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Os diferentes figurinos no associativismo

No documento JFIDALGO 2006 Tese Doutoramento (páginas 197-200)

III – A especificidade dos principais “traços profissionais” no jornalismo

ANÓNIMO, “The New Zeland Journalist”,

1. Os diferentes figurinos no associativismo

Assumindo que, na prossecução de um “projecto profissional”, o primeiro e um dos mais importantes passos é “a criação de um grupo ocupacional formal” (MacDonald, 1999: 195) – com os objectivos prioritários de estabelecer uma forma de “credenciação”, de “desenvolver respeitabilidade individual e colectiva” e de “obter reconhecimento legal” (ibidem) –, e assumindo que isso se concretiza na constituição de uma organização profissional onde se vai consolidando uma identidade partilhada, é útil observar-se como, no caso dos jornalistas, se desenvolveram múltiplos projectos associativos que, a vários títulos, nos elucidam sobre as hesitações e contradições do grupo.

As forças e fraquezas identitárias do grupo profissional nascente – e convirá recordar que ele começa a emergir enquanto tal por alturas (e também por causa) da industrialização da imprensa, na segunda metade do século XIX – notam-se desde logo na tensão entre individual e colectivo que se manifesta à volta das primeiras iniciativas associativas. Por um lado, entendia-se que a organização colectiva era essencial para construir e afirmar uma consciência comum, um espírito de corpo, com princípios

essenciais, valores e modelos de funcionamento partilhados pelo grupo, de modo a obter mais eficazmente o desejado reconhecimento: não falta quem destaque o papel destas associações profissionais enquanto “quadros de iniciação a práticas profissionais e a novos papéis sociais” (Martin, apud Ferenczi, 1993: 246). Por outro lado, entendia-se também (até pela tradição ainda recente do jornalismo associado à criação literária) que esta actividade se dava mal com lógicas colectivas, havendo muito quem preferisse enfatizar a irredutível liberdade individual do jornalista, quer por insistir em encará-lo como um artista, um criador, quer por defender o carácter necessariamente aberto de uma profissão associada a outra irredutível e universal liberdade – a liberdade de expressão. Daqui nasce a ideia, ainda hoje muito expandida, dos jornalistas como obstinadamente individualistas e relapsos a formas de organização colectiva.

A observação dos diferentes modos de associação que o grupo profissional foi experimentando ao longo dos tempos, por exemplo em Portugal (ver Capítulo II), é bem eloquente. Os jornalistas começaram por se associar com os escritores ou os “homens de letras”2, com isso significando que se viam, antes de tudo, como criadores intelectuais, e era junto de criadores intelectuais que encontravam os seus pares3. A situação provocava naturais dificuldades quando se tratava de desenvolver acções reivindicativas junto dos proprietários das empresas jornalísticas, pois os escritores, por muito solidários que fossem com essas lutas, dificilmente eram mobilizáveis para elas, preferindo investir, no seio das organizações, em aspectos menos ‘materiais’, como o prestígio da criação literária ou o seu papel na formação cultural das pessoas, para não falar já da simples adesão a um lugar de convívio e debate. Coexistiam, assim, dois propósitos debaixo do mesmo tecto:

Por um lado, aqueles que faziam do jornalismo um modo de vida pretendiam fazer das associações um instrumento de reivindicação dos seus interesses profissionais e materiais; por outro, aqueles para quem o jornalismo não era mais que uma tribuna para os seus ideais, viam as associações como locais de discussão e de tertúlia (Sobreira, 2003: 64).

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E o primeiro esboço de organização neste sector em Portugal – o da pioneira Associação Promotora dos Melhoramentos da Imprensa, criada em 1846 – embora não o diga no nome (como sucederia com as seguintes, e mais marcantes, Associação de Jornalistas e Escritores Portugueses, de 1880, e Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, de 1882), juntava já no seu seio gente dos jornais e gente ilustre das letras, como Herculano ou Garrett, o que não admira para uma época em que, além do mais, muitos dos “redactores-chefes” dos títulos importantes eram, simultaneamente, escritores de prestígio.

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A associação do jornalismo à literatura perdurou bem até finais do século XIX, e será curioso notar que, mesmo quando as duas actividades começaram a olhar-se como mais autónomas, o padrão literário continuou a prevalecer durante algum tempo, pois a distinção frequentemente feita era entre ficção “mais elevada” (de qualidade) e ficção “mais baixa” (sem qualidade), e não propriamente uma distinção entre ficção e não-ficção (Hampton, 2005: 141). Esta só haveria de se estabelecer com a autonomização do jornalismo enquanto prática específica, com um objectivo próprio – a informação – e um novo paradigma para a sua operacionalização prática – o “news paradigm”.

1.1. - Entre a Ordem e o Sindicato

Quando as águas começaram a separar-se e ganhou corpo um conjunto relevante de pessoas que se dedicavam em exclusivo ao trabalho jornalístico, no seio de redacções e de indústrias dedicadas, os projectos associativos passaram a circunscrever-se apenas ao grupo profissional, mas nem aí as coisas ficaram claras. Agora ressaltava outra ambiguidade a dividir os jornalistas: a dos que se entendiam como profissionais do tipo dos profissionais liberais – e, por isso, se viam mal em organizações de modelo sindical, preocupado sobretudo com reivindicações laborais –, e a dos que se assumiam como

trabalhadores assalariados, semelhantes a tantos outros que dependiam de patrões e de

empresas que exploravam um negócio num mercado. Emergia igualmente uma contradição que haveria de marcar os debates futuros deste grupo profissional: de um lado, uma “elite” de jornalistas-redactores, mais do que quaisquer outros ainda ligados à velha imagem prestigiada do homem de letras e da inerente responsabilidade cultural e social que invocava, de outro uma plêiade de “profissionais da imprensa” que igualmente contribuíam para fazer o jornal mas em ofícios mais ocultos, mais humildes, com menor protagonismo junto do público (os primeiros repórteres da actualidade, os informadores, os colaboradores, os revisores, os ilustradores – ou então os jornalistas mais ou menos amadores da chamada ‘pequena imprensa’, a imprensa regional e local).

Não é por acaso que, apenas um ano depois de ter sido criada em Portugal (em 1896) a Associação dos Jornalistas – que continua a aceitar escritores, desde que tenham “tirocínio na imprensa periódica, quer façam ou não do jornalismo a sua ocupação habitual e exclusiva”, e desde que se lhes reconheça “capacidade moral” (Valente, 1998: 33) –, logo nasce uma outra, a Associação da Imprensa Portuguesa (1897), com quotas mais económicas e maiores facilidades de acesso, precisamente porque encarava a anterior como dominada pela “aristocracia” dos jornais. Esta última destinava-se, nas palavras do jornalista Alfredo Cunha (cit. em Sobreira, 2003: 36), a juntar “todos os trabalhadores, embora modestos, que se empregam na inglória e, por vezes, bem rude faina da imprensa periódica”, chegando ao ponto de aceitar o pessoal administrativo dos jornais. E não é por acaso também que mais tarde, já na vigência do Sindicato dos Profissionais da Imprensa de Lisboa (nascido como Associação de Classe em 1904 e transformado em sindicato em 1924, com um âmbito tendencialmente nacional, apesar da designação), é criado como alternativa um Sindicato da Pequena Imprensa e Imprensa Regional (1931), destinado a albergar quem se sentia excluído ou menorizado. Esta multiplicidade de iniciativas, que

sugere indefinições ou controvérsias sobre quem poderia legitimamente intitular-se jornalista na plena acepção do termo, revela bem as oscilações quanto à identidade do grupo profissional: ora parceira dos escritores e artistas, ora émula dos profissionais liberais estabelecidos, ora circunscrita a trabalhadores por conta de outrem no seio de uma empresa jornalística (e, mesmo aqui, com diferentes perspectivas, ao longo do tempo, sobre a aceitação, ou não, dos directores de jornais como pares, bem como dos trabalhadores de ofícios ligados à produção industrial – e não intelectual – dos jornais, como secretários, funcionários administrativos ou pessoal da tipografia).

Neste pano de fundo, como já vimos, também nunca deixou de emergir (com maior ou menor força conforme as épocas) a ideia de criação de uma Ordem dos jornalistas, por alguns considerada o modelo mais conforme à organização de uma profissão que se queria tão reconhecida e considerada como a de médico ou advogado, e cuja preocupação estaria menos em reivindicações laborais e mais em propósitos disciplinadores no plano da ética e da moral. Em causa estaria não apenas encontrar o modelo associativo mais eficaz para o grupo conseguir as condições (sobretudo económicas, materiais) a que se julgava com direito, mas igualmente conquistar a marca de respeitabilidade tão característica das profissões liberais e elevar a sua actividade (a da informação), em termos de prestígio público e de relevância social, para o nível atribuído a actividades reputadas essenciais ao ser humano, como as que tratam da vida e da morte, da saúde ou da justiça.

Este é um debate que (como sabemos do caso português) ainda não está encerrado e que tem assumido as mais diversas roupagens. Recordemos o desabafo enfático dos jornalistas franceses agregados no seu sindicato, quando o Parlamento finalmente aprovou o seu estatuto legal e lhes conferiu direito à outorga de uma Carteira Profissional: “A Ordem está feita!”. De facto, o que sucedeu em muitos países foi que os jornalistas acabaram por optar pela organização associativa sindical – e o papel do sindicato francês na conquista de um estatuto especial para o grupo já foi devidamente salientado atrás –, mas com algumas cláusulas derrogatórias do direito laboral comum e, sobretudo, acoplando-lhe competências habitualmente reservadas às ordens profissionais. E isso tanto foi feito através da participação maioritária do sindicato num organismo criado para a credenciação dos jornalistas profissionais (que implicava um compromisso em matéria de moral profissional), como se viu em França em 1935, como através da criação, no seio do próprio sindicato, de um órgão especificamente dedicado às questões éticas, como sucedeu em Portugal com a constituição de um Conselho Deontológico – de resto, o responsável,

No documento JFIDALGO 2006 Tese Doutoramento (páginas 197-200)