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O princípio básico das mulheres era requerer os mesmos direitos de educação do que os homens. Isso se devia em parte ao interesse das filhas e irmãs de continuarem em contato com seus parentes homens, mas também se devia à curiosidade e estímulo à intelectualidade ao longo do século XIX. Porém, havia limitações (como a questão religiosa, ou ausência de estabelecimentos de ensino preparatório para o curso superior), e também alternativas que atendiam à necessidade local. De todo modo, havia um espaço socialmente adequado para a mulher instruída.

Todas essas possibilidades podem ser consideradas novas fissuras na polarização entre homens e mulheres, indicando novas possibilidades de realização feminina através da educação.

3.2.1 Modelos alternativos de instrução: o caso dos salotti

A mulher educada e culta é um atributo desejável da sociabilidade feminina de elite nos séculos XVIII e XIX. Porém, seu âmbito de atuação não era amplo: a educação era restrita a uma elite que podia pagar por instrução, e a influência também era restrita ao espaço privado, como os salotti.

Derivados dos salões franceses, os salotti destacavam-se como espaço privado utilizado sistematicamente para conversação durante os séculos XVIII e XIX, valorizando a cultura humanística e retórica (AGULHON, apud MUSIANI, p.29-30). Nascidos da necessidade de espaços alternativos à corte, os salões foram também um instrumento para mulheres obterem emancipação política e social. Estimulavam a formação cultural e entrada da mulher na sociedade, suprimindo as restrições do mundo acadêmico. A atuação das mulheres nos salotti

era variada: atuavam como patronesses de artistas, anfitriãs, ou como participantes que dedicavam-se à literatura e temas de sua época. Musiani (2003) destaca que tanto os temas mudaram (alternavam entre artísticos e políticos), quanto o foco: à medida que o século XX se aproximava as mulheres se tornavam mais ativas politicamente, abraçando inclusive o sufragismo.

O prestígio das mulheres nos salotti, especialmente das anfitriãs, proporcionava uma ampliação de funções e uma inversão na hierarquia de gênero. A mulher não era só dona da casa/salão, mas educadora, e considerava-se que os salões educavam homens jovens para a vida pública, desenvolvendo habilidades de conversação e relações sociais (MUSIANI, 2003). No século XVII, em Gênova, essa relação de educação gerou um conceito próprio: o cicisbeismo. Trata-se de uma forma de controle de jovens aristocráticos que ainda não podem exercer cargos públicos. O cicisbeo é um rapaz que se submete a uma dama aristocrática, acompanhando-a a lugares públicos enquanto é instruído sobre costumes e habilidades sociais. Ao mesmo tempo que proporcionava educação e controle do jovem, ampliava o poder social das mulheres da época.(FARINELLA apud MUSIANI, 2003)

A atuação bem-sucedida das mulheres nos salotti permitiu mudanças em outros ambientes sociais, como a aceitação de mulheres em algumas academias e espaços intelectuais antes vedados a mulheres (GRAZIOSI apud MUSIANI, 2003).

Michela di Giorgio (1996), ao analisar a relação entre mulheres e profissões no fim do século XIX, observa duas classificações: a mulher excepcional (que se destaca em uma atividade considerada masculina, como a atividade intelectual) e a mulher normal (referindo-se à grande maioria das mulheres que dedica-se a tarefas consideradas femininas). Antifeministas (considerados à época como pessoas contrárias a reconhecer racionalidade das mulheres) se apropriam dessa diferenciação para negar ampliação de direitos para mulheres. Minimizam as habilidades da mulher afirmando que ela é exceção à regra ou anormalidade e que, portanto, sua atividade é excepcional e não pode servir de parâmetro e ser estendida a todas as outras mulheres.

O argumento da excepcionalidade era utilizado para dificultar o acesso de outras mulheres aos estudos, reforçando diferenças e retomando a polarização identitária entre homens e mulheres. Vergara (1999), mencionando a análise sobre excepcionalidade realizada pelas historiadoras Eleni Varikas e Michèle Riot-Sarcey (1988), observa que essas autoras

alertam que o significado mais corrente do termo de excepcionalidade remete, em princípio, à transgressão de uma regra concebida e imposta por uma estrutura social patriarcal: a regra de inferioridade das mulheres ou, em todos os casos, de sua

diferença fundamental

em relação aos homens, que circunscrevem seus

comportamentos, suas necessidades, seus campos de ação no

interior de uma ordem por eles estabelecida. Toda mulher que

não aceitava submeter-se a essa regra era, aos olhos da

sociedade, excepcional

, mais para seus contemporâneos do que para a posteridade. Ao optarmos por trabalhar com esta noção de excepcionalidade arriscamo-nos, então, a reproduzir a visão hegemônica que reduziram, até o presente, as experiências históricas das mulheres a uma feminilidade normativa ou essencialista, fora da qual o que existe é anomalia e transgressão da ordem natural (VERGARA, 1999, p.227; grifos nossos)

Nesse sentido, o acesso das mulheres à educação e profissionalização no início do século XIX era considerado restrito. Apenas mulheres que recusavam seguir os estereótipos acerca do comportamento feminino eram consideradas excepcionais, transitando para além da polarização entre homens e mulheres e se misturando com os critérios tradicionalmente atribuídos aos homens. Eram consideradas notáveis, uma exceção entre as mulheres e, portanto, merecedoras dos mesmos graus e distinções acadêmicas dos homens, inclusive recebendo encaminhamento profissional.

Outro fator apontado por Michela di Giorgio (1996) é o estereótipo cultural da mulher como influência moral dentro da família. Os espaços estão separados em privado e público, com papéis bem definidos e opostos. A mulher domina no espaço privado, e em contrapartida a esfera pública é interditada a ela. A

educação feminina da época reflete essa separação, sendo realizada por meio de

Circuitos informais (dos livros de devoção aos tratados pedagógicos e edificantes para a mãe e a mulher, dos salões às preleções dos párocos, e dos religiosos interessados nos cuidados com a alma) ou instituições de educação religiosa (predominantes até o fim do período, mas destinadas a obter sucesso até agora) e preceptores (GUIZZONI e POLENGHI, 2008, VIII)1

A informalidade dessa educação, somada à não obrigatoriedade de estudo e às limitações dos estereótipos culturais, dificultava às mulheres o acesso a oportunidades de crescimento intelectual e profissional.

Esses modelos foram alvos de muitas críticas ao longo dos séculos XVIII e XIX. Tanto Carolina Lattanzi quanto Mary Woolstonecraft reivindicam uma educação para mulheres que seja menos frívola e mais adequada para desenvolver habilidades racionais. Lattanzi, em La schiavitu delle donne (1787) expressamente defende a superioridade moral das mulheres e que a educação libertará as mulheres das imperfeições de seu sexo (LATTANZI apud GIORGIO, 1996).

As novas ideias sobre educação feminina serão aplicadas durante o século XIX, estimulando profissionais mulheres como jornalistas, escritoras e sindicalistas, que procuravam obter um mínimo que fosse de capacidade laborativa e independência (GUIZZONI e POLENGHI, 2008).

Se os modelos pedagógicos estavam ancorados na concepção da mulher devota ao sacrifício, dedicada à família, modesta e consciente da própria inferioridade, apesar disso emergiam também figuras de mulheres cultas, independentes, capazes de defender brilhantemente seus próprios direitos (GUIZZONI e POLENGHI, 2008, VII)2

1 No original: Circuiti informali (dai libri di devozione alla trattatistica educativa ed edificante per le madri e le mogli, dai salotti alle predicazioni di parroci e di religiosi in cura d'anima) o alle istituzioni educative religiose (prevalenti fino a quel periodo, ma destinate a godere ancora per lungo tempo di un'ottima fortuna) e ai precettori

O modelo de educação desenvolvido após a unificação italiana incorporou algumas dessas críticas, remodelando a educação feminina. Isso ocorreu especialmente após a Legge Casati. Esta lei foi inspirada no sistema educacional de Torino, o qual, como visto, recebeu forte influência religiosa.