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4 PATRIMÔNIO CULTURAL

4.1 OS MÚLTIPLOS SENTIDOS DE CULTURA

A palavra cultura é de origem latina e significa cultivo ou instrução. Dentro da concepção semântica herdada do latim “colere‖, o termo ―cultura‖ designou até o século XVII um estado de terra cultivada, para aos poucos se referir à ação de cultivar a terra, designando algo que está em processo. Segundo Laraia (2001) o conceito antropológico de cultura como é conhecido atualmente foi definido por Edward Tylor, no vocábulo inglês Culture. Podemos definir cultura como um conjunto de hábitos, linguagens, crenças, cultivadas em determinada sociedade que delimitam a atuação do ser humano no mundo de acordo com o contexto socioambiental na qual estão inseridos.

[...] qualquer coisa, desde cultivar e habitar a adorar e proteger. Seu significado de ―habitar‖ evoluiu do latim colonus para o contemporâneo ―colonialismo‖ (...). Mas colere também desemboca, via latim cultus, no termo religioso ―culto‖, assim como a própria ideia de cultura vem na Idade Moderna a colocar-se no lugar de um sentido desvanecente de divindade e transcendência (...). A cultura, então, herda o manto imponente da autoridade religiosa, mas também tem afinidades desconfortáveis com ocupação e invasão; e é entre esses dois polos, positivo e negativo, que o conceito, nos dias de hoje, está localizado. Cultura é uma dessas raras ideias que tem sido tão essenciais para a esquerda política quanto vitais para a direita, o que torna sua história social excepcionalmente confusa e ambivalente (EAGLETON, 2005, p. 10-11).

Cultura é um conceito complexo. Seus próprios significados ao longo da História demonstram seus significados complexos e ambivalentes. Por outro lado, cultura é um conceito fundamental para se compreender aspectos da sociedade que

vão do político ao religioso, do popular ao erudito. Sua origem do latim cultus, nos remete ao hábito de cultuar algo, seja uma ideia, os modos de vida ou até mesmo os ritos da vida humana.

Cultura, para os gregos na Idade Clássica, seria a educação que é transmitida para se atingir árete (perfeição moral). Cultura adquire assim uma dimensão subjetiva, pois implicaria ao individuo estar atento a si mesmo, na busca do auto aperfeiçoamento como condição de se obter árete. No mundo clássico greco-romano o termo cultura estava associado ao conceito elevado de pessoa, expressão da mais alta educação aristocrática e de cunho moral elevado, que incentivava a espiritualização e a nobreza de espírito. Dos mitos gregos se originavam as qualidades ideais ao qual o ser humano deveria cultivar inspirados nas lendas dos nobres e heróis da mitologia clássica. De acordo com Alves (2010), na visão clássica, cultura seria um conjunto de regras, normas, princípios morais e modelos de ação que indicam o modo pelo qual os indivíduos e coletividades devem se comportar.

Em síntese, o pensamento grego sobre educação já estabelecia alguns elementos que caracterizam diversos aspectos das modernas discussões sobre o significado de cultura, tais como: a) a modelação do homem de acordo com um padrão ideal preestabelecido; b) a formação do individuo em relação aos costumes considerados como imperativos [seja do mundo cortesão, seja do ―homem simples‖]; c) a desigualdade e diferença dos grupos humanos como consequência das diferenças dos valores espirituais [como a diferença entre ―bárbaro‖ e o ―civilizado‖] (ALVES, 2010, p. 27).

Na Idade Média o conceito de cultura se manteve ligada a ideia de espiritualidade, de uma busca de práticas e experiências como condições para o aperfeiçoamento do espirito. Além disso, o ser humano era visto como pertencente ao Todo e ao Cosmos cabendo ao individuo contemplar a criação divina. No final da Idade Média e com a acepção do Racionalismo juntamente com o declínio do poderio da Igreja e a formação dos Estados-nações começa-se a desenvolver uma concepção de individualismo ao qual o ser humano percebe as suas limitações (ignorância) frente ao universo infinito e impenetrável.

Com o advento do Iluminismo, cultura passa a representar um fenômeno inerentemente humano que tem como referencia as ideias de progresso, evolução e educação e por objetivo um refinamento cultural dos costumes. No século XVIII cultura associa-se ao conceito de civilização, expressando a ideia de refinamento do comportamento humano. Portanto civilização é um movimento coletivo resultado do desenvolvimento da cultura (Alves, 2010). O termo cultura não se restringiu apenas ao conceito de civilização, associou-se também a noção de diferenças nacionais, associando-se aos conceitos de ―nação‖, ―nacionalismo‖ e ―nacionalidade‖. Além disso, os pensadores iluministas concebiam o ser humano como um ser cosmopolita, tomando consciência das formas simbólicas da constituição da vida humana, lançando as bases para a formação do conceito de ―relativismo cultural‖.

O conceito antropológico de ―relativismo cultural‖ é de maneira simplista a ideia de que não podemos julgar outra cultura com base em nossos próprios valores e costumes. Isso permitiu o alargamento da concepção de cultura permitindo a criação de outros conceitos como: Cultura popular, cultura erudita, cultura indígena, cultura europeia entre outros.

O conceito de cultura foi se modificando e se ampliando ao longo do tempo adquirindo uma gama múltipla de significados e sentidos. Hoje é possível encontrar uma série de definições sobre o que é cultura o que torna complexo a sua definição e estudo. Além das categorias acima citadas que foram incorporadas ao conceito de cultura tais como o de cultivo, instrução, educação, espiritualidade, valores éticos e morais, civilidade e nacionalismo outras categorias foram associadas a partir do século XIX ao conceito de cultura. Acepções como os de hábitos e costumes, identidade de um povo ou grupo social e linguagem surgiram além de outras categorizações como exemplo os de cultura social, coletiva, cultura sexual, racial, gênero, cultura cientifica, cultura nacional, religiosa, cultura acadêmica, cultura popular e etc.

Diante de tantas acepções e suas múltiplas variedades se torna uma tarefa temerosa propor uma definição de cultura. Para se permitir estudar tornando-se um instrumento de reflexão, a Antropologia cultural pertornando-segue reflexões em torno do conceito de cultura na necessidade de compreensão do ser humano em coletivo. Segundo o antropólogo Mércio Pereira Gomes (2008), cultura é o modo próprio de

ser do homem em coletividade, que se realiza em parte consciente, em parte inconsciente, constituindo um sistema mais ou menos coerente de pensar, agir, fazer, relacionar-se, posicionar-se perante o Absoluto e, enfim, reproduzir-se.

No sentido acima ―o modo próprio de ser‖ distingue o homem da biologia e que seu comportamento é um construto de algo cultural que possui uma certa descontinuidade em relação a natureza. Segundo Lévi-Strauss (2009), o homem é um ser biológico ao mesmo tempo que um indivíduo social. Isso significa dizer que a interação do ser humano com o mundo depende dos fatores naturais – biológicos instintivos e ambientais – e de fatores culturais nos quais o individuo está submetido.

O "anjo caído" foi diferenciado dos demais animais por ter a seu dispor duas notáveis propriedades: a possibilidade da comunicação oral e a capacidade de fabricação de instrumentos, capazes de tornar mais eficiente o seu aparato biológico. Mas, estas duas propriedades permitem uma afirmação mais ampla: o homem é o único ser possuidor de cultura (LARAIA, 2001, p.68).

O ser humano diferentemente das outras espécies possui a cultura como ferramenta para apreender e se pensar o mundo através de símbolos a serem decodificados de acordo com as crenças de sua comunidade.

O que se quer dizer com pensar? Para a Antropologia pensar é articular uma compreensão do mundo através da linguagem. É claro que pensar é um ato de consciência, individual, que se formam através de palavras, conceitos e sentidos de uma língua. Mas é também um ato coletivo, na medida em que os termos desse pensar, as categorias de pensamento são dadas pela cultura da qual o individuo faz parte (GOMES, 2008, p.37).

A linguagem possui um significado importante na reprodução da cultura, já que é um dos principais meios de transmissão de legados culturais:

A adaptação às circunstâncias de cada contexto é uma característica constante da transmissão da tradição. A transmissão oral aciona esquemas mnemônicos que garantem a estabilidade das estruturas musicais, plásticas e narrativas, dando margem, porém, a múltiplas variações desse esquema, em virtude dos aspectos contingentes de cada performance (IPHAN, 2017).

Através da transmissão de significados culturais passados de geração em geração é possível traduzirmos o legado histórico-cultural de um povo através

dos seus meios de preservação como a educação, a língua, as maneiras de sociabilidade, as instituições e os rituais sociais. Dentro desse contexto encontramos os conceitos de tradição, conservação e preservação bastante associados ao de cultura e identidade. Existe uma necessidade atual de preservar os meios de transmissão de uma determinada cultura ou de uma identidade cultural.

A palavra tradição é frequentemente usada como se fora um sinônimo de cultura. Para a Antropologia, é uma palavra de cunho genérico, de significado vago e não operacional, que se aproxima do conceito de cultura como se fora um dos seus aspectos. Tradição seria tudo aquilo cultural que uma coletividade reconhece como sendo essencial para sua identidade, e que vincula sua existência atual com seu passado. Portanto, quando se fala em tradição, fica subentendido o sentimento de lealdade ou deslealdade a ela. Isto é, tradição é uma noção que implica uma ética, a exigência de uma atitude perante a cultura (GOMES, 2008, p.48).

De acordo com a Constituição Federal de 1988 do Brasil, Art. 216, cultura são todas as ações por meio das quais os povos expressam “suas formas de criar, fazer e viver”. É um processo dinâmico, transmitido de geração em geração em uma comunidade e que pode sofrer interferências de outras culturas moldando suas práticas, sentidos e valores através do tempo, dos indivíduos e do espaço. Há diversos grupos sociais que diferem entre si de acordo com sua imersão cultural, construindo identidades individuais e coletivas em determinado contexto histórico, social e espacial. Um grupo social que constrói suas memórias e costumes coletivos cria elementos para a formação de sua identidade cultural enquanto grupo social.

[...] la cultura es el conjunto de símbolos, valores, actitudes, habilidades, conocimientos, formas de comunicación y organización sociales, y bienes materiales que hacen posible la vida de una sociedade determinada y le permiten transformarse y reproducirse como tal, de uma generación a las siguientes. Esta es sólo una de las posibles definiciones antropológicas de cultura, porque en este terreno tampoco hay un acuerdo unánime; pero es lo suficientemente amplia como para servir de base para la discusión del tema. (BONFIL, 2000, p.3).

De acordo com a citação acima, os hábitos, costumes e crenças que modelam a identidade de determinado grupo social, se identificam, criando códigos

sociais que refletem a si mesmos e seus próprios valores. A cultura possui vários elementos construtores de uma identidade coletivos aonde muitos grupos sociais buscam se legitimar através de processos de reconhecimento e salvaguarda patrimonial como forma de preservação de elementos materiais e imateriais de sua cultura e identidade. Através do instrumento de patrimônio cultural, os grupos buscam reafirmar sua identidade, seu território e sua própria história.

É outra – e é nova – a visão que o Estado brasileiro tem, hoje, de cultura. Para nós, a cultura está revestida de um papel estratégico, no sentido da construção de um país socialmente mais justo e de nossa afirmação soberana no mundo (...). Ou seja, encaramos a cultura em todas as suas dimensões, da simbólica à econômica (ROCHA, 2009, p.39).

No Brasil, os conceitos de tradição e cultura foram muito usados e pensados pelos intelectuais do Movimento Modernista tais como Mário de Andrade e Oswald de Andrade. A partir da noção de ―tradição cultural‖, os pensadores modernistas tomaram consciência da necessidade crescente de preservação do legado histórico material e pela primeira vez, os intelectuais da época (na Semana de Arte Moderna de 1922), se manifestaram acerca da dimensão imaterial do patrimônio como constituintes da identidade brasileira ou da cultura brasileira. Na próxima sessão irei abordar como a ideia de patrimônio cultural surgiu no Brasil incentivando a criação de leis de preservação.