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2.1 A explicação da metáfora: o cemitério dos esquecidos

2.1.4 OS ESQUECIDOS DO CEMITÉRIO: QUEM SÃO ELES?

Em 2011, a população total de pacientes vivendo nos 26 estabelecimentos de custódia e tratamento psiquiátrico existentes no Brasil era de 3.989. Este número compreende pessoas submetidas à medida de segurança por sentença absolutória imprópria (2.839), pessoas em medida de segurança em decorrência de conversão da pena (117), bem como aquelas em situação de internação temporária (1.033) – seja porque aguardavam realização de exame de sanidade mental ou porque tinham o laudo e aguardavam decisão para o andamento do processo.111

A população é predominantemente masculina, sendo composta por 92% (3.684) de homens e 7% (291) de mulheres. Assim, a proporção aproximada era de uma mulher para cada doze homens. Essa proporção se repete em relação às pessoas que estão submetidas às medidas de segurança. Um ponto curioso é o fato de que 14 pessoas que viviam nesses estabelecimentos não possuíam informação acerca do gênero.112 São indivíduos que se encontram internados, porém seus dossiês sequer mencionam esta característica tão elementar. Se denominados esses locais de cemitérios dos esquecidos, o que se poderá dizer dessas pessoas?

A faixa etária da população também foi objeto de análise do censo:

No Brasil, 58% (2.322) das pessoas internadas tinham entre 20 e 39 anos. Entre 40 e

109 JUNQUEIRA, Lia. A loucura condenada. In: Lua Nova: Revista de Cultura e Política, vol.1, n.3, São Paulo:

CEDEC, p. 52-56, out./dez. 1984, p. 52 et. seq.

110 CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Inspeções aos manicômios – Relatório Brasil 2015. Brasília:

CFP, 2015, p. 126.

111 DINIZ, Debora. A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: censo 2011. Brasília: LetrasLivres:

Universidade de Brasília, 2013, p. 35.

112 DINIZ, Debora. A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: censo 2011. Brasília: LetrasLivres:

69 anos, havia uma concentração de 38% (1.518) dos indivíduos. A média etária da população temporária era de 35 anos, ao passo que a da população em medida de segurança era de 39 anos. Na população em medida de segurança, havia uma concentração de 42% (1.196) na faixa etária entre 40 e 69 anos, ao passo que na população temporária essa mesma faixa etária concentrava 26% (278) da população. A média etária da população era de 38 anos.113

Em relação à cor da pela, foi verificado que 44% (1.782) da população era composta por pretos e pardos, enquanto os brancos representavam 38% (1.535), 0,2% (9) era de amarelos e 0,2% (7) eram indígenas. Para 16% (621) da população total, não havia nenhum registro quanto à cor. Quando analisados somente os indivíduos em medida de segurança, a população de pretos e pardos era de 43% (1.220), e a de brancos era de 44% (1.262). Quanto ao estado civil dos internos, foi verificado que 77% (3.059) eram solteiros, 9% (354) eram casados, 5% (193) eram amasiados, 4% (153) eram divorciados, bem como 2% (60) eram viúvos. Entre a população em medida de segurança, 79% (2.234) era composta por pessoas solteiras.114

No que diz respeito à escolaridade, 43% (1.713) possuíam ensino fundamental incompleto, 23% (933) eram analfabetos, 13% (534) haviam completado o ensino fundamental, 6% (226) tinham concluído o ensino médio, apenas 0,8% (33) possuíam nível superior, bem como 0,03% (1) tinha pós-graduação. Não havia informação quanto à escolaridade de 14% (549) dos internos. Não existiam diferenças consideráveis de escolaridade entre homens e mulheres. No que diz respeito à profissão da população, constatou-se que 22% (875) dos indivíduos trabalhavam na produção de bens e serviços industriais, 17% (687) não possuíam profissão, 17% (687) eram trabalhadores agropecuários, florestais e da pesca, 13% (519) trabalhadores dos serviços, vendedores do comércio em lojas e mercados.115

Esses dados demonstram que os internos em medida de segurança no Brasil são predominantemente homens solteiros, com pouca ou nenhuma escolaridade e que possuíam profissões que não demandavam grandes qualificações técnicas e educacionais. Este é, de uma maneira geral, o perfil da população que vive nos estabelecimentos de custódia e tratamento psiquiátrico no Brasil.

Um aspecto importante que foi colhido no Censo de 2011 diz respeito à porcentagem de pessoas submetidas às medidas de segurança que cometeram injustos penais contra alguém

113 DINIZ, Debora. A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: censo 2011. Brasília: LetrasLivres:

Universidade de Brasília, 2013, p. 36.

114 DINIZ, Debora. A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: censo 2011. Brasília: LetrasLivres:

Universidade de Brasília, 2013, p. 38.

115 DINIZ, Debora. A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: censo 2011. Brasília: LetrasLivres:

de seu núcleo familiar.

Dos 2.839 indivíduos em medida de segurança no Brasil, 27% (771) cometeram infrações penais em sua rede familiar ou doméstica, ou seja, uma em cada quatro pessoas internadas teve um membro da família ou rede doméstica como vítima. Entre os homens, 26% (682) haviam cometido infração penal em sua rede familiar ou doméstica e, entre as mulheres, 41% (89) haviam cometido infração penal em sua rede familiar ou doméstica. Além disso, 45% dos que cometeram ou tentaram cometer homicídio o fizeram em sua rede familiar ou doméstica. Entre os 117 indivíduos por conversão de pena, 13% (15) cometeram infrações em sua rede familiar ou doméstica.116

A questão da recidiva das pessoas em medida de segurança também mereceu a atenção do Censo.

Dos 2.839 indivíduos em medida de segurança no Brasil, 69% (1.963) não haviam cometido infração penal anterior à que conduziu à medida de segurança atual e 25% (707) haviam cometido infração penal prévia. Entre os homens, 69% (1.795) e, entre as mulheres, 75% (162) não haviam cometido infração penal prévia. [...] No Brasil, 25% (707) das pessoas internadas tinham cometido infração penal prévia à medida de segurança. As principais infrações penais cometidas previamente eram crimes contra o patrimônio, com 48% (336), crimes contra a vida, com 14% (102), e crimes contra a dignidade sexual, com 11% (76).117

É importante salientar, ainda, que 1% das pessoas internadas em Hospitais de Custódia e Tratamento cumpria medida de segurança da espécie tratamento ambulatorial, o que é completamente anômalo, visto que este tipo de medida não é compatível com a internação. Por outro lado, 28% dos indivíduos (537) que já haviam se submetido ao exame possuíam sua periculosidade cessada, 7% (187) dos internos já tinham sentença de desinternação, bem como 2% (54 pessoas) já possuíam sua medida de segurança extinta, porém permaneciam nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico.118 Tudo isto evidencia o descaso com o qual os pacientes em medida de segurança são tratados, pois uma porcentagem considerável desses indivíduos não deveria estar internado.

É importante salientar que, diferentemente do que se poderia pensar, a população que vive nos centros de custódia e tratamento psiquiátrico, antigos “manicômios judiciários”, não é composta pelos tão conhecidos “assassinos em série”, que planejam seus crimes com frieza e racionalidade extrema, e os cometem com requintes de crueldade. De fato, quando foram criados, esses estabelecimentos se destinavam a essas pessoas, pois nem as penitenciárias nem os manicômios comuns pareciam dar conta delas. No entanto, só devem ser submetidos às medidas de segurança aqueles que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto

116 DINIZ, Debora. A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: censo 2011. Brasília: LetrasLivres: Universidade de Brasília, 2013, p. 45-46.

117 DINIZ, Debora. A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: censo 2011. Brasília: LetrasLivres:

Universidade de Brasília, 2013, p. 46.

118 DINIZ, Debora. A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: censo 2011. Brasília: LetrasLivres:

ou retardado, eram, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapazes de entenderem o caráter ilícito do fato ou de determinarem-se de acordo com esse entendimento, conforme preceitua o art. 26 do Código Penal. Os mencionados “serial killers”, que possuem uma racionalidade exacerbada, não se encaixam nessa descrição.

Reitere-se que a maioria da população em medida de segurança é composta por indivíduos de classe baixa, com nenhuma ou pouca instrução, sem profissão ou com profissão que não demanda formação, e que cometeram crimes contra o patrimônio. Absolutamente diferente do que é idealizado pelo senso comum.

Apesar de existirem tantos indivíduos submetidos ao instituto da medida de segurança no país, poucas são as pessoas que possuem conhecimento acerca das condições em que eles vivem. No Brasil, dá-se pouca visibilidade à situação atual dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, bem como à de seus internos. Além do mais, dar voz e pôr em foco “uma população duplamente estigmatizada, qual seja, a de loucos e de infratores, mesmo com todas as conquistas advindas dos movimentos da reforma psiquiátrica, tem, ainda, se mostrado um trabalho desafiador”119.

A principal razão que diferencia e marca a gravidade da situação das internações em Hospitais de Custódia e Tratamento no país é semelhante ao cenário que torna invisível o fenômeno do aumento do encarceramento dos menores infratores, qual seja: o número consideravelmente inferior em relação ao dos adultos aprisionados120. Assim, por representar uma população bem menor quando comparada à de pessoas nas penitenciárias comuns, a situação das doentes mentais é marcada pela invisibilidade. No entanto, na cultura dos direitos humanos, qualquer violação, ainda que a um número mais reduzido de pessoas, precisa ser enfrentada.

Feitas essas considerações, que retratam o panorama do modelo manicomial judiciário no Brasil, será apresentado a seguir um modelo que a ele se contrapõe. A partir da crítica ao poder psiquiátrico e das inovações trazidas pela Reforma Psiquiátrica e o movimento de luta antimanicomial, busca-se fazer com que a loucura passe a ocupar um novo lugar na sociedade.

119 RAMOS, Breno Montanari. Aspectos atuais da imputabilidade penal e da medida de segurança no Brasil. In:

CORDEIRO, Quirino; DE LIMA, Mauro Gomes Aranha (org.). Medida de segurança – uma questão de saúde e ética. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, 2013, p. 59.

120 CARVALHO, Salo de; E WEIGERT, Mariana de Assis Brasil. A punição do sofrimento psíquico no Brasil:

reflexões sobre os impactos da Reforma Psiquiátrica no sistema de responsabilização penal. In: Revista de Estudos Criminais, ano XI, n. 48, São Paulo: Síntese, p. 55-90, jan./mar. 2013, p. 66.