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Por outras abordagens da ironia: como menção, como polifonia e como aresta

CAPÍTULO 1 SOBRE IRONIA

1.7 Por outras abordagens da ironia: como menção, como polifonia e como aresta

avaliadora

Talvez fosse melhor apresentar a ironia como menção dentro das teorias cognitivistas e a

polifonia aos moldes de Ducrot como um caso de pragmática. Entretanto, ver a ironia sob

esses três pontos de vista pode nos levar a caminhos diferentes, mas também aproximados, pelo menos do ponto de vista da heterogeneidade enunciativa ou da pluralidade de vozes presente no texto. Justamente por isso decidimos fazer a apresentação dentro de um mesmo tópico, a despeito das diferenças teóricas das três abordagens. Além disso, a polifonia apresentada não se resume à concepção de Ducrot, estendendo-se a um entendimento mais amplo, como praticado por seguidores de Bakhtin.

1.7.1 Ironia como menção

O mecanismo do eco é que determina o alvo e não o eventual conteúdo crítico do enunciado ou o engano do destinatário.

(Sperber e Wilson, 1978, p. 411)

Quando se fala na proposta de entender a ironia como menção, os nomes de referência são Dan Sperber e Deirdre Wilson. No artigo Les ironies comme mentions, publicado na revista

Poétique, em 1978, os autores se propõem a tentar dar conta dos fatos de ironia sem apelar

para a noção de sentido figurado, tentativa que faz parte de uma pesquisa mais vasta com a finalidade de integrar em uma mesma teoria os aspectos semânticos, pragmáticos e retóricos de interpretação dos enunciados (1978, p. 399). A oposição lógica entre emprego e menção apresenta uma série de posições intermediárias, em que o discurso direto é a forma lingüística mais clara de menção. Outras formas próximas, como o discurso indireto, o discurso indireto livre, os “contextos opacos” criados pelos verbos de opinião, entre outros, também parecem possuir algumas características de menção, que os autores chamam de “eco”. Assim, há ecos

diretos e imediatos; há ecos indiretos, onde se menciona não a proposição enunciada, mas um subentendido que o destinatário acreditou perceber; há ecos longínquos e até antecipados (Sperber e Wilson, 1978, pp. 404-407).

Para os autores, em vez de pensar que haveria dois tipos de ironia - a dos ecos irônicos onde a interpretação passa pelo reconhecimento de seu caráter de menção e as de outros casos onde a interpretação passa pelo sentido figurado – deve-se conceber que todas as ironias são interpretadas como menções tendo um caráter de eco. Eco que pode ser mais ou menos distante, de pensamentos ou de propósito, reais ou imaginários, atribuídos ou não a indivíduos definidos e que, quando não é manifesto, é, contudo, evocado (1978, p. 408).

Assim, Sperber e Wilson (1978, p. 409) sustentam que todas as ironias típicas e boa parte das atípicas do ponto de vista clássico podem ser descritas como menções (geralmente implícitas) de proposição. As menções seriam, então, interpretadas como eco de um enunciado ou de um pensamento onde o locutor entende assinalar a falta de exatidão ou de pertinência. Com essa concepção, seus autores afirmam poder descrever de forma mais elaborada um número maior de eventos com ironia do que na concepção clássica de sentido figurado.

Quanto ao alvo da ironia, seriam as pessoas ou os estados de espírito, reais ou imaginários aos quais ela faz eco. “O mecanismo do eco é que determina o alvo e não o eventual conteúdo crítico do enunciado ou o engano do destinatário” (Sperber e Wilson, 1978, p. 411).

Quando o eco é longínquo e vago, a ironia não visará alvo determinado; ao contrário, quando o eco é próximo e preciso, as pessoas às quais ela fez eco constituirão o alvo. Assim, quando o locutor faz eco a si mesmo, haverá auto-ironia; quando o locutor faz eco ao destinatário, haverá sarcasmo. (Sperber e Wilson, 1978, p. 411-412).

Ao abordar os aspectos semânticos e pragmáticos do tropo irônico, Kerbrat-Orecchioni (1980a, p. 122-125) acrescenta uma análise crítica da “ironia citacional” de Sperber e Wilson, em que faz algumas ressalvas quanto às questões dos sujeitos enunciadores da ironia e do seu alvo. A autora prefere manter a distinção entre os dois tipos de ironia (como tropo e como citação), no meio dos quais se pode encontrar uma multiplicidade de categorias intermediárias entre o enunciado claramente citacional e o enunciado claramente assumido pelo locutor.

A ironia citacional (e suas numerosas variantes) e a ironia não-citacional (onde a “ironia situacional verbalizada” constituiria um caso particular) seriam opostas principalmente quanto à natureza do alvo e quanto ao sentido de inversão semântica, entre outras propriedades. Na

ironia citacional, o alvo seria o enunciador citado, enquanto na ironia não-citacional ele seria a situação à qual se predica a seqüência irônica, havendo casos em que os dois alvos podem se intercalar. Quanto à inversão semântica, a ironia citacional parece poder explorar avaliativos positivos e negativos, sem restrição. Já a ironia não-citacional, para desqualificar o objeto de que trata, usa termos aparentemente valorizadores para depreciar. À própria pergunta sobre se o tropo inverso existiria, Kerbrat-Orecchioni (1980a, p. 124) observa ser ele mais raro na língua francesa que entre os espanhóis ou americanos (os norte-americanos diriam “He’s bad!” a um músico particularmente bom), faltando-lhe certeza quanto a serem efetivamente percebidos como irônicos por seus utilizadores.

Para a finalidade do nosso estudo, tanto a abordagem de Kerbrat-Orecchioni quanto a de Sperber e Wilson podem ser aplicáveis, mas parecem muito presas a análises localizadas no conjunto textual, com exemplos que não extrapolam enunciados. Assim como é possível encontrar num romance trechos de diálogos ou narração irônica para ilustrar o que propõem as duas abordagens, também é possível fazer isso em textos jornalísticos impressos, embora a proposta de Kerbrat-Orecchioni pareça mais frutífera, se combinada com outras abordagens. Quanto a Sperber e Wilson, se se aceitar sua “ginástica argumentativa” (como a qualifica Kerbrat-Orecchioni) em busca de enunciadores antecedentes, mesmo de “ecos reais ou imaginários”, parece também pertinente para explicar casos de declarações dos entrevistados ou mesmo fragmentos e palavras que são mantidas a distância (com aspas, por exemplo) e ao mesmo tempo criticadas nos textos jornalísticos. Teríamos aqui a conjugação da proposta de Sperber e Wilson com os estudos de Authier-Revuz (1982, 1984, 1998) ou mesmo com a polifonia ao estilo de Ducrot (1987).

Ducrot (1987, pp. 197-200), por sinal, faz uma crítica ao modelo de Sperber e Wilson quando apresenta o esboço de sua teoria polifônica da enunciação, em que usa como exemplos de discussão a ironia e a negação. A crítica aparece quando Ducrot discute a pertinência lingüística da noção de enunciador, a partir da ironia e da teoria de Sperber e Wilson. A crítica começa pelo uso da palavra mencionar, que parece ambíguo a Ducrot (1987, p. 198), pois “pode significar que a ironia é uma forma de discurso relatado”. Para Ducrot, a proposta de Sperber e Wilson não seria admissível porque “não há nada irônico em relatar que alguém sustentou um discurso absurdo”.

Para que nasça a ironia, é necessário que toda marca de relato desapareça, é necessário “fazer como se” este discurso fosse realmente sustentado, e sustentado na própria enunciação. Esta é a idéia que procuro deixar dizendo

que o locutor “faz ouvir” um discurso absurdo, mas que o faz ouvir como o discurso de um outro, como um discurso distanciado. (Ducrot, 1987, p. 198).

Além da crítica de Ducrot, nota-se também que a proposta de Sperber e Wilson parece diluir ou pelo menos não contemplar com clareza a questão do valor ilocutório da ironia ou sua aresta avaliadora, algo diretamente ligado aos propósitos deste estudo.

A partir do exposto, a ironia como menção poderia ser explicada nos termos da teoria polifônica de Bakhtin ou Ducrot, em que se visualiza mais de uma voz no enunciado ou, em outros termos, em que um sujeito locutor recorre a sujeitos enunciadores que sustentam posições enunciativas diferentes. Vista dessa maneira, a ironia como menção seria polifônica, a que seria possível agregar a noção mais geral de heterogeneidade enunciativa.

1.7.2 Ironia como polifonia

A ironia subverte a fronteira entre o que é assumido e o que não o é pelo locutor.

(Maingueneau, 1989, p. 98)

Os nomes de Bakhtin e Ducrot são os principais em termos de teorias polifônicas. O primeiro, precursor e mais amplo, abrangendo conjuntos textuais; o segundo, nos passos do anterior, mas restrito ao plano do enunciado. Em termos de análise prática, a proposta de Ducrot (1987) recorre diretamente à ironia como exemplo para explicar a viabilidade de sua teoria polifônica da enunciação. É claro que se deve ter em mente que o princípio bakhtiniano de múltiplas vozes no texto ou discurso pode ser aplicado a variados gêneros e produtos textuais, inclusive os jornalísticos, e que Ducrot teve Bakhtin como inspiração ao pretender contestar a tese da unicidade do sujeito falante, mas no plano do enunciado.

Na sua teoria polifônica, Ducrot (1987, pp. 161-218), distingue entre o sujeito falante de um enunciado e outros seres de discurso que podem habitá-lo, como os locutores e enunciadores. O sujeito falante seria o ser empírico emissor do enunciado, que nem sempre é o seu autor real. Ver, por exemplo, o caso de um ofício escrito pela secretária e assinado pelo chefe; a secretária seria a autora (porque o redige) e o chefe o falante (porque assina o documento). Enquanto autor e falante são seres do plano material, locutor e enunciador são seres discursivos, porque se situam no plano do discurso. Nessa perspectiva, pode haver mais

de um locutor ou enunciador em um enunciado. Além disso, é preciso lembrar também que

autor, falante e locutor podem coincidir ou não sobre o mesmo sujeito.

Por definição, entendo por locutor um ser que é, no próprio sentido do enunciado, apresentado como seu responsável, ou seja, como alguém a quem se deve imputar a responsabilidade desse enunciado. É a ele que refere o pronome eu e as marcas de primeira pessoa. (Ducrot, 1987, p. 182).

Se as marcas de primeira pessoa imputam a enunciação a um locutor (ao qual elas se referem), no caso do discurso direto haveria, então, dois locutores, visíveis nas duas marcas de pessoa que remetem a dois seres diferentes (Ducrot, 1987, p. 185). Essa seria a primeira forma de polifonia sustentada pelo autor. Já a segunda envolveria a presença de “vozes que não são as de um locutor”.

Chamo “enunciadores” estes seres que são considerados como se expressando através da enunciação, sem que para tanto se lhe atribuam palavras precisas; se eles “falam” é somente no sentido em que a enunciação é vista como expressando seu ponto de vista, sua posição, sua atitude, mas não, no sentido material do termo, suas palavras. (Ducrot, 1987, p. 192).

Segundo Ducrot, o “locutor apresenta uma enunciação de que se declara responsável, (...) mas as atitudes expressas nesse discurso podem ser atribuídas a enunciadores de que se distancia” (Ducrot, 1987, p. 196). O primeiro exemplo que o autor apresenta para justificar a pertinência da noção de enunciador é justamente a ironia. Após criticar a tese de Sperber e Wilson (1978) sobre a ironia como menção, Ducrot (1987, p. 198) a reformula, apresentando- a como mais viável a partir da distinção entre locutor e enunciador.

Falar de um modo irônico é, para um locutor L, apresentar a enunciação como expressando a posição de um enunciador. Posição de que se sabe por outro lado que o locutor L não assume a responsabilidade, e, mais que isso, que ele a considera absurda. Mesmo sendo dado como o responsável pela enunciação, L não é assimilado a E, origem do ponto de vista expresso na enunciação. (Ducrot, 1987, p. 198).

O autor lembra que, no caso da ironia, é importante que L não coloque em cena um outro enunciador que sustente o ponto de vista razoável. A evidência de que L é distinto de E deve ser apresentada pelo locutor por outros meios, “recorrendo, por exemplo, a uma evidência

situacional, a entonações particulares” e expressões consideradas como “especializadas na ironia”, como “Que ótimo!”.

Pode haver enunciados sem locutor (os enunciados históricos) e casos em que o enunciador pode ser assimilado ao locutor e mesmo ao alocutário. Há outras distinções muito finas apresentadas por Ducrot que preferimos deixar de fora, porque julgamos ser esse o extrato mais importante dessa teoria polifônica.

Maingueneau (1998 pp. 108-110), por sua vez, avaliou como pouco nítida a diferença entre locutor e enunciador apresentada por Ducrot. Em publicação mais recente, Maingueneau (2001, p. 138) parte de Bakhtin para dizer que a polifonia “vem sendo utilizada em lingüística para analisar os enunciados nos quais várias ‘vozes’ são percebidas simultaneamente”, uma definição que já se tornou generalizada nos estudos que seguem essa perspectiva teórica.

A partir de exemplos na forma de enunciados ou de pequenos trechos de textos de jornal, Maingueneau (2001, pp. 137-138) explica porque e como se pode questionar a crença comum de que aquele que fala seria a fonte das referências enunciativas e responsável pelo ato de fala (asserção, ordem, etc.). Nessa linha, o enunciador é definido como “aquele em relação ao qual se definem os parâmetros da situação de enunciação”; o co-enunciador, como o “você” selecionado pelo enunciador; o momento [da enunciação] como aquele em que a enunciação acontece, sendo indicado, entre outros, pelo tempo dos verbos (Maingueneau, 2001, p. 137). Num mesmo texto de jornal, por exemplo, enunciador, co-enunciador e momento da

enunciação podem ter referentes diversos, embora nem sempre isso seja claramente visível. É

possível ter, então, uma enunciação dentro de outra enunciação (Bakhtin, 1990) como nas formas de citação, bastante utilizadas nos meios jornalísticos.

Como nas abordagens anteriores, a questão a destacar é: o que faz uma determinada forma de citação ou de enunciação polifônica ser entendida como ironia, considerando que nem toda citação/enunciação polifônica é irônica, mas a ironia pode acontecer sob uma dessas formas? A presença ou ausência de marcadores que sinalizem uma possível ironia facilita ou deixa totalmente em aberto uma atribuição dessa natureza. Sem ter uma forma estabelecida que ancore a definição de ironia em suas várias possibilidades, qualquer que seja a teoria escolhida, o plano da expressão nunca parece suficiente como estabelecimento da ironia. Há sempre a necessidade de se recorrer a algo mais que, ao invés de dar segurança, mantém a atribuição de ironia com o status de fugidia.

Valor ilocutório do enunciado e aresta avaliadora dos enunciadores são elementos

explicar a ocorrência da ironia. No interior da teoria dos tropos, o que difere a ironia da antífrase, já que ambas dizem o oposto do que se quer significar? É justamente o valor ilocutório do enunciado, que, no caso da ironia, vai na direção de desqualificar, de escarnecer, segundo Kerbrat-Orecchioni (1980, 1986). Já numa perspectiva discursiva, Hutcheon (2000) aponta uma aresta avaliadora como característica principal em “fazer a ironia acontecer”, seja do ponto de vista do enunciador, seja do co-enunciador. De uma maneira ou de outra, esse parece ser o elemento diferenciador na atribuição da ironia, em qualquer das teorias abordadas.

1.7.3 Ironia como aresta avaliadora

A ironia (...) é mais freqüentemente um

processo semanticamente complexo de

relacionar, diferenciar e combinar significados ditos e não ditos – e fazer isso com uma aresta avaliadora.

(Hutcheon, 2000, p. 134)

O entendimento da ironia como tendo uma aresta avaliadora é feito por Hutcheon (2000), mas a classificação nestes termos é feita por nós e talvez nem seja a mais adequada, porque se pode objetar que, no caso da ironia como tropo, seria possível denominá-la como valor

ilocutório, por exemplo. Estaríamos, assim, mudando as regras do jogo de classificação, ao

passar da forma da ironia para uma característica dela. Por ora não nos ocorreu outra denominação, embora ela seja situada pela autora como discursiva. Mas a denominação

discursiva se constitui numa expressão do tipo “guarda-chuva” que pode englobar outras

abordagens, como as apresentadas anteriormente, dependendo do que se passe a considerar como discurso.

Ao situar a ironia no quadro do discurso, Hutcheon (2000, p. 36) avalia que as dimensões sintática e semântica não devem ser separadas dos aspectos social, histórico e cultural dos contextos de emprego e atribuição. Na sua análise, a autora (2000, p. 19) diz recorrer a “uma conjunção de perspectivas teóricas unidas por ‘semelhança de família’”, como o dialogismo bakhtiniano, a semiótica social, a teoria dos atos de fala, a teoria da enunciação, as análises pragmática, sintática e semântica, entre outras.

Já foi mencionado rapidamente que a obra de Hutcheon (2000) apresenta bibliografia extensa e eclética, a fim de subsidiar o que defende quanto à ironia. Resumidamente, destacamos como central em seu trabalho a concepção da ironia como estratégia discursiva de aresta crítica e o entendimento de que enunciador e co-enunciador são responsáveis em fazer a ironia acontecer, a partir do contexto e das comunidades discursivas a que pertencem. Além disso, a idéia de ironia como caso de humor é recusada (das ironias que analisa, poucas seriam “engraçadas”), assim como a de antífrase, por ser insuficiente para explicar os casos que discute.

O interesse no que Hutcheon (2000, p. 27) chama de “política transideológica da ironia” foi o que a levou a ir além da ironia como tropo retórico ou modo de vida (ironia romântica), tratando-a como “estratégia discursiva que opera no nível da linguagem (verbal) ou da forma (musical, visual, textual)”. Isto porque leva em conta as “dimensões sociais e interativas do funcionamento da ironia” (por exemplo, a situação de uma conversa ou uma leitura de romance). Nessa linha, a discussão de Hutcheon não se prende a análises pontuais, como as já apresentadas até agora: ela tem como base exemplos de vários meios, como música, ficção, filme, ópera, arte visual e exposição de museu, entre outros, sobre os quais a autora realiza o seu próprio processo interpretativo, mas também inclui a interação (e os atritos) dos públicos com esses trabalhos, no que diz respeito à atribuição de ironia.

Na visão de Hutcheon (2000, p. 90), para tratar do significado irônico é preciso ir além dos conceitos tradicionais de semântica em termos de condições de verdade ou da relação entre palavras e coisas, incluindo também a pragmática, a troca social e comunicativa da linguagem.

(...) o significado irônico, na prática – num contexto social/comunicativo – é algo que “acontece” mais do que algo que simplesmente existe. E ele acontece no discurso, no uso, no espaço dinâmico da interação de texto, contexto e interpretador (e às vezes, embora nem sempre, ironista intencional). (Hutcheon, 2000, p. 90).

Assim, em vez de ter a ironia como “um instrumento retórico estático para ser usado” (dizer uma coisa para significar outra), a autora (2000, pp. 90-102) prefere pensar o significado irônico como um processo comunicativo, com três características semânticas principais: relacional, inclusiva e diferencial. A ironia seria uma estratégia relacional por operar entre significados (ditos e não ditos) e também entre pessoas (ironistas, interpretadores, alvos).

O significado irônico ocorre como conseqüência de uma relação, um encontro performativo, dinâmico, de diferentes criadores de significado, mas também de diferentes significados, primeiro, com o propósito de criar algo novo e, depois, para dotá-lo da aresta crítica de julgamento. (...) Por certo, essa (como a maioria) não é uma relação de iguais: o poder do não-dito de desafiar o dito é a condição semântica que define a ironia. (Hutcheon, 2000, p. 91).

A característica inclusiva permite a Hutcheon (2000, pp. 91-93) repensar a noção de ironia como substituição de um significado pelo seu contrário (antífrase), ao considerar o significado irônico como simultaneamente duplo (ou múltiplo) sem a necessidade de rejeição de um significado “literal” em prol do significado “irônico” ou “real” da elocução [aspas da autora]. Para ela (2000, p. 93), é a relação do dito com o não-dito que formaria um terceiro significado, e “isso é que deveria ser chamado de significado ‘irônico’”.

O que eu quero chamar de sentido “irônico” é inclusivo e relacional: o dito e o não-dito coexistem para o interpretador, e cada um faz sentido em relação ao outro porque eles literalmente “interagem” para criar o verdadeiro sentido “irônico”. O sentido “irônico” não é, assim, simplesmente o sentido não dito e o não dito nem sempre é uma simples inversão ou o oposto do dito: ele é sempre diferente – o outro do dito e mais que ele. (Hutcheon, 2000, p. 30).

Nesse caminho, Hutcheon (2000, pp. 93-94) contesta quem postula a impossibilidade de abarcar os significados literal e irônico ou o descarte do sentido literal (Gibbs, 2002), pois, sendo isso possível, o fenômeno não seria mais ironia.

A característica do significado irônico como diferencial busca explicar a relação entre ironia e outros tropos e formas de obliqüidade, como metáfora e alegoria, freqüentemente consideradas em conjunto nas discussões críticas (2000, pp. 91, 99). De forma bastante resumida, poderíamos mencionar que, em Hutcheon (2000, pp. 99-100), a ironia apresenta como característica uma aresta avaliadora e uma identidade semântica básica constituída em termos de diferença, enquanto a metáfora teria uma identidade em termos de similaridade, e a alegoria, de uma semelhança habilmente sugestiva entre o dito e o não dito. A autora (2000, p. 101) compara ainda, brevemente, ironia e mentira, destacando como diferença entre elas a

intenção: nas mentiras não se intenta que elas sejam interpretadas como tais, ao passo que “as

Como bem observa Hutcheon (2000, p. 29), muitos dos estudos acerca da ironia foram desenvolvidos com enfoques do ponto de vista do enunciador (como Muecke, 1995; e Booth,