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Capítulo 02 – Os Planos Diretores

2.1 Os Planos Diretores no Regime Militar

Como forma de concretizar uma política nacional de planejamento e em decorrência de possíveis pressões advindas da sociedade, o Governo Militar, ainda em 1964, cria o Banco Nacional de Habitação – BNH, assim como o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo – SERFHAU. Naquele momento, para os militares, o maior problema das cidades brasileiras condizia com o alto déficit habitacional, o que viria em primeiro momento justificar a criação do BNH e do SERFHAU, ressaltando-se apenas a necessidade de financiamento por parte do governo federal. Posteriormente, em decorrência da carência em unidades habitacionais que fizessem suprir os altos déficits apresentados, o governo começa a investir na elaboração e implementação de planos habitacionais que viriam suprir parte desse déficit, principalmente para as populações de média e baixa renda.

O período de elaboração e implementação inicial dos Planos Diretores no final da década de 1960, já marcado pelo início do governo militar, da centralização política e autoritária, assiste uma vigorosa tentativa de estabelecimento de um novo padrão de planejamento das cidades no Brasil, substituindo definitivamente as idéias que até então ainda subsistiam, mesmo que parcialmente, como aquelas concentradas nas soluções embelezadoras e higienistas, praticados apenas em setores centras das grandes cidades brasileiras desde o final do século XIX, bem como o urbanismo cujo centro de sua aço se dirige para a modernização do sistema viário em função da introdução do uso do automóvel, focados nas regiões onde viviam e trabalhavam os setores de maior renda e maior poder político da população. (FERREIRA, 2007, pg.42)

Os desenvolvidos durante o Regime Militar eram idealizados sobre ideologias políticas e concepções doutrinárias bem definidas, baseadas no autoritarismo e na concentração política advindos do governo militar, associado a um modelo econômico desenvolvimentista com forte concentração de renda e que primava pelo saber técnico ante as iniciativas populares então reprimidas pelo regime de exceção instalado. Em relação ao Planejamento Urbano, segundo Nygaard (2005), dentro das concepções doutrinárias, podem ser citados o positivismo, em especial o positivismo lógico, o urbanismo modernista, as formulações do padre Lebret e as determinações do SERFHAU. Algumas dessas doutrinas serviam de base para a concepção de vários planos urbanísticos (sendo Planos Diretores ou Planos de Desenvolvimento Local

66 Integrado), durante quase todo o século XX, sendo muitos advindos dos princípios defendidos pelos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna – CIAM’s19.

Ao SERFHAU caberia papel de promover, difundir e uniformizar a prática de elaboração de planos diretores de desenvolvimento, segundo uma postura de integração multidisciplinar, numa perspectiva de racionalidade técnica. Nesta concepção, a idéia de neutralidade da atuação governamental é enfatizada. É valorizado o saber competente, o saber técnico, na elaboração das propostas de intervenção nas cidades. (FERREIRA, 2007, pg.44)

Os principais aportes teóricos que embasaram a construção dos Planos Diretores no período do Regime Militar, concentram-se nos processos implementados pelo SERFHAU, que tinham como princípio norteador a criação de um espaço urbano que deveria ser, até certo ponto, considerado ideal baseando-se nos princípios modernistas de racionalização do espaço. “Desde o século XIX, e ao longo do século XX, as doutrinas [...] foram interagindo, influenciando-se e se condicionando mutuamente ao ponto de constituírem e de imporem uma visão única no que se refere ao pensar e ao fazer no planejamento urbano” (NYGAARD, 2005, pg.49).

Como cita SOUZA (2002, pg.161) “os velhos planos diretores, isto é, os planos convencionais, estavam vinculados ao planejamento regulatório clássico, com forte influência, mais especificamente, do Urbanismo modernista”. Ainda complementam esses planos, por vezes também denominados de Planos Diretores de Desenvolvimento Integrado – PDDI, ou com nomenclatura similar, pautavam-se basicamente na definição do zoneamento funcional do espaço urbano, fragmentado em diversas áreas, onde se verificava para cada uma delas funções distintas, não havendo de fato a integração e complementação entre essas diferentes funções exercidas pela cidade (habitar, trabalhar, circular e divertir-se).

Os chamados Planos Diretores de Desenvolvimento Integrado, que quase sempre evocavam a integração com vistas no desenvolvimento20, bastante discutível do ponto de vista dos processos implementados na elaboração desses planos que, por vezes, não condiziam com um planejamento integrado de fato. Muitos dos planos desse

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CIAM – Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna realizados entre os anos de 1928 e 1956 e que determinavam as principais bases doutrinárias relativas ao movimento moderno, difundindo uma arquitetura considerada limpa, sintética, funcional e racional. Os CIAM consideravam a arquitetura e o urbanismo como um potencial instrumento político e econômico, o qual deveria ser usado elo poder público como forma de promover o progresso social.

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A expressão integração se daria nos níveis horizontal,entre as diversas áreas de atuação municipal onde diferentes projetos e programas seriam [...] compatibilizados entre si e compreendendo aspectos econômicos, sociais, físicos e institucionais, visando o desenvolvimento em nível municipal. Para Cintra (apud Nygaard, 2005, pg.97), essa expressando significaria para o SERFHAU tanto às relações entre planos locais, microrregionais, regionais e nacionais (os diferentes níveis, quanto à cobertura multifuncional, adicionando aos tradicionais aspectos físico-urbanísticos dos planejadores da velha escola, novos interesses sociais e econômicos da vida urbana).

67 período foram elaborados por empresas de consultoria que não detinham conhecimento da realidade local, ocorrendo assim, à tentativa por parte desses técnicos de propor soluções até certo ponto consideradas irrealizáveis.

O princípio norteador do planejamento urbano modernista adotado no Brasil era tentar reverter o “caos urbano” instalado nas cidades. Caos urbano resultado de um intenso processo de urbanização, verificado principalmente entre as décadas de 1950 e 1960, onde se observa um acelerado crescimento populacional decorrente de um lado do êxodo rural e do outro das altas taxas de natalidade e o acarretamento da aceleração dos problemas urbanos advindos da falta de infraestrutura, de sistemas educacionais e de assistência social adequados e atrelados da incapacidade dos gestores em atender as demandas principalmente para as camadas mais baixas da população. (FERREIRA, 2007)

A ‘primeira geração’ de planos diretores passou de sua fase romântica e pioneira a uma fase mercantil. Com base nos citados manuais, empresas de consultoria montavam um livro encadernado e bem apresentado do plano completo. Dele estavam textos padronizados do diagnóstico, do prognóstico com diretrizes e das propostas que incluíam as ‘ações do prefeito’.

As prefeituras eram assediadas pelos sócios-proprietários dessas empresas para contratar seus serviços. O contrato incluía a obtenção dos recursos do SERFHAU para custear os trabalhos. Eram previstos levantamentos de campo a serem feitos por estudantes da cidade e a incorporação à equipe contratada de pelo menos um funcionário municipal graduado, por indicação do prefeito. Passados alguns meses, os volumes encadernados do Plano Diretor eram apresentados pelo prefeito à sociedade através de atos solenes onde não faltavam materiais audiovisuais e exposições complexas por parte da empresa contratada” (FERNANDES in BUENO e CYMBALISTA, 2007, pgs. 257-258)

Baseando-se no urbanismo modernista, os arquitetos racionalistas, desde o fim da 1ª Guerra Mundial, vinham estudando a estrutura das cidades, idealizando-as como uma unidade e analisando “os elementos que a compõe e as várias funções sobrepostas na vida da cidade” (NYGAARD, 2005, pg.77). Esses estudos proporcionaram a elaboração de novos modelos de intervenção no espaço como forma de se resolver os problemas existentes nas cidades e combater-se o “caos urbano” instalado.

Diante do modelo idealizado, como forma de projeção no espaço, à cidade deveria ser zoneada, onde cada zona representaria uma função a ser exercida.

A cidade modernista passa a ser uma composição de zonas, cada uma contendo, de forma exclusiva, unidades de habitação e seus prolongamentos, unidades de trabalho, unidades de escritórios, centro de negócios, unidades de lazer interligadas por unidades de circulação. Cada unidade era estudada com a pretensão de ‘dimensão ideal’, assegurando a todos os componentes: sol, espaço

68 e vegetação, conforme reclamado pela ‘Carta de Atenas’. (NYGAARD, 2005, pg.80).

As relações sociais e a divisão de classes eram dirimidas diante da configuração espacial apresentada, os conflitos de interesse não tinham mais razão de existir, pois a partir de então a cidade apresentava-se de forma igualitária para todos.

Este reducionismo espacial, homogeneizando cada parcela de espaço funcional da cidade, está articulado, evidentemente, ao já apontado reducionismo social e funcional e impediu que a cidade expresse na diversidade a sua extraordinária complexidade.[...] na concepção de Le Corbusier foi principalmente pela diversidade do detalhe, de parcelas, que se originou o caos e a desordem nas cidades. ‘O urbanismo reclama uniformidade no detalhe e movimento no conjunto’, era uma das máximas. Mas é justamente esta diversidade que reflete com eloquência a complexidade social e a materialização dos inúmeros conflitos de interesse no espaço urbano. (NYGAARD, 2005, pg.80).

Ainda para Nygaard e para vários governantes do período, o problema urbano presenciado pelo inchaço das cidades e a existência desse chamado “caos urbano” seria decorrente do modelo de gestão pública implementado no período anterior do Regime Militar, 1946 à 1964, onde esses problemas seriam resultados dos entraves políticos decorrentes do período, denominado de populista. Entraves políticos esses que tornavam ineficientes a gestão pública impossibilitando a superação das patentes insuficiências do desenvolvimento econômico.

A modernização induzida e a centralização política cumpriria um papel de ordenadores e racionalizadores da ação do poder público sobre as cidades, principalmente do poder local incorporando as propostas do planning americano que vinham sendo discutidas principalmente desde os anos 1930, assumindo o urbano como um problema do desenvolvimento econômico, buscando gerir a cidade existente com eficiência. (FERREIRA, 2007, pg.44)

O processo de planejamento urbano passaria por uma transformação tecnocrática das questões urbanas, na qual haveria uma tecnificação aliada a uma despolitização dos problemas urbanos, ou seja, aumentaria o rigor técnico, ao mesmo tempo em que haveria uma dissociação das influências políticas.

Para Nygaard, ainda em relação aos Planos Diretores elaborados durante o período do Regime Militar, esse faz uma avaliação de dois pontos de vista, um mais restrito em relação à própria concepção do processo de elaboração, e uma avaliação mais ampla, como ele mesmo as caracteriza. Do ponto de vista mais restrito, Loeb apud Nygaard, que já em 1970 escreveu sobre o processo de elaboração dos Planos Diretores descreve como principais problemas a serem apontados, a dissociação entre os campos políticos e técnicos, onde técnicos envolvidos “possuíam uma visão quase sempre particular, própria e não articulada ao contexto real da cidade, como ‘quem vê

69 de fora, com olhar alheio’” (NYGAARD, 2005, pg.36). Além disso, o mesmo autor (Ibid., 2005, pgs.36-37) continua dizendo que,

[...] os planos diretores apresentavam poucos elementos para assegurar a sua operacionalidade e que geralmente não condiziam com a realidade local. Quando continham programas a serem implantados, estes se mostravam inviáveis, quer pela insuficiência de recursos disponíveis, quer por não corresponderem às reais necessidades do município, pois se colocavam metas estabelecidas idealisticamente. Os Planos Diretores apresentaram uma setorização extremamente forte. Esta setorização, decorrente dos esquemas metodológicos recomendados inclusive pelo SERFHAU, conflitava flagrantemente com a pretensão de integração setorial que estes planos apresentavam, denominados inclusive de ‘planos de desenvolvimento local integrado’. O conteúdo daqueles planos diretores era de abrangência claramente urbana, com notável ênfase aos aspectos físico-territoriais.

Do ponto de vista mais amplo, o contexto político ao qual o país passava estava expressamente representado dentro da concepção dos Planos Diretores desenvolvidos, mesmo sendo de forma implícita. Nessas críticas estavam “o repúdio ao autoritarismo, ao conservadorismo e à pretensa neutralidade” (NYGAARD, 2005) planos que demonstravam uma forte centralização durante os seus processos de elaboração, onde apenas técnicos opinavam, de acordo com a idealização de que o saber técnico era superior ao saber popular. Aliado a isso, estava a quase que necessária dissociação do Regime aos processos de elaboração desses planos, onde o campo político não estava amplamente associado ao campo técnico.

As críticas denunciavam o Plano Diretor como sendo pretensioso, em decorrência da grande diversidade de problemas diferentes que apontava e que pretendia resolver; despolitizado, em virtude de manter uma postura tecnocrática e científica, refratária aos valores e relações sociais locais; determinístico, em decorrência de sua promessa de superar os problemas locais via reordenação dos espaços físicos; autoritário, pela sua tentativa de impor idéias e concepções que não possuíam referências na comunidade local;

desligado da realidade, por conter propostas via de regra irrealizáveis

pelo poder local; e ineficaz, pois quando utilizado não conseguiu melhorar as condições de vida da população local. (NYGAARD, 2005, pgs.42-43)

Os Planos Diretores então elaborados não refletiam os anseios da sociedade, tendo sido feitos dentro de um processo advindo de ”cima para baixo” entendido como de técnicos para a população de determinado local, o que ocasionava grandes distorções da realidade. Por vezes, nem todas as áreas e nem toda a população era contemplada, ficando enormes vazios dentro do tecido urbano a não ser abrangido pelas diretrizes dos planos. Áreas consideradas favelas, ou assentamentos populares, não eram contemplados dentro das propostas dos planos, sendo muitas vezes suas áreas consideradas vazias, como citado anteriormente. Nesse período, as cidades

70 brasileiras continuaram a crescer de forma cada vez mais acelerada e cada vez mais sem planejamento. A população mais carente continuou a não ser contemplada e tendo que ocupar áreas sempre mais longínquas dos centros urbanos, resultando no inchaço das periferias das principais cidades brasileiras.