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OS PERCURSOS E OS CONCEITOS OPERATÓRIOS DA MITOCRÍTICA

6 DO MÉTODO DE INVESTIGAÇÃO DO IMAGINÁRIO: A MITOCRÍTICA

6.1 OS PERCURSOS E OS CONCEITOS OPERATÓRIOS DA MITOCRÍTICA

A mitocrítica é então, como estamos fundamentados, a metodologia para o desvelamento do sermo mythicus, técnica de investigação do material mítico existente numa obra, quer seja literária, artística, histórias de vida, relatos, documentos e narrativas de modo geral. A mitocrítica, para Durand (1985, p. 255), evidencia numa obra os mitos diretivos, regentes e suas transformações significativas, as ressignificações que contribuem para a transformação da mitologia dominante de uma época ou, ao contrário, acentuam um ou mais mitos instituídos. Conforme Araújo (2014, p. 18) trata de uma técnica “vocacionada para captar e tratar os mitos e suas figuras patentes e latentes nos textos literários e poéticos”.

De modo sistemático para a abordagem de uma obra, a técnica mitocrítica de Durand (1985, p 253) – investigação dos mitos diretrizes de uma narrativa – estabelece os três passos essenciais, ou, quer sejam, os três momentos para a leitura que decompõem os estratos mitêmicos, os quais sintetizamos abaixo:

1º. Relacionar as recorrências simbólicas, uma enumeração sincrônica dos elementos que se repetem na narrativa de forma obsessiva e significativa, ou seja, um levantamento dos “temas”, por motivos redundantes, se não obsessivos, que constituem as sincronias míticas;

2º. A seguir, examinar as situações e combinatórias da narrativa, personagens, cenários, etc., que perfazem o plano diacrônico da obra;

3º. Enfim, detectar e compreender, ou apreender, as diferentes lições dos mitos e as correlações com as lições de outros mitos de uma época ou de um espaço cultural bem determinado.

A estes procedimentos, Araújo e Silva (1995, p. 127) (re)escrevem as etapas considerando, além das três primeiras acima, uma quarta etapa, a fim de compreender o autor no ato da produção de uma obra narrativa. Assim, descrevemos, mesmo que reiteradamente, os quatro passos propostos pelos autores:

1º. Delimitar as sequências mitêmicas e as situações míticas ou mitológicas: a constituição de um Atlas Imaginal;

2º. Detectar as estruturas figurativas que configuram a obra [...] e saber igualmente em que medida elas contribuem para que a co-interpretação e a compreensão sejam um ato hermenêutico fundamental;

3º. Assinalar os mitos e suas metamorfoses mais significativas que caracterizam a obra de um autor, quer uma obra de época ou de um dado ambiente psico- sócio-cultural;

4º. Saber o modo como a personalidade (a sua história biográfica) do autor interfere na derivação/ocultação dos mitemas de dado mito aquando da produção da sua obra [...], ou quando o autor tende a acentuar esta ou aquela sequência mitêmica, este ou aquele mito. Assim como também permite saber o tipo de influência que teve o meio sócio-cultural e epocal na produção da sua obra (ARAÚJO e SILVA, 1995, p. 127).

Considerar esta quarta etapa – alargada pelos autores – para um produto televisional nos parece ser oportuno, pois visa, especificamente na leitura mitocrítica do nosso objeto empírico, a narrativa audiovisual da série de TV Família Imperial, considerar a bagagem estética, características artísticas e estilísticas do diretor Cao Hamburger como processo para o entendimento pleno da obra.

Percebemos, para melhor compreensão dessas práticas, propor uma representação (info)gráfica prévia, conforme a figura 3, das etapas acima. Dizemos prévia, pois poderá ser complementada a posteriori, se preciso for, com as especificidades da decomposição da análise fílmica do nosso objeto empírico, a narrativa televisional da série de TV Família Imperial.

Figura 3 – As etapas da Mitocrítica.

Fonte: do autor, considerando, inclusive, as sequências/procedimentos de Araújo e Silva (1995, p. 125).

Essa metodologia, define Durand (1985, p. 253), “consiste a identificação de um mito a partir de um jogo de mitemas, quando um certo quorum de mitemas é estatisticamente alcançado”. Corrobora Mello (1994, p. 47) que “o mito vai se definindo a partir da organização de símbolos e de um quorum de mitemas, pois o mitema é um átomo mítico63 de natureza

estrutural”. Complementa Araújo (2014, p. 27) que “é verdade que um de seus objetivos é captar os núcleos míticos, ou seja, os mitemas existentes, patente ou manifestamente, nos materiais selecionados e sujeitos a análise”.

Nessa jornada da apreensão, interpretação e compreensão do mito numa obra que a mitocrítica nos convida, é necessária essa importância fundamentação conceitual de mitemas. Segundo Araújo (2014, p. 25), para a noção de mitema, Gilbert Durand retomou o conceito a partir de Lévi-Strauss, como uma espessa unidade constitutiva, para designar uma espécie de átomo fundador do discurso mítico. No âmago da mitocrítica, especifica Durand (1985, p. 253), “como do mito, situa-se, pois, o mitema [...]; esse átomo mítico é de natureza estrutural e seu conteúdo pode ser indiferentemente um motivo, um tema, um cenário mítico, um emblema, uma

situação dramática”. Trata então da menor unidade da narrativa mítica que é significativamente

observável, redundante e indispensável, isto é, observada na repetitividade e permite a uma análise sincrônica na leitura mitocrítica. Reforça Araújo (2014, p. 25), “o mitema, que é o coração do mito [...] não aparece como mera relação isolada, mas sim constituído de “pacotes de relações” que, por sua vez, estão muito próximos da concepção de isomorfismo64

semântico”. Deparamos com um mitema, corroboram Araújo e Silva (1995, p. 129), “quando

63 Grifo da autora: Mello (1994, p. 47).

encontramos uma unidade semântica que se repete várias vezes numa escala de baixa amplitude narrativa”. De modo que o mitema é a menor unidade significante do mito, Gomes (2009, p. 107) explica que “isso não significa os elementos importantes das sintaxes (verbo, adjetivo...), mas as unidades redundantes, podem ser desde uma partícula de ligação até um gesto inusitado”. Na análise mitocrítica, o mito, para Araújo e Teixeira (2009, p. 9-10) mostra-se pela redundância dos seus mitemas e, “assim sendo, ele deve insistir, deve repetir, deve persuadir de forma obsessiva para melhor dar a conhecer a sua mensagem, a sua gesta, o seu drama envolto [...]”. Resume Gomes (2009, p. 107) então, “a leitura do mito deverá captar o seu núcleo, por meio das redundâncias, repetições e homologias. Este núcleo, que é o centro do mito, permite a análise, e é denominado de mitema”.

Quanto a percepção de um mitema, pontos fortes e repetitivos da narrativa, na leitura mitocrítica, Durand (1985, p. 254-255) explica que ele pode se manifestar e semanticamente agir de dois modos diferentes, como aqui reagrupamos:

1) De modo patente, pela repetição explícita de seu ou de seus conteúdos (situações, personagens, emblemas, etc.) homólogos. Na forma convencionalmente chamada literal, tende ao estereótipo identificador, à exagerada figuração e à denominação pelo nome próprio, pelo nome comum, pelo lugar, pelo emblema.

2) De modo latente, pela repetição de seu esquema de intencionalidade implícita. Repetição de um esquema formal, mascarado por conteúdos distanciados. Na forma figurada, tende ao apólogo, à parábola, nas fábulas, ou seja, se dá por meio de um drible da intenção em detrimento da indicação descritiva do nome próprio.

Nessa busca metodológica, Durand (1996, p. 254-255) atenta para a frequência da redundância do mitema, que varia de acordo com a escala da amostra, do objeto empírico. Segundo ele:

É, por isso, preferível utilizar-se uma obra a que chamaria média quanto a sua dimensão: um grande romance, um clico de pintura ou de arquitetura, uma obra completa, uma geração, um trend secular, etc. Consegue-se, então, distinguir no cenário mítico de uma obra destas, 5 ou 10 núcleos atrativos que se distinguem pela redundância semântica (DURAND, 1996, p. 254-255).

Durand (1983, p. 29) resume, “convém não esquecer que o mitema não é o conjunto da narrativa. Os mitemas são os pontos fortes, repetitivos, da narrativa. O mitema é a mais pequena unidade significante”.

Alcançado os fundamentos essenciais para o percurso da mitocrítica, os conceitos operatórios para a investigação do sermo mythicus numa dada narrativa (obra artística), vamos adiante, em busca de desvelar o material mítico existente em nosso objeto empírico, a série de TV ficcional histórico-contemporânea Família Imperial. Nessa jornada, ainda, buscamos as correlações (lições) dos símbolos, por conseguinte, dos mitos representados na obra, que remetem especificadamente às manifestações para uma identidade nacional brasileira.

Neste momento, já fundamentado nosso recorte teórico, cabe então condensar, sintetizar, o esforço mitocrítico. Esse esforço, trata então de desvelar, numa narrativa mítica, o “olhar”, como nos coloca Araújo (2014, p.31), do significado escondido pelos significantes que se encontram na superfície. A leitura mitocrítica, continua o autor:

[...] é complexa porquanto exige que o intérprete seja capaz de detectar o(s) mito(s) latente(s) ou patente(s) que modelam a obra analisada, [...] sabendo sempre que o mito é, em última instância o “modelo” matricial de toda a narrativa “estruturada pelos

schèmes e arquétipos fundamentais da psique do sapiens sapiens, [...] e que, por outro

lado, uma obra, um autor, uma época, ou pelo menos um “momento” de uma época, são “obcecados” [...], de modo explícito ou implícito por um (ou vários) mito que dá conta de modo paradigmático das suas aspirações, dos seus desejos, dos seus temores, dos seus terrores [...] (ARAÚJO, 2014, p. 31).

Concluem Ferreira-Santos e Almeida (2012, p. 115) que o importante na utilização mitocrítica “é compreender que uma obra estrutura-se a partir de símbolos, de recorrências simbólicas, que em seu conjunto revelam a ligação da obra a um mito”. Quanto às recorrências simbólicas – que destacam os mitemas –, lembram-nos Ferreira-Santos e Almeida (2012, p. 76), são os processos pelo qual determinado registro simbólico específico atravessa uma narrativa, como eles são percebidos na obra e sua frequência evidenciada de repetição.

Impulsionados pela teoria geral do Imaginário, embarcados na jornada interpretativa da série Família Imperial, devemos, como coloca Araújo (2014, p. 48), inspirados por Ricoeur, olhar para o conceito da interpretação como aquele capaz de pensar o sentido do texto a partir da sua semântica profunda. “Graças à interpretação, somos impelidos a olhar as coisas de uma nova forma, e consequentemente, a pensar também de outro modo”. Portanto, alinhados com a questão central dessa pesquisa, é no próximo capítulo que aplicaremos a leitura, a análise – a jornada mitocrítica, num sentido amplo de aventura – em nosso objeto empírico.