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Os discursos contrários à profissionalização feminina

tornassem juristas, advogadas e juízas são reflexo do que se considerava o lugar das mulheres em sua época. Diversas obras foram escritas tanto a favor quanto contra a ideia de que mulheres são seres racionais. À medida que as mulheres conquistavam direitos, esses discursos permaneceram. Uma análise desses discursos indica os obstáculos e argumentos que foram enfrentados ao longo do tempo.

A sufragista brasileira Bertha Lutz foi a segunda brasileira a entrar para o serviço público. Em entrevista a Branca Moreira Alves, Lutz comentou sobre o concurso:

Quando fomos fazer a prova, eram 10 homens e eu. A primeira era de 'Português. Caiu um trecho de Camões. Analise e voltei para casa. Disse para minha mãe: "Eu acho que não vou voltar, porque minha prova de Português não foi boa”. Ela disse: "Você não vai voltar? Pra que você foi se inscrever se agora não vai voltar? Agora você não voltando, toda mulher que sor entrar em concurso fica prejudicada pelo que você fez. Porque você se inscreveu e largou no meio. De modo que você pense bem”. E acabou me incitando a voltar... Eu voltei, e foi muito bom, porque aliás eu tinha tirado uma nota muito boa. Mas alguns deles erraram. Aliás, tinha lá um candidato, eu achei uma coisa muito curiosa, porque no dia seguinte ele mandou uma carta ao diretor do Museu dizendo que viu que

tinha uma mulher

fazendo o concurso e que isso era contra todas as boas normas

de moral e da família

, de modo que ele então não queria continuar. O engraçado é que ele me viu lá na prova e não disse nada. Foi só depois que ele largou. Afinal eu tirei primeiro lugar e fui nom eada. no meu caso também consultaram o consultor jurídico, Raul Penido, que deu o mesmo parecer (ALVES, 1980, p.104; grifos nossos)

A necessidade de consultar o setor jurídico, bem como o incômodo com mulheres que fazem (e são aprovadas) em concurso público foi um dos obstáculos que atingiu a profissionalização das mulheres. O acesso a posições de

poder é negado pela tradição e às vezes os próprios colegas procuram alguma brecha pessoa para desmoralizar ou criticar a colega de concurso.

O jurista Eutimio Ranelletti, primeiro presidente honorário da Cassazione, foi um ferrenho opositor do direito de acesso feminino às funções judiciárias. Uma de suas obras é intitulada Restituite la Madre ai figliouoli e i figliouoli alle Madri (1957). Utilizando argumentos que remetem ao discurso religioso e conduzem a mulher ao papel de mãe e protetora ele conclui:

Convicto intimamente da exatidão de nossa tese, esperamos fortemente que ela seja acolhida; e, portanto, não cessaremos - nas nossas pregações cotidianas - de invocar a Divina Providência que, em sua infinita misericórdia, salva a Itália desta última extrema; salve- me d a s . unhas vermelhas das “mulheres-juristas”. (FOCARDI, in VICARELLI, 2007, p.208-209).7

Essas palavras foram proferidas no decorrer de discussões sobre o direito de as mulheres serem juízas. Já havia se passado quase quarenta anos da lei que revogou a autorização marital, autorizando a atuação de mulheres advogadas. E já havia se passado quase oitenta anos em que as universidades haviam recebidos as primeiras estudantes nos cursos de Giurisprudenza. Mas o discurso de Ranelletti, e de outros semelhantes, negando direitos às mulheres seguia o mesmo teor dos discursos contrários às estudantes de Giurisprudenza proferidos quase um século antes.

Um argumento frequente era de que o estudo e a profissionalização impediriam as mulheres de se casarem. O jurista Edoardo Ollandini (1913) refutou essa questão utilizando argumentos demográficos. Informou que na Itália havia 165 mil mulheres a mais que homens, concluindo que essa disparidade tornava impossível o casamento para todas as mulheres. Melhor seria, portanto, que mulheres fossem estimuladas a ter uma profissão e garantir o próprio sustento em vez de esperarem por um casamento que talvez não fosse possível de realizar.

Nota-se a ausência de preocupação em relação a orientação sexual, 7 No original: Intimamente convinti della esattezza della nostra tesi, auspichiamo vivamente che

essa venga accolta; e, per intanto, non cesseremo - nelle nostre quotidiane preghiere - di invocare la Divina Provvidenza che, nella sua infinita misericordia, salvi la derelitta Italia da questa ultima estrema iattura!; ... e salvi me d a lle . unghie rosate delle “donne-giuriste”!

tanto masculina quanto feminina, que seriam fortes obstáculos ao casamento. O argumento é puramente numérico e demográfico, e tem sua aplicação ao responder a quem coloca o casamento feminino como objetivo e obrigação principal de cada mulher.

A tendência no início dos anos 1900 foi de usar definições profissionais no masculino, como em la donna avvocato. A tradução próxima seria nos referirmos à mulher advogado, e não diretamente a advogada, como se não existisse a palavra feminina para designar a profissão.

O repúdio ao acesso feminino a espaços para além do círculo doméstico, especialmente em relação ao estudo do Direito e exercício profissional, foi um processo que desafiou as concepções de sua época, estimulando a modificação de conceitos jurídicos.

Este é o caso da primeira advogada brasileira, Myrthes de Campos. Ela foi homenageada em 1949 pela também advogada Romy Medeiros da Fonseca, no discurso feito quando tornou membro do Instituto dos Advogados do Brasil (IAB). Segundo a ata, Romy:

Lembrou as dificuldades que teve de vencer a primeira mulher proposta para membro da Casa, a Dra. Mirtes de Campos, que, apesar do parecer favorável da Comissão composta de eminentes juristas, como o Barão de Lorto e os Drs. Bulhões de Carvalho e Batista Pereira, teve em 1899 o dissabor de ver rejeitada a sua proposta por maioria de votos, pelo antiquado e ridículo fundamento de sua incapacidade, como mulher, para exercer a advocacia, somente sete anos mais tarde e, em 1906, conseguindo ser recebida como membro efetivo. (ATA DA TRIGÉSIMA SESSÃO ORDINÁRIA, 1949, p.423)

Myrthes de Campos foi uma advogada ativa nos tribunais e também no Instituto dos Advogados, fazendo jus à mentalidade das primeiras mulheres que entraram no ensino superior: eram excepcionais e feministas, e parte de sua atuação social implicava em desbravar novos territórios. Tentou alistar-se como eleitora em 1910, mas sem sucesso. Defendeu ideias como o divórcio, o sufrágio feminino e o fim da incapacidade civil da mulher casada e das restrições ao trabalho

feminino. Os dados sobre sua vida não foram preservados, e não se sabe sequer a data de sua morte. (MAGALHÃES; FERREIRA, 2009).

Em 1922, durante Congresso Jurídico realizado no Rio de Janeiro, Myrthes de Campos teve aprovadas duas emendas. Na primeira "a mulher não é, moral nem intelectualmente, inapta para o exercício dos direitos políticos”, e a segunda, "Em face da Constituição Federal, não é proibido às mulheres o exercício dos direitos políticos, que lhes deve ser permitido” (ALVES, 1980, p.95).

O alto custo da educação secundária e preconceitos sociais dificultaram o ensino superior feminino, cujo direito de ingresso no Brasil foi obtido em 1879. Aos poucos, a educação feminina foi aceita, tanto para preparar a moça para atividades no lar, quanto para que conseguisse ganhar a vida sozinha, se necessário (BESSE, 1999). Isso resultou em nova pressão para mudanças do status das mulheres, tendo em vista que eram discriminadas não só por nem sempre serem aceitas nas universidades exclusivamente masculinas, mas também porque, ao se graduarem, poderiam ter o exercício da profissão recusado (como no caso das advogadas) por não serem consideradas como tendo capacidade para exercer plenamente os atos da vida civil (HAHNER, 2003).

Nesse sentido, é difícil atribuir ao trabalho em si um componente essencial na luta por igualdade de direitos, visto que há diversas restrições ao exercício de atividade laboral, como se nota especialmente na ordem jurídica brasileira:

A Carta de 1891 ao assegurar o princípio da igualdade, aboliu regalias de nobreza, omitindo-se sobre o trabalho da mulher. O Código Civil , elaborado sob a vigência dessa Constituição, estabeleceu restrições à mulher casada, arrolando-a entre os relativamente incapazes. Esse dispositivo foi abolido com a lei n.4121 de 1962, que tacitamente revogou também parte do caput do art. 446 da CLT, o qual autorizava o pai ou marido a se opor à celebração do contrato de trabalho da mulher. O parágrafo único do dispositivo citado facultava ao marido pleitear a dissolução do contrato de trabalho da mulher quando a sequência no cumprimento do ajuste fosse suscetível de acarretar ameaça aos vínculos da família ou perigo manifesto às condições peculiares da mulher. Tal circunstância é uma decorrência do Código Civil (art.233), que atribui ao marido a chefia da sociedade conjugal. (BARROS, 1995, p.410)

Também é difícil afirmar que a luta pela igualdade está vinculada à leitura mais tradicional, relacionada aos direitos políticos. Como visto, na França a capacidade para atos da vida civil foi anterior ao direito de voto. E, no Brasil, ao contrário, a capacidade civil esteve restrita até 1962, enquanto o direito de voto é de 1932.

Céli Pinto (2003), ao estudar os direitos políticos das mulheres brasileiras, notou uma incongruência: na República Velha as mulheres não eram citadas nem como possíveis eleitoras, nem como pessoas impedidas de votar. Essa omissão do constituinte de 1891 deixa nítido o status das mulheres, completamente excluídas da vida pública. Ao mesmo tempo, a omissão foi utilizada como espaço de resistência e produção de novos discursos: muitas mulheres requereram - e conseguiram - se tornar eleitoras, candidatas, inclusive sendo eleitas.

E, à medida que se profissionalizavam e ocupavam espaços públicos, as mulheres passaram a reivindicar direitos. Não só o direito ao voto, mas o fim das desigualdades jurídicas em razão de sexo. Nesse sentido, educação e profissão caminham juntas para conquistar cidadania e igualdade de direitos entre homens e mulheres. Nesse sentido, a barreira entre grupos extremamente separados de homens x mulheres está bastante diluída. A progressiva inserção das mulheres na sociedade, tanto como alunas quanto professoras e profissionais liberais, indica que os conflitos que opunham os grupos estão se reduzindo, ampliando as possibilidades de sua resolução a partir da igualdade de direitos e oportunidades.

5 Sufragismo

Sufragismo foi a mobilização social que reivindicou o direito de voto para mulheres. O período de sua atuação foi o final do século XIX, quando também havia discussão sobre educação feminina e profissionalização. O primeiro país a aprovar o sufrágio para mulheres foi a Nova Zelândia, em 1894. O Brasil foi o primeiro país da América Latina, em 1932.

A luta sufragista se tornou mais conhecida devido à atuação de um grupo específico de sufragistas inglesas denominadas suffragettes. No entanto, sua atuação é divulgada atualmente de forma parcial, não