que influenciaram negativamente o trabalho de seu predecessor179.

Adriano de Cupis foi um dos autores mais importantes para a consolidação da teoria no Direito Italiano, na medida em que “reconheceu a existência de um dano autônomo consistente na chance perdida, inseriu a perda de chance no conceito de dano emergente e limitou a possibilidade de indenização à chances sérias e reais”180.

175 CARDONA, Rui Ferreira - Indemnização do interesse contratual positivo e a perda de chance (em especial na contratação pública). Coimbra: Coimbra, 2011. ISBN 978-972-32-1943-2, p. 115.

176 SAVI, Sérgio - Responsabilidade civil pela perda de uma chance. 2012, p. 4.

177 SAVI, Sérgio - Responsabilidade civil pela perda de uma chance. 2012, p. 4.

178 SAVI, Sérgio - Responsabilidade civil pela perda de uma chance. 2012, p. 7.

179 SAVI, Sérgio - Responsabilidade civil pela perda de uma chance. 2012, p. 11.

180 SAVI, Sérgio - Responsabilidade civil pela perda de uma chance. 2012, p. 12.

Malgrado a correta compreensão desta teoria tenha se iniciado com Adriano de Cupiz, certo é que foi somente em 1976, com o artigo Perdita di uma chance e certeza del dano, escrito por Mauricio Boccchiola, também professor da Università di Milano, é que se passou a ter uma visão mais adequada sobre a responsabilidade civil pela perda de chance181. Urge trazer a judiciosa lição deste professor italiano:

É inútil esperar para saber se haverá ou não um prejuízo, porque o seu concretizar-se não depende absolutamente de qualquer acontecimento futuro e incerto. A situação é definitiva e não poderá ser modificada. Um determinado fato interrompeu o curso normal dos eventos, que poderia dar origem a uma fonte de lucro, de tal modo que não é mais possível descobrir se a chance teria ou não se realizado182.

E continua o renomado jurista italiano:

Se fosse possível estabelecer com certeza de que a chance teria logrado êxito, ter-se-ia a prova do dano final e com isso, o ofensor serter-se-ia condenado ao pagamento do valor do prêmio perdido e dos benefícios que o cliente teria como a vitória na demanda judicial. Por outro lado, se fosse possível demonstrar que a chance não se concretizaria, teríamos a certeza da inexistência do dano final e, assim, o ofensor estaria liberado da obrigação de indenizar183.

Um dos julgamentos paradigmas, considerado como leading case da teoria da perda de chance, na Itália, é o que ocorreu em 04 de março do ano de 2004, julgado pela Corte di Cassazione, onde a esposa e um filho de uma pessoa que já havia falecido ajuizaram uma ação em face de um hospital pela morte desta pessoa alegando que a morte se deu em virtude de erro médico, pedido que fora negado pela Justiça pela falta de prova que a pessoa havia morrido em decorrência do erro médico, os recorrentes interpuseram recurso para a Cassazione ficando entendido, no julgamento, que houve um nexo de causalidade entre a conduta dos médicos que atenderam aquele paciente, e o dano (morte) ao falecido184.

Como se vê, a doutrina italiana e a jurisprudência, seguindo o pensamento francês, aprimorou a teoria da responsabilidade civil pela perda de chance, contribuindo para que outros ordenamentos pudessem se valer de tal instituto, como por exemplo, no Brasil e em Portugal, conforme se passará a demonstrar.

181 SAVI, Sérgio - Responsabilidade civil pela perda de uma chance. 2012, p. 12.

182 BOCCHIOLA, Maurizio apud SAVI, Sérgio - Responsabilidade civil pela perda de uma chance. 2012, p.

13.

183 BOCCHIOLA, Maurizio apud SAVI, Sérgio - Responsabilidade civil pela perda de uma chance. 2012, p.

13.

184 NETO, Renato Lovato. Perda De Chance No Direito Brasileiro E Português. Porto, 2014. em https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/17272/1/tese%20completa%20Renato%20Lovato%20Neto.pdf [em linha] Acesso em 02 de maio de 2019].