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PARTE I: O Procedimento Administrativo, enquanto meio de exercício da função

3. Legalidade vs Discricionariedade

3.1. Os caminhos rumo à juridicidade Subsídios para sua compreensão no

Como resulta do acima exposto, não faltam razões para que se comece hoje um caminho rumo à descoberta da nova forma do princípio da legalidade, pelo que neste tópico iremos reflectir em torno da ideia da juridicidade por forma a evidenciar a sua importância e descobrir se efectivamente representa uma alternativa viável ao princípio da legalidade.

A primeira grande referência quando se começa a falar da juridicidade, resulta do conteúdo do princípio do Estado democrático e de direito, que orienta e determina como padrão para a prática de qualquer acto público, o Direito. Fundamentalmente porque o Direito se apresenta como uma “arma” ao alcance de todo o cidadão e que busca o equilíbrio nas relações tendo em referência o princípio da justiça. As vinculações resultantes do Direito porque justas, e detentoras da “razão” servem e aplicam-se às

ideia de constitucionalização do direito, a ideia de métodos em que posso adequadamente resolver as colisões entre os princípios constitucionais. Ademais, a próprio enfraquecimento da lei e do Poder Legislativo, e autonomia do executivo em criar normas que apliquem directo a constituição. Acontece quando o princípio da juridicidade seja a norma a ser perseguida pela administração pública. O principio da juridicidade permite o controle seja da própria administração pública, seja do Poder Judiciário. O controle exercido pela administração pública é um controle de autotutela e que permite um resguardo maior da relação entre o Estado e o indivíduo. Ademais, esse controle tem como norma o texto constitucional, sendo possível a não aplicação das normas inconstitucionais pela administração pública. Já o controle exercido pelo Poder Judiciário pode ser fundamentado no princípio da juridicidade, em que permite uma maior abrangência de análise dos actos da administração pública”. Clarissa Filipe Cid, Princípio da legalidade administrativa: da legalidade a juridicidade. http://ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=14132

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pessoas e instituições nos mesmos termos, de tal sorte que Estado e cidadão, encontram-se igualmente vinculados às mesmas regras.

Claramente que no conteúdo do Direito como se apresentou acima, aparece em primeira linha a constituição153 que vincula directamente à Administração Pública,

resultando daí uma série de obrigações; vinculação a princípios jurídicos gerais e especiais, obediência ao procedimento administrativo que seja célere e eficaz, a ideia da protecção da expectativa, obediência ao direito costumeiro, algumas vezes ao direito natural, respeito pelos direitos fundamentais, etc. Portanto, o Direito é o critério o limite e o fundamento da actuação do Estado e de todas as instituições públicas.

Neste sentido, aposta-se nas normas jurídicas para garantir a construção e funcionamento do estado, por força disso estão afastadas quaisquer referências que não encontrem no direito um mínimo de correspondência e fundamento. Ou noutros termos,“a expressão Estado Democrático de Direito, visa restaurar a forma do direito

vinculando-o à necessidade de uma efectiva legitimação democrática das normas jurídicas154

O Professor José Joaquim Gomes Canotilho aponta três grandes pressupostos do princípio do Estado de Direito, (1) juridicidade; (2) constitucionalidade; (3) direitos fundamentais.155

A juridicidade espelha a ideia da organização a que o estado está sujeito, a ordenação o funcionamento que deve estar em conformidade com o Direito, “o direito como a medida de todas as coisas”. A constitucionalidade revela a força normativa da carta magna e sua influência no quotidiano, em todas as vertentes das relações sociais, e por fim, a perspectiva dos direitos fundamentais visa sobretudo impor alguns limites à actuação do estado e de todos os poderes constituídos.

153 Em relação ao ordenamento jurídico Angolano, a interpretação deste princípio é feita por Raul Araújo

e Elisa Rangel Nunes em, Constituição da República de Angola anotada tomo I, Luanda 2014 p 183-184. Ou ainda, Carlos Feijó, Coexistência normativa entre o Estado e as autoridades tradicionais na ordem jurídica plural Angolana, Almedina 2012, p 385-388.

154 Manoel Jorge e Silva Neto, Curso de Direito Constitucional 8ª, editora Saraiva 2014 p308.

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A inclusão dos direitos fundamentais como pressuposto do Estado democrático e de direito, justifica-se para evidenciar o lado garantístico do princípio, que vai para além da protecção individual, e cujo âmbito alastra-se para todas as acções e omissões do estado que os possam violar, entretanto, estas poderão quando verificados os requisitos para tal, dar origem à uma declaração de inconstitucionalidade.156

O princípio do Estado de direito, irradia todo o ordenamento jurídico, sendo que os restantes princípios encontram nele alguma fundamentação, como se fossem subprincípios seus, de tal sorte que a violação do princípio da separação de poderes pode ser fundamentada por referência ao princípio ora analisado, a falta de fundamentação de uma decisão igualmente, pode ser aferida em função do princípio do Estado de direito.

Como temos vindo a referir, o conceito de juridicidade permite enquanto vantagem decorrente da sua utilização, a inclusão do costume como referencial a ter em conta a quando da sua aferição. A Nossa ordem jurídica157 traz uma nova

configuração para o costume, porquanto no seu artigo 7º158 equipara-o à lei, ao afirmar

que o costume159 não será válido se contrariar a Constituição e a dignidade da pessoa

humana. Nestes termos, poderá haver uma concorrência entre constume e lei no que a sua aplicação diz respeito, porque representam valores a ter em conta aquando da regulação de comportamentos sociais.

De forma declaratória e não constitutiva (anterior ao próprio Estado), a Constituição procede à tutela do costume, passando por força disso a ser protegido e garantido pelo Estado, tal como acontece com outros padrões normativos, enquanto

156 Jorge Reis Novais, Princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa, Coimbra editora

2004 p 49-50.

157 “Apesar de a Constituição angolana não inaugurar o pluralismo, rectius, a ordem jurídica plural

angolana, ela definitivamente procede ao reconhecimento das autoridades tradicionais e do costume. Assim, depois de, em sede de Preâmbulo, invocar a memória dos antepassados e de apelar à sabedoria das lições da história comum e das raízes seculares e das culturas que enriquecem a unidade do povo e do Estado de Angola, a Constituição procede ao reconhecimento expresso da fonte do Direito das comunidades tradicionais – o costume – e do estatuto, papel e funções das próprias instituições de exercício legítimo de poder nessas populações – as autoridades tradicionais”. Carlos Feijó Coexistência… ob cit… p 391.

158 É reconhecida a validade e a força jurídica do costume que não seja contrário à Constituição nem atente

a dignidade da pessoa humana.

159 Sobre a vantagem do costume enquanto fonte primária de Direito, na concorrência com a Lei, dentre

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garantes e materializadores do Direito. Como resultado, a actuação da administração encontra-se condicionada ao costume que preencha os requisitos constitucionalmente estabelecidos, podendo resultar daí declarações de invalidade de tais actos. Por exemplo ao nível do regime da lei de terras160, são reconhecidos os direitos fundiários

de que sejam titulares as comunidades rurais, incluindo aqueles que se fundam nos usos ou no costume. Qualquer acto da administração sob terrenos enquadrados neste preceito, deve respeitar o costume, sob pena de ser declarado inválido. Por exemplo, a delimitação dos terrenos rurais comunitários, a desafectação de terrenos rurais comunitários e a sua concessão, bem como a delimitação das áreas das comunidades rurais e a definição do aproveitamento dos terrenos comunitários deve ser precedida de audição prévia das instituições do poder tradicional161.

Portanto, a audiência prévia apresenta-se como uma das fases do procedimento administrativo conducente à concessão de direitos sobre um terreno. Embora nada se diga acerca desta audiência, cremos que ela deverá ser obrigatória por dois motivos;

a) A Constituição da República de Angola162, impõe a audição dos particulares antes

da tomada de qualquer decisão pela Administração Pública, pelo que conceder outro tratamento a esta matéria que não seja o que consta do artigo em referência, conduziria à um decisão inconstitucional;

b) É imperioso que se oiça a comunidade que reside no espaço, antes que os órgãos do Estado efectuem a transferência da titularidade de direitos, pois não se sabe se elas usam o espaço para rituais próprios. Devemos ressaltar porque relacionado a este segundo aspecto, que esta exigência não precisava de consagração legal, agora mais do que antes, - por causa do lugar do costume na Constituição da República de Angola -porquanto resulta de uma prática costumeira ouvirmos os ocupantes de um espaço antes de se praticar qualquer acto, sobre o mesmo, por razões que se prendem com o exercício do contraditório, na sua dimensão de direito natural. Deste modo não pode de forma alguma ser preterida a posição dos particulares assente em práticas

160 Artigo 9º da Lei 9/04 de 9 de Novembro.

161 Nº2 do artigo 23, nº 4 do artigo 37, números 1 e 2 do artigo 51º todos da Lei de terras. Carlos Feijó

Coexistência…ob cit… p 159.

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costumeiras, por força de disposições legais e porque entre as comunidades tradicionais vigoram princípios bem claros que apontam para a obrigação de ouvir sempre as pessoas da comunidade antes de se tomar uma decisão, que as irá afectar. É só pensarmos no Ondjango, como local em que se discutem questões referentes à problemas que envolvem os residentes de uma determinada aldeia, nenhuma decisão será tomada sem que as partes sejam ouvidas pelo soba.

O costume administrativo, diferentemente dos outros costumes (simples práticas comportamentais, oralidade) em regra efectiva-se por via de uma regra escrita, cuja origem e aplicação prática dependerá dos elementos ligados ao aparelho administrativo, que o irão aplicar diariamente, assim a sua validade estará condicionada à convicção de obrigatoriedade que estes manifestam e exteriorizam diariamente para os utentes dos serviços públicos163.

O entendimento do Direito enquanto pressuposto-fundamento164 da actividade

administrativa está na base da origem do princípio da juridicidade, que é responsável pelo afastamento da ideia da simples legalidade165. O direito enquanto pressuposto, só

foi possível a partir do momento em que se operou a constitucionalização do Direito Administrativo, no sentido de vincular a actividade administrativa à lei fundamental, passando a falar-se de dependência directa a constituição. Verificando-se por força disso, uma autodeterminação da lei suprema face ao poder legislativo, garantindo desta forma a aplicação das normas da constituição, sem a clássica intermediação legislativa. Mesmo havendo alguma dependência, a verdade é que o princípio da juridicidade continua a valer como tal.166

Apesar de tudo, e como elemento garantístico, a utilização do princípio da juridicidade traz consigo, uma maior exigência, no que ao controlo da actividade administrativa pelos tribunais se diz respeito, na medida em que passam existir vários

163 Pedro Moniz Lopes, Princípio… ob cit…p 331. 164 Vieira de Andrade, O dever… ob cit… p14.

165 Merkl entende que a legalidade seria uma espécie de juridicidade qualificada. Adolgo Merkl, Teoria

General del Derecho Administrativo. Granada, Comares, 2004, p. 209

166 Cármen Lúcia Rocha. Princípios constitucionais da administração pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994

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padrões para fiscalizar tal actividade, partindo da própria constituição, os costumes, o direito natural, a lei, as convenções internacionais167 etc.

O papel da constituição e a necessária efectivação do seu conteúdo pela administração apresenta-se como um dos caminhos justificador da aplicação do princípio da juridicidade, paralelamente ao controlo da actuação administrativa ao abrigo daquele princípio, efectuado pelos tribunais. A natureza dos princípios constitucionais168 que agora vinculam directamente a administração conduz ao controlo

inclusive do mérito da actuação, na medida em que o princípio da constitucionalidade exige que os actos do estado sejam conformes à constituição. Mera hipótese sem contudo conceder, pode-se por exemplo proibir que os tribunais comuns efectuem tal controlo, com o argumento da violação da reserva da administração, entretanto o mesmo não pode acontecer em relação aos tribunais constitucionais que têm a missão de proteger a constituição, contra todos os actos e omissões dos poderes públicos. Por outro lado, a reserva de administração estribada no princípio da separação de poderes, encontra consagração constitucional, cabendo aquela corte a sua avaliação e fiscalização no que a sua efectivação se diz respeito, pelo que não haverá problema em termos o tribunal constitucional a avaliar o mérito da actuação adminsitrativa, porquanto esta encontra fundamento na lei suprema169, havendo neste sentido a

obrigação de o tribunal constitucional verificar se tal actuação respeitou o princípio da separação de poderes ou outro princípio. O argumento da violação da reserva da administração como fundamento da proibição do controlo vale apenas quando se tem

167 “Dessa forma, leciona Germana de Oliveira Moraes quanto ao controle jurisdicional dos actos

administrativos que, na época actual, a expressão “controle de mérito” deve ser substituída por “controle de juridicidade”, ultrapassando o entendimento relacionado ao exame do acto sob a óptica de uma legalidade formal, e permitindo uma compreensão que inclui os princípios como parâmetros de análise, portanto, visando o interesse público “Existe sempre para o Poder Judiciário a possibilidade de invalidação de todo e qualquer acto administrativo, inclusive daquele resultante da acção discricionária ou da valoração dos conceitos verdadeiramente indeterminados ou de prognose”. Gabriel António de Abreu Vieira, Os Princípio da legalidade, juridicidade e supremacia e supremacia do interesse público, parâmetros de controle administrativo e jurisdicional. Um exemplo concreto na decisão da ADPF Nº 101/DF,p 2167.

168 Rafael Carvalho Rezende Oliveira, Constitucionalização do Direito Administrativo, Lumen Juris editora

2010 p77.

169 Entre nós, temos por exemplo ao nível da Lei do Processo Constitucional Lei 3/08, o recurso

extraordinário de inconstitucionalidade que pode incidir sobre actos administrativos que violem direitos fundamentais e regras consagradas na Constituição da República de Angola.

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a lei como padrão, não valendo tal raciocínio nas circunstâncias em que o padrão se apresenta sob a forma de juridicidade.

Nestes termos, a juridicidade carrega consigo a possibilidade de um activismo administrativo nos seguintes termos; “Mais que isso, a actuação da Administração

Pública é passível de se realizar segundo a lei reconhecidamente constitucional (secundum legem), segundo a Constituição, mesmo sem qualquer previsão legal (praeter legem) e, inclusive, ainda que contra a lei, mas em observância aos princípios fundamentais (contra legem)”170.

Assim, a Administração pode em obediência à constituição e controlada pelas coordenadas da juridicidade, praticar actos que se consubstanciem na efectivação das suas normas, sem que para tal exista uma lei ordinária que a oriente, estamos por exemplo a falar dos direitos fundamentais, que no seu regime impõem aplicação imediata. Muitas vezes, a juridicidade confere à Administração a possibilidade desatender ao conteúdo de uma lei, por estar a agir em obediência à constituição, levando-a a ponderar se cumpre a lei ou a constituição, pergunta cuja resposta afigura- se clara171.

Nestes termos; “Portanto, é possível afirmar que pressupor uma actuação

administrativa comprometida com o ordenamento jurídico-constitucional e, por conseguinte, com a promoção de uma tutela administrativa “espontânea, integral e igualitária dos direitos fundamentais, em prestígio ao princípio da juridicidade, significa essencialmente admitir a verdadeira existência e legitimidade da actividade administrativa”172

O princípio da juridicidade é dos mais importantes para administração pública, fundamentalmente por acarretar em si, o princípio da legalidade como obediência ao direito, a legitimidade quando se realiza por via da actuação da administração a vontade

170 Fernanda Macedo Ferreira, Actuação administrativa prater legem; em busca da efectivação dos

direitos fundamentais pela administração pública, Curitiba 2015 p 26.

171 Deixar de cumprir a lei que estabelece o pagamento de uma indemnização após a expropriação,

quando a Constituição por exemplo estabelece o pagamento da indeminização antes da expropriação.

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da colectividade e esta reconhece-a, e da moralidade, ínsita ao conteúdo da actividade administrativa e sua finalidade em relação à comunidade.

Se o princípio da juridicidade olha em primeiro lugar para o ordenamento jurídico como um todo, será este mesmo ordenamento que estabelecerá as condições de validade de actos praticados, ou irá considerar irrelevantes alguns actos tendo como referência o princípio em causa. Neste termos e porque o agir na base da juridicidade comporta elementos de racionalidade e legitimidade democrática, a própria ordem jurídica permite que se fale em presunção de legalidade da actuação administrativa.173

A juridicidade identifica um conjunto de matérias que constituem o seu núcleo, que expressam a “normatividade geradora de situações imprescritíveis em Direito

Administrativo”174, fazem parte destas matérias as seguintes;

a) As normas que consagram ou declaram direitos fundamentais decorrentes da dignidade da pessoa humana e ainda todas aquelas normas que os garantem;

b) Sem prejuízo de possível sobreposição com as anteriores, as normas constitucionais e, num plano diferente, todas as normas que, sendo dotadas de valor infraconstitucional, servem de padrão de conformidade a outras normas;

c) As normas que (podendo ou não estar incluídas em algum dos anteriores níveis) têm a sua violação sancionada pela ordem jurídica com a nulidade (ou a eventual inexistência) dos respectivos actos desconformes;

d) As normas que definem e garantem o regime de bens integrantes do domínio Público;

e) As normas definidoras de competência das diferentes estruturas administrativas, especialmente aquelas cuja violação não encontra desvalor jurídico dos respectivos actos a anulabilidade.

Portanto, e como já o dissemos, existem matérias que por força da sua natureza, merecem a nossa atenção, quando discutimos questões referentes à juridicidade.

173 Paulo Otero, Direito do… ob cit.. p 147. 174 Paulo Otero, Direito do… ob cit…p 151.

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Entretanto a grande questão que se pode colocar em relação à matéria, tem a ver com o controlo da actuação da administração ao abrigo do princípio da juridicidade, fundamentalmente quando a mesma é baseada em outros valores que não a lei, como entender a discricionariedade face ao princípio da juridicidade? O mesmo quase que não se colocava no confronto discricionariedade e legalidade, pois era pacífico que a discricionariedade de alguma forma representava uma excepção à lei, permitida pela mesma, e quanto à juridicidade? É a questão que nos irá ocupar nas linhas que se seguem.