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O “princípio da diferenciação”

No documento JFIDALGO 2006 Tese Doutoramento (páginas 81-86)

II – Jornalistas: a história de construção de uma profissão

profissional 2 dos jornalistas ou explicar as recorrentes ambiguidades no processo (“tardio”

1. O “princípio da diferenciação”

Partindo da constatação, enunciada por Pierre Bourdieu, de que o “mundo social” pode ser representado “sob a forma de um espaço (a várias dimensões) construído na base de princípios de diferenciação” (Bourdieu, 1984: 3), podemos verificar que a constituição do grupo profissional dos jornalistas está muito ligada, nos seus primórdios, precisamente a este esforço de diferenciação3 – ou seja, delimitação de um território próprio, distinto do

de outras actividades que ‘faziam’ o jornal e tributário de uma lógica de funcionamento também particular. Isso começou por ser feito em boa parte ‘pela negativa’, chamando a

identidade “não é o que fica necessariamente ‘idêntico’, mas o resultado de uma ‘identificação’ contingente” (ibidem), decorrente de operações tanto de diferenciação (que procuram definir “aquilo que faz a singularidade de alguém”) como de generalização (que procuram “definir o ponto comum a uma classe de elementos todos diferentes”). Deste modo, “não há identidade sem alteridade”, e “as identidades, como as alteridades, variam historicamente e dependem do seu contexto de definição” (ibidem). A construção da identidade é, pois, resultado de uma dupla e permanente “transacção”, tanto interna (biográfica) como externa (relacional) – sendo esta segunda a que particularmente nos ocupa aqui, no contexto da construção social de uma identidade profissional entendida como identidade colectiva. No caso dos jornalistas, esta construção coincidiu de algum modo com o seu processo de profissionalização, embora acrescentando às componentes objectivas desse processo (o estatuto, a formação, as associações, os códigos de conduta) uma componente subjectiva (Blin, 1997), consistindo na representação que o grupo profissional foi fazendo de si mesmo e procurando ‘impor’ para fora, num contexto de tensões e negociações com os grupos “de fronteira” – e com o todo social, em tempos e espaços concretos e situados. O empenho na afirmação de uma dada identidade profissional, idealmente partilhada nos seus elementos nucleares pelo grupo, assumida como discurso com força simbólica e representada como tal para o exterior, surge, assim, como um passo essencial no seu objectivo de conquistar o almejado reconhecimento social e, com ele, a legitimação da profissão.

3 As “teorias da diferenciação” vêm já do funcionalismo e foram desenvolvidas, entre outros, por Durkheim e por

Parsons. A organização de grupos profissionais autónomos enquanto “corpos sociais que se especializam em funções particulares” é vista como uma espécie de “diferenciação horizontal da sociedade” (Hallin & Mancini, 2004: 76). Isto não se aplica só aos grupos profissionais: de acordo com estas teorias, o próprio processo de mudança social das sociedades primitivas para as modernas é olhado como um processo “em que funções sociais inicialmente fundidas se vão separando: a política, por exemplo, diferencia-se da religião e da economia” (ibid.: 77). E a progressiva autonomização do sistema mediático face a outros sistemas seria, por exemplo, também sinal dessa evolução e de progresso. O conceito de diferenciação é, por outro lado, central nos estudos sobre a construção das identidades, tal como dissemos na nota anterior (cf. Dubar, 2000).

atenção menos para aquilo que o jornalismo era e mais para o que ele não era: nem uma tribuna de propaganda política e proselitismo partidário, nem o espaço mais alargado (em termos de difusão pública) para os escritores interessados em publicar as suas crónicas ou os fascísculos dos seus romances, nem a tribuna pessoal de quem queria promover-se e à sua carreira, nem o registo burocrático de singelas informações sobre a cotação de produtos no mercado e do seu trânsito comercial. Tratava-se, aqui, essencialmente de definir uma “fronteira” – termo que Ruellan (1997) vai buscar à geografia humana e que considera bastante útil no contexto da sociologia dos grupos profissionais, ilustrando a ocupação, por um determinado grupo, de um terreno virgem que se vai “demarcando” de modo dinâmico até à linha separadora de outros terrenos / outras actividades vizinhas, mas também concorrentes:

Convergem para a fronteira, instalam-se aí, estruturam os seus espaços, todos os que estão preparados para os riscos da criação de novos territórios e de novas actividades. Enquanto os espaços não forem todos apropriados, enquanto sobrarem espaços para quem chegue de novo, a fronteira não se fecha e a diferenciação social permanece fraca. Quando enfim a fronteira chega ao seu limite (…), as lógicas de diferenciação social – e singularmente de apropriação – lançam-se ao trabalho. Assiste-se então à concentração de recursos e de meios de trabalho, à exclusão, à marginalização ou à alienação de certos membros sociais (Ruellan, 1997: 15).

Este princípio de afirmação e protecção da “fronteira” não fica terminado quando ela obtém reconhecimento e estatuto, pois podem continuar a surgir ameaças exteriores, sejam as de grupos que se consideram também com direito de acesso ao mesmo território, sejam as de territórios vizinhos que entendem querer disputar o monopólio. E as tensões podem ocorrer no interior do próprio campo já definido e delimitado: quando surgiu a radiodifusão, os jornalistas desse novo suporte tiveram muitas dificuldades (e levaram muito tempo) para serem considerados profissionais com a mesma legitimidade dos seus pares da imprensa, único suporte mediático até então existente. E os repórteres fotográficos, apesar de contribuírem há muitas décadas com um trabalho específico e relevante para o trabalho informativo de um jornal (apenas utilizando a linguagem das imagens em vez da linguagem das palavras), só em finais do século XX conseguiram, em Portugal pelo menos, ver reconhecido o seu estatuto profissional de jornalistas de corpo inteiro. Mais recentemente, vê-se como os jornalistas cuja actividade se desenvolve em exclusivo nos terrenos novíssimos do on-line têm tido dificuldade em afirmar-se na sua especificidade, mas dentro da profissão (Fidalgo, 2004a; 2004b), pois são ainda encarados em muitas circunstâncias (e até pelos seus pares de outros suportes informativos) como ‘diferentes’, eventualmente mais como ‘técnicos’ do que ‘jornalistas’ segundo os modelos tradicionais, por supostamente lidarem mais com comunicação do que com informação.

Constata-se, assim, que, a par da diferenciação do território e da sua afirmação como campo autónomo e fim em si mesmo – tentando ultrapassar a convicção muito difundida de que o espaço do jornalismo nos seus primórdios era, sobretudo, uma oportunidade de acesso a outros espaços mais valorizados, de que é emblemática a frase célebre do francês Alphonse Karr: “Le journalisme mène à tout, à condition d’en sortir” 4 – seguiu-se, naturalmente, a diferenciação dos actores merecedores, ou não, de ter acesso a ele. Também aqui, o processo desenvolveu-se sobremaneira ‘pela negativa’, excluindo mais do que incluindo e dando mostras de uma persistente dificuldade (que perdura até hoje, porventura com novos elementos de complexidade) em definir o que é um jornalista sem cair na tentação de o definir pelo que ele não é. Não falta quem assinale a estranheza deste facto, como é o caso de Ruellan (1994: 8): “Embora possa reivindicar-se de pertencer ao número dos velhos métiers do mundo, o certo é que o jornalismo continua ainda hoje por definir”.

Exemplar, a este propósito, é a definição ‘clássica’ de jornalista, adoptada pela célebre lei de 19355 que, em França, conferiu um estatuto profissional – e a consequente atribuição de um título legal, uma “carteira de identidade profissional” – aos oficiantes deste ofício: “O jornalista profissional é aquele que tem por ocupação principal, regular e retribuída, o exercício da sua profissão numa ou em várias publicações quotidianas ou periódicas, ou numa ou em várias agências noticiosas, e que retira daí o essencial dos seus recursos” (cit. em Ruellan, 1994: 214). A tautologia está à vista: jornalista é quem exerce jornalismo, sendo esta actividade também definida não pelo que comporta, pelo que significa, mas pela instituição onde se pratica, ou seja, um… jornal.

Nesta mesma lógica se inscrevia já, aliás, a (não) definição do jornalismo no Dictionnaire français des professions, com data de 1880:

É-se engenheiro mesmo quando não se tem uma colocação; é-se médico ou advogado, mesmo quando não se tem clientes. Mas só se é jornalista quando se escreve num jornal; passa-se a ser jornalista e deixa-se de o ser de um dia para o outro. Não há aprendizagem, não há certificado, não há diploma (…). O jornalismo não é uma profissão no sentido habitual do termo (cit. em Ruellan, 1994: 214).

4 Cit. em Palmer (1994: 157). Alphonse Karr viveu entre 1808 e 1890 e, segundo afirma Palmer, aquela sua ‘máxima’

seria decalcada de uma outra, atribuída a Villemain, e que dizia de modo mais genérico: “Les lettres conduisent à

tout, à condition de les abandonner”.

5 Esta lei, adoptada em França, constitui um importante marco, tanto em termos reais como simbólicos, no processo de

afirmação do jornalismo enquanto profissão, como mais adiante procuraremos evidenciar – até porque a sua influência extravasou bastante dos muros do território francês.

O ofício acaba por ser definido “não em função da natureza das ocupações que o jornalista pode ou deve ter”, mas “em função do quadro no qual ela se exerce e das condições em que ela é praticada” (G. Halperne, cit. em Ruellan, 1997: 133). Define-se mais a categoria – o título, a denominação como “jornalista profissional” – do que a

actividade – a natureza do trabalho a realizar e os modos específicos da sua realização –, o

que, podendo parecer quase um exercício de retórica estéril, nem por isso deixa de ser significativo, pois de algum modo permite mais excluir os ‘ilegítimos’ do que incluir os ‘candidatos’. Ao não definir requisitos específicos para o exercício da actividade, não define também as condições que é necessário preencher para ter direito a exercer essa actividade; assim, os mecanismos de acesso à profissão transferem-se do âmbito cultural, científico, profissional (formação, qualificação, competências…), para o âmbito meramente sócio-económico e laboral: pode intitular-se jornalista quem consegue obter um emprego numa empresa jornalística.

Esta não é uma questão de somenos, quer pelo que a atribuição de uma categoria (um título) acarreta em termos de valorização social, quer até pelas vantagens comparativas que ela significa no plano da retribuição do trabalho. Como sublinha Bourdieu (1984: 8), o título é capaz de “conferir direitos independentes da actividade produtiva efectivamente exercida”, e daí o empenho que os grupos profissionais colocam na “marca distintiva” da sua denominação, no âmbito do processo de diferenciação a que atrás aludimos:

A gestão dos nomes é um dos instrumentos da gestão da raridade material e os nomes dos grupos, muito em particular dos grupos profissionais, revelam o estado das lutas e das negociações a propósito das designações oficiais e das vantagens materiais e simbólicas que lhes estão associadas (Bourdieu, 1984: 8).

O título profissional acaba por ser, assim, uma espécie de “regra jurídica de percepção social”, um “capital simbólico institucionalizado, legal – e já não apenas legítimo”, para usar os termos de Bourdieu (ibidem). Mas a sua vantagem, é bom notar, não se fica apenas pelo domínio do simbólico:

É a raridade simbólica do título no espaço dos nomes de uma profissão que tende a reger a retribuição da profissão (e não a relação entre a oferta e a procura de uma certa forma de trabalho): decorre daqui que a retribuição do título tende a autonomizar-se relativamente à retribuição do trabalho. Assim, o mesmo trabalho pode receber remunerações diferentes conforme os títulos de quem o realiza (…); a retribuição do título pode manter-se apesar das transformações do trabalho e do seu valor relativo: não é o valor relativo do trabalho que determina o valor do nome, mas o valor institucionalizado do título que serve de instrumento que permite defender e manter o valor do trabalho (ibidem).

Também por isto se entende a importância que, desde os inícios da autonomização e organização da profissão, os jornalistas deram à sua denominação enquanto “profissionais” – mesmo não querendo, ou não podendo, definir com mediano rigor os contornos do seu ofício – e, sobretudo, o empenho que colocaram na institucionalização dessa denominação, traduzida na atribuição de uma carteira profissional, instrumento definitivo de distinção entre os trabalhadores ‘legítimos’ e ‘ilegítimos’. Sendo que (e voltamos à contradição atrás enunciada) a atribuição dessa carteira profissional também esteve desde sempre mais ligada a um estatuto sócio-económico de facto – a existência de um vínculo contratual com uma empresa jornalística – do que ao preenchimento prévio de determinados requisitos escolares, científicos ou técnicos.

A definição de uma categoria profissional nestes moldes, mesmo com insuficiente definição da respectiva actividade, acaba, assim, por ter vantagens que extravasam do próprio âmbito sócio-económico, podendo ser olhada como um instrumento central na tentativa de afirmação de uma certa identidade profissional (embora expressa recorrentemente mais pela “alteridade” do que pela “identidade”) e no processo de legitimação social do ofício:

A categoria constrói a representação, para si e para o outro, da actividade. Esta representação é ideológica, ela constitui modelos, relativamente independentes da realidade e necessariamente fundados nesta, que concorrem para construir a legitimidade social do jornalismo, para o inscrever num corpo de papéis mais ou menos efectivos (Ruellan, 1997a: 127).

Vemos, portanto, que a dificuldade (por vezes associada a algumas resistências internas) de definir com rigor e com conteúdo o jornalismo como profissão é ilustrativa de um percurso complexo, longo, ambíguo, contraditório – para o que contribui a circunstância de este grupo profissional ser também uma “colectividade de pessoas frequentemente muito individualistas de espírito” (Palmer, 1994: 104) –, mas nem por isso menos significativo ou menos efectivo. No limite, e à falta de “critérios objectivos universais” (Mathien, 1995: 16), acaba frequentemente por se cair em definições subjectivas, relativas, enredadas no raciocínio tautológico já referido, de que é exemplo a apontada por Francis Balle (apud Mathien, ibid.: 17): o jornalista é, simultaneamente, “aquele que se classifica como tal e a quem a sociedade reconhece o direito de se atribuir esse rótulo”.

Não obstante, o percurso histórico (sobretudo a partir da segunda metade do século XIX) mostra à evidência que este grupo e esta actividade quiseram afirmar-se autonomamente, legitimamente, reconhecidamente, e acabaram por conseguir passar “do

estado ao estatuto” (Ruellan, 1997: 12), num processo cujas etapas e elementos essenciais

será útil revisitar. Até porque, como sublinha Christian Delporte,

muitas das questões sobre a crise identitária dos jornalistas nos anos 1990 encontram as suas origens, e talvez algumas das suas respostas, nos tempos, agora longínquos, em que a profissão se foi construindo (Delporte, 1999: 10).

No documento JFIDALGO 2006 Tese Doutoramento (páginas 81-86)