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4.2 Da inovação trazida pela Súmula nº 527 do Superior Tribunal de Justiça

4.2.2 UMA ANÁLISE SOBRE A (DES)PROPORCIONALIDADE DAS MEDIDAS

A ministra Maria Thereza de Assis Moura, no julgamento do Habeas Corpus 121877, entendeu que era imprescindível invocar o princípio da proporcionalidade. Apesar de não ter sido feita uma apreciação aprofundada do princípio, entende-se que é necessário, aqui, realizar essa análise.

Pergunta-se, inicialmente, o seguinte: é proporcional privar de sua liberdade por tempo indeterminado um doente mental que cometeu um injusto penal? Para responder a essa questão de forma técnica, é necessário realizar uma averiguação um pouco mais detalhada. Antes de prosseguir, impende fazer um esclarecimento conceitual sobre a noção de proporcionalidade:

A regra da proporcionalidade é uma regra de interpretação e aplicação do direito [...], empregada especialmente nos casos em que um ato estatal, destinado a promover a realização de um direito fundamental ou de um interesse coletivo, implica a restrição de outro ou outros direitos fundamentais. O objetivo da aplicação da regra da proporcionalidade, como o próprio nome indica, é fazer com que nenhuma restrição a direitos fundamentais tome dimensões desproporcionais. É [...] uma restrição às restrições. Para alcançar esse objetivo, o ato estatal deve passar pelos exames da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito. Esses três exames são, por isso, considerados como subprincípios da regra da proporcionalidade.248

Em última análise, a imposição das medidas de segurança pelo Estado e a sua duração contrapõem dois direitos fundamentais: a liberdade do agente versus a segurança da sociedade. Não tendo ocorrido crime, devido à inimputabilidade do indivíduo, poderia o legislador brasileiro ter escolhido outra resposta ao injusto penal, como já ocorreu em períodos anteriores de nossa história, conforme já explanado neste trabalho. Como visto, o destino dado a essas pessoas já foi o envio a hospitais psiquiátricos comuns, ou até a própria permanência em sua residência com a família. Mas o que motivou a criação deste instituto foi justamente a suposta necessidade de se opor ao perigo imposto à sociedade pelo doente mental, devendo-se prezar pela segurança da comunidade.

Para verificar a proporcionalidade da restrição a direitos, deve-se realizar uma análise da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, exatamente nesta ordem, pois só se passará à seguinte se a anterior não tiver resolvido a situação. Assim, esses elementos se relacionam de forma subsidiária entre si, e averiguação da proporcionalidade pode,

248 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. In: RT, São Paulo, ano 91, n. 798, p. 23-50,

inclusive, se esgotar na análise da adequação.249

O primeiro elemento da proporcionalidade pode ser assim conceituado: adequado não é apenas “o meio com cuja utilização um objetivo é alcançado, mas também o meio com cuja utilização a realização de um objetivo é fomentada, promovida, ainda que o objetivo não seja completamente realizado”250. A medida só será considerada inadequada se de forma alguma tiver a aptidão de fomentar o objetivo pretendido.

É necessário identificar qual a finalidade da medida, ou seja, qual o objetivo que é perseguido com a sua instituição. O fim primordial das medidas de segurança é a proteção da sociedade251, evitando que o indivíduo venha a cometer novos injustos penais. Para verificar a adequação da medida, deve-se perguntar: o meio tem aptidão para ao menos fomentar a realização do fim? Ou seja, manter um doente mental internado durante um período de tempo indeterminado – normalmente um longo período – possui a aptidão de estimular o não cometimento de ilícitos-típicos por essas pessoas? Realiza-se, portanto, a finalidade de proteção da sociedade? A resposta é positiva, tendo em vista que, por estarem sendo controlados dentro da instituição total, tanto por meio da ingerência estatal física em suas vidas, dentro dos altos muros dos centros psiquiátricos e pela proibição de saídas, bem como pela intervenção em sua saúde através da manipulação de medicamentos, é certo que o objetivo de proteger a população de eventuais injustos penais por eles praticados será fomentado. Assim, a medida é considerada adequada para o fim almejado.

Passa-se então à verificação da necessidade. Uma medida do Estado que limita um direito fundamental somente é considerada necessária “caso a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido”252. O exame da necessidade é, portanto, um exame comparativo. A pergunta a ser feita aqui é a seguinte: existe outro meio menos restritivo dos direitos fundamentais dos internos que, na mesma intensidade, realize o objetivo pretendido, isto é, a proteção da sociedade? Esta análise, por ser comparativa, é mais

249 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. In: RT, São Paulo, ano 91, n. 798, p. 23-50,

abr. 2002, p. 34.

250 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. In: RT, São Paulo, ano 91, n. 798, p. 23-50,

abr. 2002, p. 36.

251 Poder-se-ia alegar que o principal objetivo das medidas de segurança é o tratamento dos internos, tendo em

vista que o Código Penal prevê em seu art. 99 que “o internado será recolhido a estabelecimento dotado de características hospitalares e será submetido a tratamento”. No entanto, durante a elaboração deste trabalho, a partir de pesquisa doutrinária e empírica, foi possível verificar que, em realidade, os pacientes não recebem qualquer tratamento, razão pela qual não iremos considerar esta como a finalidade primordial das medidas de segurança, pois tal previsão legislativa não passa de letra morta.

252 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. In: RT, São Paulo, ano 91, n. 798, p. 23-50,

complexa.

O primeiro passo é identificar quais são os direitos limitados pela medida. O principal direito envolvido no caso é, sem sombra de dúvidas, a liberdade do indivíduo. Entretanto, o direito à saúde também é restringido, pois, pelo fato de os centros psiquiátricos judiciários serem instituições penitenciárias, possuem várias das características que são próprias do sistema penitenciário, como, por exemplo, a presença de agentes penitenciários, a existência de celas ao invés de quartos – o que ocorre em muitos, mas não em todos os CPJs do país –, a disciplina extremamente regrada da instituição, bem como a impossibilidade de oferecer um tratamento adequado aos internos. No CPJ, os funcionários têm como função primordial a manutenção da ordem, a partir do controle dos pacientes. Nessas condições, não é possível garantir um tratamento eficaz, o que restringe sobremaneira o direito à saúde dos pacientes.

Ainda há outro direito fundamental que é violado: a dignidade da pessoa humana. Conforme já mencionado neste trabalho, são recorrentes as denúncias do uso excessivo de medicamentos, a fim de controlar os internos dos CPJs, o que claramente retira a capacidade de autodeterminação dos pacientes, contribuindo para a perda da própria identidade, que é um atributo tão caro ao ser humano.

Identificados os direitos violados, deve-se cotejar o meio utilizado com outros meios alternativos. Cabe destacar, entretanto, a impossibilidade de identificar e fazer a análise comparativa de todos os meios possíveis, tendo em vista que seria necessário um trabalho específico apenas para isso, a ser realizado através de uma abordagem interdisciplinar, com um estudo demasiadamente denso.

No entanto, entende-se que a submissão dos pacientes a tratamento em hospital ou estabelecimento não dotado de características penais, que permitisse a utilização de todas as formas de tratamento que se fizessem necessárias, inclusive métodos extra-hospitalares, seria capaz de tratar as doenças de forma mais efetiva. Assim, é possível afirmar que existem, sim, outras medidas menos limitadoras dos direitos fundamentais atingidos, e igualmente dotadas de eficácia, pois, ao tratar ou curar a doença que eventualmente possa vir a trazer algum risco, em decorrência de surto, certamente estar-se-ia protegendo a sociedade e até o próprio indivíduo.

É possível, ainda, que seja levantada a alegação de que esses outros meios não produziriam o objetivo pretendido com a mesma intensidade, o que acarretaria a configuração do elemento “necessidade” da medida. Assim, entende-se que é preferível realizar também a análise da proporcionalidade em sentido estrito.

O terceiro e último elemento da proporcionalidade, que é a proporcionalidade em sentido estrito “consiste em um sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito

fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva”253. Dessa forma, um meio será considerado desproporcional se os seus motivos determinantes não forem tão fortes a ponto de justificar as limitações dos direitos fundamentais atingidos. A concretização do direito protegido pela medida deve ser extremamente relevante, a fim de que seja capaz de justificar tamanhas restrições.

Em relação ao instituto ora em análise, cabe indagar: a proteção da segurança da sociedade tem peso suficiente para fundamentar as violações ao direito à liberdade, à saúde e à dignidade? É válido, inclusive, questionar o seguinte: a proteção à sociedade conferida pelas medidas segurança é mesmo tão forte assim?

Sabe-se que, conforme já mencionado, são pouquíssimos os casos em que os crimes – no caso, injustos penais – são praticados por indivíduos com doença mental. O que conduz à conclusão de que as chances de um doente mental cometer um delito são demasiadamente inferiores às de uma pessoa considerada com a saúde mental “normal”. Portanto, é bem mais provável que este último venha a cometer crimes e, portanto, ser mais “nocivo” à sociedade. Levando o raciocínio ao extremo, porém apenas como forma de trazer uma consideração explicativa, seria mais “eficaz” cercear por tempo indeterminado a liberdade dos imputáveis do que dos inimputáveis.

Feitas essas considerações, apesar de o direito à segurança ser importante, percebe-se que, no caso, ele não tem força suficiente para justificar as restrições aos direitos dos indivíduos submetidos às medidas de segurança. Portanto, é possível concluir que as medidas de segurança, nos moldes em que se apresentam atualmente, são desproporcionais.

4.3 A repercussão nos tribunais: prevalência dos limites temporais ou