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6 Estratégias de atuação

6.3 Poucas militantes em postos estratégicos

Outra tática utilizada pelas sufragistas foi aproveitar ao máximo seus contatos pessoais e profissionais para modificar a legislação referente às mulheres. Eram poucas militantes, mas seus contatos pessoais e profissionais possibilitavam acesso à imprensa e a políticos de destaque. Como resultado, divulgaram ideias feministas, estimulando o debate público sobre direitos das mulheres, e os políticos patrocinaram os projetos feministas.

O apoio ao sufragismo vindo de mulheres cultas que exerciam profissões ou pertenciam à elite política, tais como as mulheres casadas com líderes políticos como Justo Chermont, Félix Pacheco e Enéas Martins, ou eram socialmente influentes, como a escritora Júlia Lopes de Almeida, foram fundamentais para a aceitação inicial do sufragismo em 1922 (HAHNER, 2003).

Tome-se como exemplo as principais lideranças da FBPF:

Bertha era bióloga e servidora do Museu Nacional; Maria Eugênia Celso, poetisa e filha do jurista Conde de Afonso Celso; Jerônima Mesquita, herdeira do Barão de Mesquita; Ana Amélia Carneiro de Mendonça, casada com um empresário; Beatriz Pontes de Miranda, casada com um jurista de renome; Carmen Portinho, engenheira, e muitas outras eram advogadas (MARQUES, 2016, p.51)

Nessa lista a preponderância de mulheres ligadas a profissões liberais ou em posição social de destaque. Natércia da Silveira era advogada.

Leolinda Daltro destoa da lista por ser professora, mas deve-se lembrar ainda que ela é de geração anterior à das principais sufragistas da década de 1920.

O capital social dessas profissionais abria espaços na mídia e nas relações sociais com pessoas em postos-chave para as reivindicações feministas. "Apesar de serem poucas, sua força política era significativa por sua posição social. Eram mulheres ativas, que conseguiram eleger várias deputadas e vereadoras logo nas primeiras eleições” (ALVES, 1980, p.123).

Observação semelhante foi feita pela norte-americana Carrie Chapman Catt, que lutou pelo direito de voto feminino nos Estados Unidos (obtido em 1920) e esteve no Brasil em 1922 para impulsionar o movimento sufragista:

Carrie Chapman Catt tinha ficado muito impressionada com a situação do movimento sufragista feminino brasileiro. Observava que, apesar de algumas mulheres hesitarem em sair às ruas sozinhas, o Brasil tinha 'muitas mulheres médicas, dentistas, e advogadas; muitas escritoras capazes, escultoras, poetisas e pintoras; uma jovem e famosa aviadora; seis engenheiras civis; algumas mulheres engajadas no serviço químico do Departamento de Agricultura; e várias que (eram) bastante notáveis na ciência' (HAHNER, 2003. p.302).

Esta tática bastante eficaz não é exclusiva das sufragistas brasileiras. Pode ser percebida também em outros países e épocas, como notou o sociólogo Manuel Castells:

Por todo o mundo considerado em desenvolvimento, a situação é complexa e até mesmo contraditória. O feminismo como expressão ideológica ou política autônoma é claramente a "reserva ambiental” de uma

minoria formada por mulheres intelectuais e

profissionais, embora sua presença nos meios de comunicação

amplie seu impacto muito além do número que elas representam

. [...] Embora pertencer ao sexo feminino não seja garantia de feminismo e a maioria das mulheres envolvidas na vida política aja segundo a estrutura política patriarcal, seu impacto como modelo, principalmente para as jovens, e como forma de quebrar tabus da sociedade, não deve ser desprezado (CASTELLS, 1999, p.223; grifos nossos)

Embora esta análise se refira aos movimentos feministas dos anos 1960, pode também ser estendida às sufragistas brasileiras dos anos 1920, e também a outros grupos de mulheres que lutar por mudança na legislação sobre direitos das mulheres: eram poucas mulheres que tiveram acesso à educação, se profissionalizaram, e utilizaram seus contatos e estudos para angariar apoio de pessoas do mesmo estrato social que cooperaram para que tivessem acesso a meios de comunicação e ampliassem suas reivindicações. Nota-se aqui uma das características necessárias para a cooperação entre grupos distintos, que é o contato entre status iguais para quebrar estereótipos e auxiliar na conquista de um objetivo em comum (MYERS, 2014, p.387).

A referência de Castells à contradição e complexidade envolve, nos países em desenvolvimento, a atuação limitada pelas regras políticas tradicionais. A escolaridade, a articulação com pessoas ligadas ao governo, a negociação prévia, o cuidado para não adotar atos extremos ou violentos, são fatores que remetem ao estilo tradicional de fazer política.

As altercações entre Carlota de Queiroz e Bertha Lutz no exercício político indicam suas rivalidades e diferenças de estilo, tornando a análise de suas relações mais complexas: ambas desejavam políticas que beneficiassem mulheres, mas partiam de perspectivas diferentes (tanto profissionais, já que Lutz era cientista e advogada, e Queiroz, médica) e eram limitadas pelas articulações e apoios políticos dos meios em que viviam. Classificá-las em termos políticos é um desafio por causa dessas múltiplas facetas.

Apesar disso, é inegável a influência das sufragistas brasileiras no direito ao voto e início do processo de representatividade feminina na política. É é também um alento perceber que o direito ao voto é conquista da década de 1930, já antiga e consolidada, e não uma conquista dos anos 1970 (como é, por exemplo, o caso da Suíça), ou mais recente ainda, como o direito de votar na Arábia Saudita em 2015.

Outra observação de Castells sobre o movimento feminista que permite comparação é a referência ao feminismo espanhol dos anos 1970. O movimento está relacionado com a luta contra a ditadura franquista, e dela surgiram diversos grupos feministas autônomos:

Um dos movimentos mais inovadores e influentes foi o Frente de

Liberacion de la Mujer, sediado em Madri.

Contava com poucos

membros (menos de cem ativistas), mas concentrou seus

esforços nos meios de comunicação

, utilizando sua rede de mulheres jornalistas, ganhando, assim, apoio popular aos discursos e exigências da Mulher. Ergueu a bandeira do direito ao aborto, divórcio (ambos proibidos por lei naquela época na Espanha) e livre expressão para a sexualidade feminina, inclusive lesbianismo. Foi, antes de tudo um movimento influenciado pelo feminismo cultural e pelas ideias francesas e italianas de feminisme de la difference, mas participou, também das lutas políticas em defesa da democracia, juntamente com organizações femininas comunistas e socialistas.

(CASTELLS, 1999, p.225; grifos nossos)

O processo espanhol foi bem-sucedido em todos os âmbitos. A democratização espanhola em 1979 e a ascensão do Partido Socialista em 1982, propiciaram uma mudança drástica na configuração do feminismo espanhol, efetuando uma transição de luta por direitos para conquistas de direitos. Os movimentos autônomos feministas deram lugar à atuação institucional: ativistas passaram a ocupar posições de liderança no partido e no Parlamento, influenciando a legislação e políticas para mulheres. O direito ao divórcio foi conquistado em 1981 e o direito ao aborto, em 1984 (CASTELLS, 1999, p.226)

O processo feminista espanhol pode ser comparado com o brasileiro em dois aspectos: na luta contra uma ditadura (em sua segunda fase, pois na década de 1930 o sufragismo foi silenciado pelo Estado Novo) e no número reduzido de militantes, especialmente no que se refere a todas as lutas jurídicas, desde as sufragistas até a legislação do século XXI.

O movimento feminista brasileiro dos anos 1970 é enfático em considerar que a luta feminista ocorreu em paralelo com a luta contra a ditadura militar dos anos 1964-1985 (PINTO, 2003; TELES, 1999; BLAY, 2013; COSTA, 2005). Porém, a institucionalização do movimento, nos anos seguintes, não ocorreu da mesma forma que na Espanha. No Brasil, o foco foi tanto a influência em políticas públicas, criando Conselhos da Mulher, quanto na formação da Assembleia Constituinte, resultando na Constituição de 1988, com dispositivos que declararam a

igualdade entre homens e mulheres tanto no espaço público quanto no espaço privado.

Em relação ao número reduzido de militantes, essa foi efetivamente a realidade das sufragistas brasileiras. Estima-se que a ANM chegou "a ter três mil associadas, ao contrário da FBPF, que jamais ultrapassou o contingente de mil mulheres associadas” (COSTA, 1998, p. 96). Porém, nenhuma das muitas associações sufragistas que existiram ao longo dos anos 20 e 30 "se aproximou da FBPF em tamanho, extensão geográfica, ou amplitude da rede de contatos pessoais” (HAHNER, 2003, p.311). Em outras palavras, Hahner destaca a importância da FBPF pela capilaridade, tendo atuação em diversos estados, para além da capital do Brasil, e também pelos bons contatos pessoais das integrantes da organização. Essas características suplantaram o fato de que a ANM, mesmo tendo mais filiadas, não conseguiu a projeção nacional nem o impacto na luta por direitos que a FBPF obteve. Porém, não se pode negar que tanto FBPF quanto ANM tinham um número baixo de militantes efetivas.

Como visto, as sufragistas brasileiras na década de 1920 eram em número reduzido, mas conquistaram o direito de voto e patrocinaram o projeto de Estatuto da Mulher. Nas décadas de 1950-1960 a mobilização para o Estatuto da Mulher Casada envolveu poucas mulheres, notadamente Romy Medeiros da Fonseca e Orminda Bastos no Instituto dos Advogados Brasileiros, e mais os parlamentares que apoiavam o projeto. Embora o feminismo da década de 1970 tenha sido intenso, a luta por mudanças jurídicas na esfera cível foi capitaneada por poucas mulheres, como Silvia Pimentel e Florisa Verucci, que procuravam aprovar o Estatuto da Mulher. A mobilização para a Assembleia Constituinte na década de 1980 parece ter envolvido mais mulheres, mas, mesmo assim, as lideranças não parecem ter chegado à centena.

Não se pode negar, portanto, que tanto sufragistas quanto as mulheres que lutaram para a mudança dos demais dispositivos legais que as sufragistas apontaram como necessários para igualar direitos entre homens e mulheres, formavam grupos pequenos. Esses grupos souberam aproveitar oportunidades e contatos pessoais, e utilizar meios de comunicação para ampliar sua voz e promover mudanças efetivas na situação das mulheres brasileiras.

7. O projeto de Estatuto da Mulher proposto pela