• Nenhum resultado encontrado

Polarização de gênero no direito: o impacto do Código de Napoleão

O embate de ideias acerca da condição feminina não se esgotou com os pensadores e filósofos, especialmente iluministas. A Revolução Francesa possibilitou a oportunidade para mudanças jurídicas, e isso ficou nítido no movimento de codificação legislativa. A Assembleia Constituinte (1789- 1791)procurou unificar a legislação francesa e torná-la clara para qualquer pessoa. E, para tanto, procurou não só simplificar, mas principalmente abolir toda a ordem aristocrática do Antigo Regime:

O Código francês não foi obra de um déspota iluminado, mas sim da burguesia revolucionária, que pretendia edificar uma sociedade baseada sobre os princípios da igualdade e da liberdade dos cidadãos. Apoiava-se, também, na convicção iluminista e jusracionalista de que era possível construir uma nova sociedade, totalmente remodelada e renovada, por meio da obra racionalizante da legislação. (FACCHINI NETO, 2013, p.68)

O momento revolucionário foi importante para questionar essa situação, criando mobilização política de mulheres que exigiu ampliação de direitos e capacidade civil. Essa mobilização, que conseguiu colocar a discussão sobre direitos para mulheres em pauta na agenda legislativa, foi rechaçada. O governo agiu para proibir clubes políticos de mulheres e incentivou a perseguição, inclusive moral, às mulheres que reivindicavam direitos (HUNT, 2009, p.172-173).

Esse regime desigual foi questionado tanto pela inglesa Mary Wollstonecraft, quanto por sua contemporânea francesa Olympe de Gouges. Ela foi pioneira no uso da expressão “direitos das mulheres” (DEKEUWER-DEFOSSEZ, 1985), viveu em Paris durante a Revolução Francesa, e notabilizou-se por propor que as mulheres também tivessem acesso às vantagens do Estado de direito que estava se formando no momento.

Olympe de Gouges reescreveu a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão no feminino, intitulando-a apropriadamente Declaração de Direitos da Mulher e da Cidadã. Também escreveu uma forma de contrato social do homem e da mulher propondo igualdade no relacionamento, responsabilidade do casal para com os filhos e distribuição de herança e patrimônio de forma equitativa (GOUGES, 1995). Ela insistiu

no caráter bissexuado da comunidade civil e política. Lembrava que os direitos do homem se declinam no feminino, ao afirmar claramente que o universalismo dos direitos é uma mistificação, e que, fingindo falar em nome da humanidade, ele fala apenas em nome do sexo masculino. Ao feminizar explicitamente, de uma maneira quase obsessiva, a Declaração de 1789, Olympe de Gouges põe em xeque a política masculinista e desmascara as exclusões implícitas e as ambiguidades devastadoras de um universalismo acima de toda a suspeita (MIRANDA, 2010, p.62)

É comum entre feministas a afirmação que Gouges foi condenada à morte pela defesa dos direitos das mulheres. É certo que seus posicionamentos eram ousados, e incluíam não só direitos das mulheres mas também abolição da escravatura nas colônias francesas e mudanças no sistema de casamento e herança. Porém, a motivação de sua morte está nos panfletos que escreveu durante a Revolução Francesa em defesa dos girondinos. Ela foi executada durante o Terror (BOCQUET, 2014).

Apesar de haver a proposta de igualdade, “a absoluta igualdade entre marido e mulher, alcançada no direito intermediário [entre 1791 e 1799], foi afastada, dando-se ao marido a primazia sobre a mulher” (FACCHINI NETO, 2013, p.69). Ao final, a Revolução Francesa não foi muito favorável às mulheres, mantendo a maior parte das incapacidades do Antigo Regime, especialmente em relação à vida pública e direito de voto:

a igualdade entre os sexos foi no entanto assegurada em matéria de maioridade e em matéria de sucessões, deixando de existir o privilégio da masculinidade. A mulher solteira deixou de ser ferida de incapacidade civil, podendo obrigar-se validamente sem curador ou

tutor. Em matéria de poder marital, os rigores do antigo direito costumeiro subsistiram no código civil. Napoleão interviera, de resto, pessoalmente, para manter a incapacidade da mulher casada; na verdade, não afirmava ele que “a natureza fez das nossas mulheres nossas escravas?” (GILISSEN, 1988, p.605).

O Código Civil francês, também chamado de Código Napoleônico (CODE NAPOLÉON, 1804) teve grande importância, não só para o direito francês, mas também influenciou outros países. Napoleão Bonaparte tinha a intenção de deixar um legado jurídico, e atribui-se a ele a ideia de que “minha verdadeira glória não consiste em ter ganho quarenta batalhas [...]; aquilo que nada apagará, e que viverá eternamente, é o meu Código Civil” (FACCHINI NETO, 2013, p.66). Para tanto, Napoleão aproveitou diversas condições propícias para consolidar a codificação na França:

Segundo os historiadores Jean e Brigitte Gaudemet, uma série de condições propícias à codificação estavam reunidas quando Napoleão assume o poder: 1) Napoleão tem a vontade de unificar politicamente a França, para o que era imprescindível a unificação jurídica do país. Sabia ele que os grandes governantes da história haviam deixado um legado de grandes obras legislativas; 2) a Revolução de 1789 já havia acabado com vários dos grandes obstáculos à unificação legislativa do país, ao eliminar as ordens, as corporações, os privilégios de castas, os particularismos locais; 3) embora as três tentativas de Cambacérès não tenham obtido êxito, elas abriram as mentes dos estadistas e juristas para a necessidade de codificar o direito -tal ideia dominava as mentes jurídicas de toda a Europa; 4) no plano de fundo, após dez turbulentos anos de Revolução, os franceses ansiavam pela paz social e pela estabilidade; a burguesia e os notáveis que sustentavam o poder de Napoleão queriam consolidar as conquistas jurídicas da Revolução; Napoleão já havia prometido isso ao proclamar, ao assumir o poder, que “La Révolution est fixée aux principes qui l’ont commencée; elle

est finie"; 5) o programa político de Napoleão pretendia garantir um

mínimo de liberdades civis ao cidadão, como uma espécie de compensação pela limitação das liberdades políticas impostas pelo regime do Consulado; as liberdades individuais seriam a contraparte

da autoridade política (FACCHINI NETO, 2013, p.66)

Essas condições foram propícias não só na França, mas também em outros países. Além dos territórios e colônias franceses, houve a expansão militarista napoleônica, obrigando à aplicação da legislação francesa, bem como o estudo dos códigos franceses. Assim, seja por imposição ou recepção voluntária, todos estes países e regiões receberam grande influência do Code Napoléon para a elaboração de sua legislação: Bélgica, Luxemburgo, territórios alemães, Prússia, Genebra, Sérbia, Romênia, Holanda, Alemanha, Suíça, Itália, Espanha, Portugal, Haiti, Bolívia, República Dominicana, México, Chile, Argentina, Brasil, Equador, Colômbia, Venezuela, Uruguai, Egito, Síria, Iraque, Somália, Líbia, Iêmen do Norte, Kuwait, Argélia, Marrocos, Tunísia, Senegal, Mauritânia, Níger, Mali, Guiné, Alto Volta, Costa do Marfim, Benim, Gabão, Congo, Chade, República Centro-Africana, Ruanda, Burundi, Louisiana, Québec (FACCHINI, 2013).

É importante destacar esta lista, pois tanto a legislação quanto a discussão sobre igualdade de direitos para mulheres tem muitas semelhanças nesses países, especialmente na Europa e América Latina. Uma teoria do século XIX (e ainda hoje bastante difundida) atribui essas semelhanças a um alegado desmoronamento do direito materno que existia nos primórdios da humanidade; o direito materno teria sido substituído pela família patriarcal, marcando o início da História Escrita (ENGELS, 2002, p.61-62). Porém esta teoria não foi confirmada e é bastante criticada como anacrônica e implausível (BAMBERGER, 1979; ELLER, 2000). A explicação para as semelhanças legislativas de todos esses países é mais recente e bem mais simples: trata-se de um código jurídico francês que foi imposto ou inspirou a legislação de cada um desses países ao longo dos séculos XIX e XX.

Os discursos sobre os papéis adequados para homens e mulheres, bem como a necessidade de subordinação feminina, influenciaram os discursos jurídicos. A legislação e os costumes incorporaram os padrões de pensamento que opunham homens a mulheres, racional a emocional, homem chefe de família a mulher tutelada por ele.

A aplicação desse discurso reforçou a concepção de que os direitos das mulheres referem-se apenas ao seu estado civil, impactando a própria forma

como o direito aborda com a condição feminina. Nos livros de história do direito, por exemplo, a referência a mulheres costuma ocupar poucas páginas, sempre relacionado à sua situação no contexto familiar. António Manuel Hespanha (2010) dedica 36 páginas exclusivamente para comentar o status das mulheres, esposas e viúvas no Antigo Regime. John Gilissen (1988), um dos autores clássicos de história do direito, escreveu uma introdução histórica ao direito com 812 páginas; destas, 10 páginas são dedicadas ao estatuto jurídico da mulher, 14 páginas aos regimes matrimoniais, e outras 10 páginas a casamento e divórcio.

O resultado é que a mulher é definida juridicamente pelo seu estado civil, pois ele determina os limites de seus direitos. São descritos três grandes sistemas nos estatutos jurídicos da mulher: a mulher, casada ou não, com mais ou menos os mesmos direitos que os homens; a mulher, casada ou não, como incapaz, sempre sob a autoridade de um homem; a mulher não casada tendo mais ou menos os mesmos direitos que os homens, e ao casar torna-se incapaz, ficando sob a tutela do marido (GILISSEN, 1988, p.600).

Este último sistema foi adotado tanto no Antigo Regime quanto no Código Civil francês, consolidando restrições à capacidade jurídica das mulheres no que se convencionou chamar de forma geral de "autorização marital”. Com efeito, o Code Napoléon assim definia a relação entre marido e mulher:

art. 213. O marido deve proteger sua esposa, a esposa deve obediência a seu marido

art. 214. A esposa é obrigada a viver com seu marido e segui-lo em todos os lugares. O marido é obrigado a receber a mulher e fornecer a ela todas as coisas necessárias para a vida, de acordo com suas condições e status

art. 215. A mulher não pode litigar em seu próprio nome sem autorização de seu marido, mesmo se se ela for comerciante, ou o casal tenha estabelecido regime de comunhão ou separação de bens

art. 217. a mulher casada em comunhão ou separação de bens não pode dar, alienar, prometer ou adquirir título gratuito ou oneroso sem a presença de seu marido ou autorização por escrito de seu consentimento.

Art. 220. A mulher, se for público que é comerciante, pode, sem a autorização do marido, obrigar-se no que concerne a seus negócios. Ela obriga também o marido se houver uma associação comercial entre eles. A mulher não é considerada comerciante se vende a varejo no comércio de seu marido, mas apenas se ela tem um negócio próprio/separado do dele

art. 222. Se o marido está interditado ou ausente o juiz pode, com conhecimento de causa, autorizar a mulher a litigar em juízo ou contratar.

Os artigos acima demonstram o amplo alcance da autorização marital. Não se trata apenas da necessidade de presença ou autorização expressa do marido para realizar contratos e comerciar. Trata-se também de decidir onde a mulher irá morar, bem como declarar que a mulher é subordinada ao marido e lhe deve obediência.

Outra questão que destaca a importância do marido refere-se à nacionalidade da mulher casada:

Art. 12. A estrangeira que se casou com um francês segue a condição de seu marido.

Art. 19. Uma mulher francesa que se casou com um estrangeiro segue a condição de seu marido. Se ela enviuvar, recupera a nacionalidade francesa, desde que ela resida na França, ou queira retornar com autorização do Governo, e declare que deseja retomar a nacionalidade.

Há a possibilidade da mulher ficar sem proteção estatal devido à nacionalidade. Afinal, se ela perde a nacionalidade para se casar com estrangeiro, mas a legislação do país dele nega a possibilidade de que ela adquira sua nacionalidade, ela se torna apátrida e extremamente vulnerável, visto que não está protegida pela legislação de nenhum dos países.

Além da necessidade de autorização do marido para exercer atos da vida civil, o Código ainda enunciou uma restrição que reforça a figura do chefe de família:

art. 373. O pai sozinho exerce a autoridade [parental] durante o casamento.

Este artigo consolidou o poder de pai de família, e não apenas o poder marital. Como o Código considera que a mulher deve ser tutelada pelo marido, ela não tem capacidade jurídica para exercer autoridade sobre os filhos, igualando-se a eles em termos de capacidade. Logo, a chefia da família fica exclusivamente a cargo do homem, pois é ele quem tem capacidade jurídica e titularidade desse direito.

Deve-se lembrar ainda que o filho menor de idade é tutelado pelo pai enquanto durar a menoridade. Segundo o art. 388, a maioridade se inicia aos 21 anos tanto para homens quanto para mulheres. A mulher maior de idade, ao se casar, perde a maioridade conquistada e retoma o status de subordinação e obediência, mas agora respondendo ao marido, e não mais ao pai. Por outro lado, se for conveniente para o pai, ele pode antecipar a maioridade do filho ao emancipá- lo.

Emancipação também foi sinônimo de luta das mulheres por igualdade de direitos. Referir-se à emancipação feminina, especialmente no final do século XIX, implicava em discutir mecanismos sociais e políticos para revogar as limitações à capacidade civil das mulheres, tornando-as iguais a homens adultos em termos de titularizar direitos no espaço público.

O processo emancipatório feminino pode ser descrito também como um processo de quebra da polarização entre grupos distintos. Defensores da autonomia feminina (tanto homens quanto mulheres) se uniram para estimular a emancipação. Inicialmente, a questão não estava focada na capacidade civil em si mesma, mas no acesso à educação em igualdade com os homens. Esta foi a primeira fissura nas esferas que opunham homens a mulheres, e se tornou o ponto de partida para a luta por igualdade de direitos e oportunidades.

3 Educação

Educar mulheres foi um tema recorrente nos séculos XVII a XIX. A dúvida acerca da capacidade feminina em receber educação, e de qual tipo (se voltada para os cuidados com a família ou igual à masculina), bem como as tentativas para definir essas questões, foram grandes fissuras nos grandes grupos polarizados.

A possibilidade da mulher receber a mesma educação que o homem levantou a dúvida sobre os compartimentos estanques dos grupos de homens x mulheres. Com a dúvida, vieram outras fissuras e oportunidades, como questionar lugares predeterminados na sociedade, e requerer a inclusão via substantivo masculino plural. Quando mais as mulheres desenvolviam suas habilidades, mais a fissura entre grupos ficava evidente, estimulando outras oportunidades de conquistas para mulheres rumo à igualdade de gênero.