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CAPÍTULO 1 SOBRE IRONIA

1.4 A perspectiva retórica

Para os retóricos, há ironia quando, através do que nós dizemos, nós significamos o contrário.

(Vossius, 1978, p. 498)

São diversos os trabalhos produzidos sobre a ironia no âmbito da retórica e vamos aqui fazer apenas algumas menções mínimas. A retórica foi definida de maneiras variadas ao longo do tempo. Para Aristóteles, a tarefa da retórica “não consiste em persuadir, mas em discernir os meios de persuadir a propósito de cada questão” (s.d., p. 31). Em outras palavras do mesmo autor, o papel da retórica seria distinguir “o que é verdadeiramente suscetível de persuadir do que só o é na aparência”. Lausberg (1982, p. 75), por sua vez, distingue “retórica em sentido lato” da “retórica em sentido restrito” (ou “retórica escolar”): a primeira compreende a “arte do discurso em geral” do indivíduo na sociedade e a segunda, a “arte do discurso partidário”, especialmente diante dos tribunais. Ainda segundo Lausberg (1982, p. 75), a retórica “é um sistema mais ou menos bem elaborado de formas de pensamento e de linguagem, as quais podem servir à finalidade de quem discursa para obter, em determinada situação, o efeito que pretende”.

Nos estudos da retórica, a ironia é classificada como tropo ou como figura, dividindo os autores quanto à pertinência de um ou de outro entendimento. Quintiliano (1944) e Vossius

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Para tentar deixar mais claro: o elaborador do chiste seria a primeira pessoa; a vítima do chiste a segunda e a quem se conta, a terceira. Quem elabora/conta e quem recebe o chiste acabam sendo a primeira e a segunda pessoa nos moldes benvenistianos.

(1978) são dois outros autores clássicos sempre mencionados e que diferem em entender a ironia como tropo ou como figura. Para Quintiliano, a ironia pode fazer parte de ambas as categorias, postura que recebeu crítica de imprecisão por parte de Vossius, que a situa no conjunto das figuras. Quintiliano (1944, p. 378) define tropo como “a mudança do significado de uma palavra para outro, mas com graça”, dividindo-os em tropos por razão de significação e tropos de adorno. Os de significação seriam a metáfora, a sinédoque, a metonímia, a antonomásia, a onomatopéia e a catacrese (pp. 378-384). Entre os tropos com finalidade de adorno estariam o epíteto, a alegoria, o enigma, a ironia, a perífrase, o hipérbato e a hipérbole.

Aquele tropo em que se mostram coisas contrárias é ironia: chamam-na irrisão ou mofa e se conhece pelo modo de dizer, pela pessoa ou pela natureza do assunto. Pois se alguma dessas coisas não se conforma com o que soam as palavras, claro está que se quer dizer coisa diversa do que se diz. (Quintiliano, 1944, p. 387).

Quintiliano (1944, p. 392) não deixa de comentar a confusão existente entre as definições de tropo e figura, já naquela época [ele viveu entre c.35-c.95 d.C.]. Para o autor, tropo e figura têm o mesmo uso, acrescentando “força às coisas” e dando-lhes graça.

É, pois, o tropo um modo de falar deslocado da natural e primeira significação a outra para o adorno da oração, ou, como os demais gramáticos a definem, é uma expressão deslocada daquele lugar em que é própria para aquele em que não é própria. A figura (...) é uma maneira de falar afastada do modo comum e mais óbvio (...) figura não é outra coisa que um novo modo de dizer com algum artifício. (Quintiliano, 1944, p. 392-393).

Ainda no plano das definições, o autor (1944, p. 392) diz que nos tropos se põem umas palavras por outras, o que não ocorre nas figuras, já que “a figura pode formar-se nas palavras próprias pela ordem em que são colocadas”. De acordo com Quintiliano (1944, pp. 394-404), assim como os tropos, também as figuras se dividem em duas partes: as figuras de sentenças e as de palavras. As figuras de sentenças serviriam para provar e para excitar os afetos, mas não fica claro qual seria o papel das figuras de palavras. A ironia estaria incluída entre aquelas que excitam os afetos. Na avaliação do autor (1944, pp. 400-401), ironia como tropo e como figura não seriam muito diferentes quanto ao gênero, porque num e noutro caso dão a entender o contrário do que soam as palavras. Entretanto, seriam diversas quanto às espécies por que: a) o tropo é mais claro, não finge outra coisa; b) é mais breve; c) as palavras são

diversas umas das outras; d) a figura é menos manifesta; e) na figura, é diverso o sentido que as palavras soam.

Na verdade, é possível dizer que Vossius (1978) teve razão quando criticou a falta de rigor de Quintiliano na sua classificação da ironia como tropo e como figura. Além disso, Quintiliano (1944) é confuso em algumas definições. Um exemplo disso é quando diz que “ironia é quando aparentamos mandar ou permitir uma coisa que em verdade não mandamos nem permitimos” (1944, p. 401). Maruxo Jr (2002, p. 17) conclui que, para Quintiliano, “haveria duas classes de ironia, distinguíveis, em princípio, pela atitude do ironista: aquela em que ele se permite perceber como irônico e a em que ‘esconde’ sua atitude irônica” (Maruxo Jr, 2002, p. 17). Castro (1990, p. 16) avalia que, em Quintiliano, a ironia é techné, como parte da proposta de falar bem, causando admiração e prazer. O princípio do autor seria de que o “domínio da palavra confere ao orador domínio do mundo e dos outros” (1990, p. 16).

Após Quintiliano, Vossius (1577-1649) é considerado um autor que desempenha uma etapa importante na reflexão retórica sobre a ironia. Ele listou quatro tropos como principais, sendo eles a metáfora, a metonímia, a sinédoque e a ironia, que teriam em comum a característica de provocar a “mudança de significação de uma palavra, em decorrência de uma atração ou relação mútua das coisas entre elas” (Vossius, 1978, p. 497). De acordo com o critério da qualidade estilística e do uso, o tropo mais usado seria a metáfora, e o menos freqüente, a ironia (na seqüência em que são mencionados acima). Depois de classificar a ironia como um dos quatro tropos principais, Vossius (1978, p. 498) comenta a diferença de definição entre os retóricos e os escritores. Para estes, a ironia seria dissimulação (dissimulatio), a arte de esconder seu pensamento (dissimulantia). Segundo Vossius, por essas duas expressões Cícero teria traduzido a palavra grega eironeia.

Mas para os retóricos, há ironia quando, através do que nós dizemos, nós significamos o contrário. E isso a etimologia mesma indica. IRONIA provém do verbo EÏREÏN (dizer), se bem que literalmente o termo signifique “palavra” ou “boa palavra” (dicterium). O fato é que, pelo emprego da ironia, nós dizemos qualquer coisa, mas nós nada significamos do que dissemos em termos próprios. (Vossius, 1978, p. 498).

Como reconhecer uma ironia e estar seguro disso? Para Vossius (1978, p. 501), é preciso estar atento às circunstâncias e a tudo para evitar duas coisas: a) supor a ironia onde ela não está e, b) onde ela estiver, [evitar] tomar as palavras em seu sentido próprio. Não sem alguma ironia, Vossius critica Quintiliano pela classificação da ironia como tropo e como figura. Para

ele, a ironia faz parte da categoria dos tropos porque, por ela, se diz uma coisa e se significa outra, enquanto a figura é formada de palavras tanto próprias quanto figuradas (1978, p. 503).

A discussão entre o que se considera tropo e figura e onde a ironia se encaixaria perdura até hoje. Em Charaudeau e Maingueneau (2004, pp. 237-238, 487-488), as definições dos verbetes figura e tropo têm como base o estudo clássico de Fontanier18 que, a partir da produção retórica anterior, elabora uma lista de sete classes de figuras, de acordo com gêneros, espécies e variedades. Nesse contexto, o tropo deixa de ser uma categoria no mesmo plano de figura e é apresentado como uma subclasse desta, como figura de significação (com base em uma transferência de sentido). As divisões e definições apresentadas por Fontanier lembram as encontradas em Quintiliano (1944), de certa maneira.

Em suma, as figuras estariam no “uso da língua que se distancia mais ou menos da expressão simples e comum” enquanto os tropos seriam uma subclasse das figuras de retórica, as figuras de significação, “por meio das quais atribui-se a uma palavra uma significação que não é precisamente aquela própria dessa palavra”. A ironia faria parte dos “tropos em várias palavras ou impropriamente ditos” (Charaudeau, Maingueneau, 2004, pp. 238, 487).

Maruxo Jr (2002, p. 20) constatou em seu estudo que “quando se trata do discurso da imprensa, percebe-se que as abordagens retóricas são insuficientes como meio de analisar a ironia nesses discursos”. Num dos textos que analisou da revista francesa L’Express (de 11/11/1999), ele pôde observar a constituição da ironia pouco a pouco, desde o trocadilho do título, o jogo entre o texto e a foto, o acúmulo de contrastes entre as pessoas abordadas (o príncipe herdeiro belga e sua futura esposa), até a conclusão do texto.

Não é possível localizar precisamente um enunciado irônico e demarcá-lo, não há uma antífrase, ou melhor, um enunciado antifrástico; é o texto como conjunto que se configura irônico, a ironia neste caso é constitutiva do texto (é, portanto, um elemento do discurso). (Maruxo Jr., 2002, p. 20).

As análises de Brait (1996) acerca da produção de sentido em capas de jornais brasileiros também são bons exemplos nessa direção. Concordamos com a afirmação de Maruxo Jr. quanto a insuficiência das abordagens retóricas para explicar a ironia em textos impressos, a partir também da análise do corpus do nosso estudo. Apesar de a concepção de ironia como antífrase (“dizer algo para se entender o contrário”) ser a mais conhecida ao longo do tempo, ela parece estar pouco presente nos textos dos jornais, embora também seja usada. Nesses textos, parece mais pertinente a segunda concepção apontada por Cícero (Knox, 1961, pp. 9-

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23) como variante da primeira: “dizer algo para significar outra coisa” (mas não exatamente o seu contrário).