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Os diversos efeitos de sentido irônico nos jornais

A IRONIA NOS TEXTOS DE JORNAIS

NÚMEROS ABSOLUTOS E PERCENTUAIS DE TEXTOS E DE IRONIAS POR MODALIDADE EM CADA JORNAL

4.7 Os diversos efeitos de sentido irônico nos jornais

[A ironia tem relevância para o jornalismo impresso] em alguns momentos, porque torna o texto mais “atraente”. Mas algumas vezes a ironia utilizada não passa de exibicionismo ou exacerbação do ego.

(Repórter pesquisado, há 6 anos no jornalismo)

A partir daqui, a atenção volta-se para a apresentação de algumas ironias não assumidas encontradas nos jornais analisados, tentando evidenciar tanto aquilo que é motivo de ironia quanto as formas de fazê-lo, além de observar os papéis que desempenham na enunciação jornalística, como proposto em um dos objetivos deste estudo. Ao se desenvolver esse exercício, tem-se como horizonte a maneira como foram conduzidos os trabalhos de Freud (1977), quando inventaria as técnicas de construção do chiste; de Bergson (2001), quando discorre sobre as formas que possibilitam o riso; de Muecke45 (1995), quando fala sobre as circunstâncias que instaurariam a ironia; de Brait (1996), quando retoma os dois primeiros e também discute exemplos de efeitos de sentido irônico em capas de jornais numa perspectiva polifônica e discursiva; de Carvalho (1998), quando estuda os recursos estilísticos usados na construção de publicidades impressas; e de Hutcheon (2000), quando postula que a ironia possui uma aresta avaliadora e se apresenta como um sentido resultante de outros dois, que, sem serem anulados ou substituídos, servem de base para o efeito irônico se constituir.

Uma das hipóteses do início deste estudo postulava que a ironia desempenha fundamentalmente um papel crítico e derrisório na enunciação jornalística, nos mais variados assuntos e gêneros. Tal hipótese se fundamenta em outra, implícita, de que a produção jornalística não trabalha com a idéia de uma forma lingüística única para a ironia, por dois motivos: por desenvolver um processo enunciativo criativo (embora regrado) afim com seus interesses, que, por outro lado, tende a se aproximar do seu público numa linguagem cotidiana, na qual se encontra uma multiplicidade de entendimentos de sentidos irônicos e não apenas aquele de “dizer algo para se entender o oposto”.

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As datas de publicações originais dos trabalhos de Freud, Bergson e Muecke são bem anteriores às traduções brasileiras: Freud, em 1905; Bergson, em 1899 e 1924 (reunidos em único livro em 1924); Muecke, em 1970, (atualizado em 1982).

Para falar de sentido irônico na enunciação jornalística, é preciso ter em mente haver dois momentos como parte da produção desse sentido, correspondentes ao que e ao como da proposição da ironia: a) um momento inicial a ser avaliado pela instância jornalística como portador ou não de ironia, que pode incidir sobre o acontecimento, sobre seus sujeitos ou ambos; b) o momento e a forma da construção ou reconstrução do sentido irônico na enunciação jornalística repassada como produto a ser consumido pelos leitores (que redunda na modalidade do dizer). Claro, não se pode esquecer o papel do público leitor como co- responsável em fazer a ironia acontecer.

À primeira vista, este esquema parece similar ao da explicitação da ironia, mas há diferença. Nas ironias explicitadas, elas são atribuídas a alguém ou, no mínimo, às estranhas situações do mundo e da vida, em que a enunciação jornalística se apresenta (veladamente) como observadora e relatora. Nas ironias não assumidas, a instância jornalística também observa e avalia, mas, desta vez, não atribui a alguém a responsabilidade pela ironia, que será proposta a partir de uma determinada maneira de apresentar a enunciação, no texto ou em todo o conjunto jornalístico formado por texto, imagem, edição e diagramação.

É válido argumentar que muitas dessas ironias também poderiam ser explicitadas, tomando como modelo as formas relacionadas nos tópicos anteriores. Porém, haveria excesso de explicitação, diminuindo um dos efeitos do fenômeno, justamente aquele de ser cortante, ferino, retomando aqui os termos de Hutcheon (2000). Em movimento contrário, nota-se que as ironias explicitadas a partir das situações (e não sobre o uso da ironia por alguém) também poderiam não ser assumidas. Assim, chega-se à constatação de que apenas aquelas ironias em que algum sujeito da notícia explicitasse esse uso sobre um outro alguém seriam incluídas, e tais ocorrências seriam mínimas, para não dizer insignificantes, como foi possível observar no

corpus.

De qualquer maneira, o fio condutor da distinção pode ser designado à posição de observador e de relato desempenhada pela instância jornalística, se a considerarmos também como um sujeito dotado de competência discursiva, como qualquer outro sujeito de discurso. Sob esse prisma, seria aceitável sua avaliação de uma fala como tendo tom irônico, como qualquer sujeito em discurso faria cotidianamente. E, a partir disso, mantêm-se as noções de

relato do acontecimento irônico (que pode ser explicitado ou não) e de criação de uma ironia

sobre algo ou alguém (parte das ironias não assumidas).

Em resumo, as explicitações de ironia pela instância jornalística parecem ter como matriz aquelas do uso cotidiano, baseadas principalmente em situações de ironia observável e em casos de alguém ironizando outro. Nas ironias não explicitadas pela enunciação jornalística, a

ironia é produzida (ou proposta, porque depende do co-enunciador para se efetivar) tanto a partir de alguns tipos de ironia observável como da ironia verbal.

Isso coaduna com a observação de Giora (2003) de que a ironia tanto pode incidir sobre uma situação como sobre a fala de alguém. Em outras palavras, não só um dito anterior (próprio ou de alguém) pode ser retomado e ironizado, como também uma situação. Justamente por isso, a teoria da ironia como menção de Sperber e Wilson (1978) foi criticada por Giora (2003), que a considerou incompleta, pois centra o fenômeno da menção sobre o aspecto verbal.

Por outro lado, Freud, a propósito do chiste, já tinha afirmado que “a necessidade sentida pelos homens de derivar prazer de seus processos de pensamentos [estaria] criando novos chistes com base nos acontecimentos do dia” (1977, p. 146). Quase um século depois, essa seria uma possível explicação (psicanalítica) para a multiplicidade de usos da ironia, explicitada ou não, nas páginas jornalísticas, quando a mídia passa a desempenhar papel crucial na sociedade contemporânea de várias maneiras, em que a vigência de uma comunicação irônica (nos termos de Jeudy, 2001) estaria cada vez mais acentuada.

A partir deste ponto, são apresentados exemplos do corpus a fim de se evidenciar as fontes e a natureza do sentido irônico, assim como as formas que pode assumir nas páginas jornalísticas, já que uma das hipóteses de partida postulava ter a ironia formas diversas, em que “significar o contrário do que se diz” seria apenas uma delas.

Quando o destino trama...

A análise do corpus mostrou que ironias observáveis podem ser explicitadas ou não e tanto num como noutro caso podem caracterizar-se pela coincidência inusitada ou inesperada, pela incongruência de uma situação, como se o destino tivesse o poder de tramar contra os rumos de alguém, de “pregar peças” quando menos se espera ou não deveria acontecer. A instância jornalística, como observadora onisciente, acompanha, registra, avalia e explicita ou não em sua enunciação a ocorrência de tal ironia.

A maioria das Ironias Observáveis chegam até nós já prontas, já observadas por alguém mais e apresentadas totalmente formadas no drama, na ficção, no filme, nas pinturas e desenhos, nos provérbios e ditos, de tal modo que o papel do público ou leitor é muito menos ativo do que o leitor desafiado para um jogo de interpretação por um Ironista Instrumental. (Muecke, 1995, p. 61).

Muecke (1995, p. 61) enumera entre os ironistas instrumentais46mais ativos o dramaturgo, o romancista e o cartunista observadores. Tanto como “ironista instrumental” como “ironista observador”,47a essa lista talvez pudesse ser acrescentado o jornalista. Numa produção diária e incessante, esse profissional vê-se às voltas com a construção de textos e edições que obedecem a rotinas e técnicas de elaboração, resultando em muitos produtos “irônicos”, como o material analisado neste estudo pôde constatar.

Dois casos publicados por O Liberal ilustram o que pode ser rotulado de trama do destino, visível na situação de cúmulo (Muecke, 1995) de cada um deles. Seriam, pois, ironias observáveis.

[22]:

Pátio – Uma morte inusitada ocorreu na madrugada de ontem, no bairro do

Guamá. Luiz Fernando Monteiro da Gama, de 38 anos, morreu ao cair de cima do pátio da casa de seu vizinho, o marceneiro José André do Rosário Silva, 26 anos, residente na rua Augusto Corrêa, passagem Fé em Deus, 57. Como relatou José André à autoridade policial, Luiz Fernando havia acabado de ir para a casa dele, após beber com amigos, em um bar. A vítima tinha o costume de urinar do pátio da casa de José André para a casa ao lado. Mas deve ter se desequilibrado e caído. (...)

(O Liberal, editoria Cidade, p. 9, 04/11/2002, notícia)

[23]:

Ambulante mata outro na frente de cemitério (título)

Um ambulante assassinou outro, com uma facada, em pleno Dia de Finados, em frente ao Cemitério Recanto da Saudade. (...)

(O Liberal, editoria Mundo, p. 10, 04/11/2002, notícia)

A possibilidade de ironia em [22] e [23] se encontra na forma do inusitado – como assinala a enunciação jornalística – e da coincidência trágica: em [23], pelo fato de o assassinato ter ocorrido em frente a um cemitério e justo (“em pleno”) no Dia de Finados; em [22], pelo desfecho de um ato rotineiro, embora fora dos padrões sociais (urinar para a casa do vizinho), tendo a vítima moradia na passagem Fé em Deus. Pode-se argumentar que a citação

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Lembrar, como tratado no capítulo teórico sobre ironia, que, em Muecke (1995), as ironias verbais ou instrumentais são tratadas como equivalentes, havendo uma certa flutuação ao longo do livro quanto a isso, às vezes gerando dúvida quanto ao entendimento.

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A expressão “ironista observador” está sendo proposta numa analogia a “ironista instrumental”, de Muecke (1995).

do endereço das vítimas é prática rotineira no jornalismo. Nesse caso em particular, a notícia veio como parte de um texto maior, com dois outros casos policiais de assalto, redigidos de maneira independente, mas em seqüência. Apenas o texto de [22] continha menção ao endereço do envolvido, o que permite sugerir que a enunciação jornalística jogou com o nome da passagem (Fé em Deus), a prática cotidiana da vítima (urinar para a casa do vizinho) e o desfecho trágico resultado dessa prática (cair e morrer quando urinava para a casa do vizinho). Esse tipo de construção não é novidade nas páginas jornalísticas, constituindo quase uma fórmula para o que de há muito é classificado como faits divers, aquelas notícias pitorescas, inusitadas, incongruentes, que freqüentam o jornalismo ao redor do mundo. Tal tipo de ironia parece servir, embora com recurso ao pitoresco e ao inusitado, para se pensar a pequenez do homem e a inesperabilidade da trajetória humana na vida, e nem sempre apresenta uma natureza crítica ou derrisória.

[22] Pátio

[23] Ambulante mata outro na frente de cemitério O Liberal, editoria Mundo, p. 10, 04/11/2002

Ironias sobre situações curiosas e engraçadas

Ao lado das ironias de situação, foi possível listar aquelas que podem ser consideradas como curiosas e engraçadas, aproximando-se do humor e divergindo, de certa forma, do que se postulava no início deste estudo, quando se afirmava terem as ironias fundamentalmente um papel de crítica. Esse tipo de ironia e algumas ocorrências de ironias observáveis (por exemplo, do destino) sugerem, portanto, a necessidade de alargar a concepção acerca da natureza da ironia no jornalismo impresso, embora a análise evidencie que o papel de crítica seja preponderante. Comparemos os textos de [24] e [25].

[24]:

O Viagra ou a vida! Isto é um assalto! (título)

(...) O assaltante exigiu do farmacêutico que lhe entregasse, além do dinheiro apurado no dia, três caixas de Viagra. “Parecia muito mais interessado mo medicamento do que no dinheiro”, declarou o farmacêutico.

(O Liberal, editoria Mundo, p. 9, 22/11/2002, nota)

Neste caso o alvo da ironia seria a situação vivida pelos sujeitos da mesma, situação essa considerada pela ótica jornalística como curiosa ou inusitada (um ladrão que está mais interessado em Viagra48 do que em dinheiro). Lendo Bergson (2001, pp. 49-98), talvez fôssemos tentados a ver aí apenas um caso de riso, com o uso da técnica da transposição, em que a expressão “O Viagra ou a vida! Isto é um assalto!” substitui o conhecido enunciado “O dinheiro ou a vida! Isto é um assalto”, apresentado pelo enunciador como uma citação hipotética da fala do assaltante. Todavia, o título introduzido pela instância jornalística tem o poder de assinalar uma posição avaliativa do enunciador sobre a situação retratada (um ladrão que rouba Viagra) e também para a extensão do que isso representa, ou seja, a possível carência ou deficiência sexual do ladrão. Se o título fosse, por exemplo, “Ladrão assalta farmácia e rouba Viagra” ou “Ladrão rouba Viagra”, a estranheza do assunto ainda estaria lá, mas não tão assinalada pelo enunciador no título, que teria um papel mais de relato e menos avaliativo.

Adotando a classificação de Muecke (1995) entre ironias observáveis e verbais, este seria um caso de ironia observável, por estar a estranheza na situação. Porém, para atribuir à enunciação jornalística a percepção da ironia de tal situação e sua posterior proposição ao público na forma de notícia, recorremos à avaliação do título, uma criação da instância

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enunciativa que evidencia essa percepção e ao mesmo indica ou estabelece o efeito de ironia para o público. Por isso, concordamos novamente com Muecke (1995), quando diz que a ironia está apenas potencialmente no fenômeno, mas depende do enunciador para se estabelecer. Por outro lado, para esse sentido se completar como irônico, dependerá da participação do leitor, quando fizer a sua leitura e atribuir um determinado sentido (Hutcheon, 2000; Fausto Neto, 1999).

Na nota seguinte uma possível situação de riso se presta a uma crítica, desenvolvida pela instância jornalística.

[25]:

Data venia (título)

O tombo de uma conselheira suplente do TCE ao entrar na sala de sessões ontem à tarde evidenciou o excesso de formalidade da corte:

- Eminente presidente conselheiro Gleno Scherer, peço desculpa pelo atraso,

ex abrupto, de certa forma intempestiva, como adentrei no plenário desta

corte. Acontece que a barra de minha toga apaixonou-se pelo salto de meu sapato.

O barulho do tombo ecoou pelo recinto, quebrando o ambiente solene. O conselheiro Lorenzon, que relatava um processo, parou de falar enquanto funcionários partiam em socorro da colega estatelada no chão.

(Zero Hora, editoria Página 10, p. 10, 07/11/2002, nota da coluna Página 10)

Nesta nota, a situação tragicômica (queda da conselheira durante a sessão e pedido de desculpas) é vista como absurda e serve de ponto de partida para a crítica ao “excesso de formalidade da corte”, o TCE.49A descrição da cena da queda pelo colunista, a citação da fala da conselheira em discurso direto (de maneira formal, inclusive com palavras em latim) e a informação dos funcionários partindo “em socorro da colega estatelada no chão” criam um cenário que possibilita o efeito de ironia coroado no título, a reprodução, em latim, de uma conhecida expressão do meio jurídico (Data venia), que pode ser traduzida, nessa situação, como um pedido de desculpas, com extrema formalidade.

Se se pode até dizer que a nota traz o relato de um acontecimento, o título é, mais uma vez, resultado da avaliação do enunciador, como um acréscimo que propõe ou direciona efeitos de sentido ao texto que se segue. A ironia jornalística, então, recai sobre o excesso de formalidade das reuniões do TCE no Rio Grande do Sul, mas tem o poder de alcançar os

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demais ambientes dos tribunais no país, que funcionam similarmente. Enquanto em [24] pode-se dizer que a ironia é “humorada”, em [25] o efeito de riso pode até ocorrer, mas tende mais à crítica (da formalidade do Tribunal).

[24] O Viagra ou a vida! Isto é um assalto! O Liberal, editoria Mundo, p. 9, 22/11/2002

[25] Data venia