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Ainda hoje, quando se menciona o termo sufragismo, a grande referência são as militantes britânicas do início do século XX autodenominadas suffragettes. Suas passeatas, prisões e lutas foram divulgadas em jornais do mundo todo, tornando-as, no imaginário popular, sinônimo de luta feminista pelo direito de voto. A repercussão de suas ações interferiu na mobilização sufragista de diversos países, inclusive do Brasil. Para compreender essa relação é necessário esclarecer a história do sufragismo britânico.

As suffragettes não foram a única mobilização pelo direito de voto. Quem defendia o direito de voto para mulheres era chamada (ou chamado, pois não havia restrição a apoiadores) de sufragista (suffragist). Por décadas as feministas britânicas estiveram focadas em discussões com autoridades políticas e legisladores, a começar pelo notório apoio de John Stuart Mill em meados do século XIX. A organização mais influente no fim do século XIX era a NUWSS (National Union of Women’s Suffrage Societies), liderada por Millicent Fawcett, mas também havia outras como Women's Freedom League, Actresses' Franchise League (WALTERS, 2005, p.77).

Em 1903 houve uma ruptura na NUWSS. Emmeline Pankhurst e suas filhas Christabel e Sylvia fundaram a WSPU (Women’s Social and Political Union). Eram chamadas de suffragettes, e não de sufragistas.8 O grande diferencial está no estilo de militância, pois as suffragettes da WSPU se notabilizaram por ir além da persuasão em gabinetes de parlamentares, estimulando conflitos. Mobilizaram a opinião pública utilizando a mídia a seu favor. Tinham um periódico próprio, organizaram passeatas e discursos, as militantes usavam roupas padronizadas, as passeatas eram organizadas para serem fotografadas e divulgadas pelos jornais. As prisões, greves de fome e alimentação forçada também recebiam ampla cobertura da mídia.

Porém, outros atos foram muito mal recebidos, tanto pela opinião pública quanto pelo Estado. Embora publicamente negasse ou tentasse minorar seus efeitos, a WSPU patrocinou a atuação violenta de suffragettes principalmente entre 1911 e 1914 (BEARMAN, 2005).

Dentre os atos violentos cometidos pelas suffragettes pode-se citar bombas na casa de parlamentares contrários ao direito de voto para mulheres, destruição de vitrines e janelas a cada ato legislativo contrário ao direito de voto, a destruição de um quadro da National Gallery em protesto pela prisão de Emmeline Pankhurst. Bombas foram colocadas em caixas de correio e cabos de telégrafo foram cortados, interrompendo os grandes meios de comunicação da época. Provocar incêndios foi uma tática frequente: seus alvos foram castelos na Escócia, igrejas antigas, a Carnegie Library, bem como prédios abandonados. Também houve a tentativa de incendiar um teatro lotado em Dublin (WALTERS, 2005, p.80-82; BEARMAN, 2005).

Os atos violentos tiveram como resultado não só rupturas dentro da organização, mas principalmente o repúdio da opinião pública, inclusive com repercussão internacional. A luta sufragista em outros países, para ser bem- 8 A mais recente obra que divulga, de forma romantizada, a atuação das suffragettes foi o filme

Suffragette (2015). O título foi traduzido como "As Sufragistas” tanto no Brasil quanto em Portugal. Esta é uma tradução que induz ao erro: o filme narra parte da história das suffragettes, pois era assim que se intitulavam as militantes da WSPU (Women’s Social and Political Union). Sufragista refere-se a qualquer pessoa que defenda o direito ao voto feminino e que não pertença à WSPU.

sucedida, precisou repudiar explicitamente as suffragettes, não endossando sua atuação nem repetindo suas ações violentas.

Em termos de estratégia, como vimos, a FBPF seguiu as pegadas da NAWSA, afastando-se cuidadosamente da má reputação das

“suffragettes". Bertha Lutz diz logo em sua primeira carta pública que

não tenciona quebrar “as vidraças da Avenida”, procurando deixar bem estabelecidas suas intenções pacíficas. (ALVES, 1980, p.132)

Outro ato extremo relacionado às suffragettes refere-se à morte da militante Emily Davison. Ela participou de diversas ações violentas da WSPU, passando também pelo processo de prisões, greves de fome e alimentação forçada. Na importante corrida de cavalos Epsom Derby de 1913, Davison invadiu a pista e se jogou na frente do cavalo do rei (THE DERBY, 2013)9. Após ser atropelada pelo cavalo, Emily Davison ficou inconsciente, falecendo alguns dias depois.

O caso de Emily Davison é uma incógnita: embora se suponha que ela tenha agido em nome da WSPU, não há indícios de que esse ato tenha sido planejado ou autorizado pela organização. Também não é possível dizer que foi um suicídio planejado. A julgar pela quantidade de selos e papéis de carta que estavam com ela, supõe-se que Davison havia planejado divulgar a causa sufragista via cartas que escreveria enquanto estivesse se recuperando no hospital (TALBOT, 2014). Nesse caso, ela teria subestimado as circunstâncias da corrida, inclusive a velocidade do cavalo, que foi determinante para sua morte. A WSPU patrocinou o funeral, que recebeu ampla divulgação na mídia e foi acompanhado por milhares de pessoas. Mas o apoio público à WSPU diminuiu consideravelmente (WALTERS, 2005).

Após o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, a WSPU nunca mais reivindicou direito de voto feminino ou qualquer outro direito para mulheres. Emmeline e Christabel Pankhurst, que fundaram a WSPU como organização socialista e pacifista, foram para o extremo oposto: tornaram-se patriotas, utilizando 9 O Epsom Derby é uma corrida importante e recebeu a cobertura da mídia mais moderna da

época: o filme. O atropelamento de Emily Davison foi registrado em vídeo (THE DERBY, 2013), preservado no arquivo do British Film Institute (BFI) e se encontra disponível online no canal do BFI do Youtube.

a estrutura da WSPU para mobilizar soldados, endossar esforços de guerra e combater pacifistas. Elas se opuseram às suffragettes pacifistas e socialistas, abandonando tanto o socialismo quanto a causa sufragista (TALBOT, 2014).

A oposição ao voto feminino arrefeceu ao perceber que as intensas migrações, mortes e mudanças sociais durante a guerra alteraram o cenário previsto para eleições. Ou a legislação eleitoral sofria alterações, inclusive incluindo mulheres como eleitoras, ou não haveria eleições. As sufragistas constitucionalistas, que continuaram as negociações parlamentares mesmo quando o destaque midiático e o tom das reivindicações estava focado na WSPU, intensificaram as negociações. O direito de voto (parcial) foi conquistado em 1918. O voto para todas as mulheres foi conquistado em 1928.

Existe uma tendência de atribuir a conquista do direito de voto só às suffragettes porque elas se tornaram a face mais conhecida do movimento pelo voto feminino, trazendo visibilidade à causa. Embora as interpretações recentes procurem suavizar a história e destacar a questão da visibilidade, as táticas de conflito adotadas por elas geraram mais hostilidade em sua época do que propriamente benefícios ao movimento.

A atuação das suffragettes foi efêmera mas muito difundida, prejudicando a divulgação do sufragismo em outros países. Bertha Lutz publicou artigo propondo um movimento feminista mas fez uma ressalva incisiva: “Não proponho uma associação de "suffragettes" para quebrarem as vidraças da Avenida” (LUTZ, 1918). A rejeição da opinião pública às suffragettes forçou as sufragistas, inclusive no Brasil, a terem uma atuação mais diplomática para se dissociarem da imagem de radicalismo e violência das suffragettes.