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3 VIOLÊNCIA ESCOLAR, INDISCIPLINA E BULLYING

3.5 Os protagonistas do bullying e suas consequências

Antes de abordarmos os perfis dos protagonistas envolvidos em casos de bullying, convém expor de forma breve e sucinta alguns sintomas ou consequências que a exposição a esse tipo de violência acarreta na vida dos que a sofrem. Nesse sentido, os especialistas da área de saúde têm frequentemente salientado as consequências perniciosas que o bullying pode desencadear. Com relação às vítimas, Neto (2005) destacou os seguintes sintomas:

enurese noturna, alterações do sono, cefaleia, dor epigástrica, desmaios, vômitos, dores em extremidades, paralisias, hiperventilação, queixas visuais, síndrome do intestino irritável, anorexia, bulimia, isolamento, tentativas de suicídio, irritabilidade, agressividade, ansiedade, perda de memória, histeria, depressão, pânico, relatos de medo, resistência em ir à escola, insegurança por estar na escola, mau rendimento escolar e atos deliberados de autoagressão. (p. 169)

Com base nessas indicações, tornar-se-ia possível diagnosticar quando uma criança está exposta às agressões decorrentes do bullying, pois sintomas como dores de cabeça, dores abdominais, insônia e enurese noturna acometem até cinco vezes mais as crianças que sofrem o bullying do que as demais (Due et al., 2005). Além disso, o quadro de depressão, baixa autoestima, tristeza e insegurança também pode ser diagnosticado em crianças expostas às agressões do bullying. Além dos sintomas psicossomáticos, estudos revelam uma tendência ao absenteísmo por parte de adolescentes vitimados. Nesse aspecto, Rolim (2015) cita um estudo desenvolvido na Austrália, com mais de 30 mil alunos, cujo resultado “demonstrou que 19% dos garotos e 25% das meninas que relataram ser vitimados frequentemente por bullying (pelo menos uma vez por semana) já haviam faltado as aulas por conta do problema” (p. 117).

Mesmo já em idade adulta as vítimas carregam as cicatrizes das agressões, uma vez que “adultos vitimados por bullying na infância relatam grandes dificuldades de relacionamento, baixa confiança nas pessoas, baixa autoestima (Elliot & Shenton, 1999, pp. 115-116, citado por Rolim, 2015). Apesar de saber que as consequências do bullying incidem de forma geral em todos os protagonistas (autores, alvos e espectadores), os efeitos negativos que acometem os alvos deste tipo de violência são inegavelmente ainda mais prejudiciais. Desse modo, é importante compreender o papel que cada um desses protagonistas assume na dinâmica do bullying, considerando suas características e consequências.

A literatura que estuda o fenômeno bullying tem apontado alguns traços que permitem identificar os adolescentes envolvidos nessa prática de violência. De acordo com Olweus (2006), a ansiedade configura-se como uma das características comuns entre os alvos, que, de modo geral, tendem a apresentar baixa autoestima e autoconceito negativo de si mesmos, estão sempre assustados e, frequentemente, permanecem próximos de pessoas adultas, sobretudo nos recreios. Dada a complexidade de comportamentos, reações e manifestações de personalidade, as vítimas (alvos) foram reunidas em três grupos: as típicas, as provocadoras e as agressoras.

A vítima típica é aquela geralmente mais ansiosa e que apresenta comportamento inseguro. Além disso, pode apresentar um aspecto físico que indique fragilidade, “coordenação motora deficiente, extrema sensibilidade, timidez, passividade, baixa autoestima, alguma dificuldade de aprendizado, ansiedade e aspectos depressivos” (Szymanski & Alves, 2009, p. 7979). Além dessas características, outras podem ser identificadas, inclusive entre alunos, que frequentemente se mostram:

mais ansiosos e inseguros do que os demais. Além disso, costumam ser cautelosos, sensíveis e tranquilos. Quando se sentem atacados, normalmente reagem chorando (ao menos os alunos menores) e isolando-se dos demais. Também padecem de baixa autoestima, e têm uma opinião negativa de si mesmos e de sua situação. É frequente que se considerem fracassados, e se sintam estúpidos, envergonhados ou sem atrativos.26 (Olweus, 2006, p. 50, tradução nossa)

Já a vítima provocadora é constituída por um grupo menor de protagonistas. Em meio escolar, fazem parte desse perfil aqueles alunos que se caracterizam pela combinação de dois aspectos: “modelos de ansiedade e de reação agressiva” (Olweus, 2006, p. 52). Para Szymanski e Alves (2009), trata-se de um perfil que tenta brigar ou se defender quando é atacado ou insultado, mas não é bem-sucedido; além disso, é uma vítima que “pode ser imperativa, inquieta, dispersiva e ofensora. É de modo geral tola, imatura, de costumes irritantes e quase sempre é responsável por causar tensões no ambiente em que se encontra” (p. 7979).

Discorrendo sobre os alunos vítimas provocadoras, Olweus (2006) afirma que muitos apresentam “problemas de concentração, e se comportam de forma a causar irritação e tensão ao seu redor”27 (p. 52). Alguns desses alunos também podem apresentar aspectos de

hiperatividade, não sendo incomum que muitos cometam provocações aos demais colegas da turma, o que se “traduz em reações negativas em grande parte do grupo e inclusive neles mesmos”28 (p. 52). O autor considera que os problemas que dizem respeito às vítimas

provocadoras diferem em parte daqueles que se colocam para as vítimas típicas.

Olweus (2006), apoiado em seus estudos desenvolvidos na Suécia (1993) com jovens adultos que haviam sido expostos a situações de violência contínua em meio escolar, adverte que muitos apresentam quadros depressivos e uma autoestima empobrecida. Portanto, os grupos de alunos estudados que foram expostos ao assédio contínuo por seus companheiros de classe apresentaram, na idade adulta, “cicatrizes em suas mentes” (p. 52) que, de alguma forma, impactaram a sua formação.

Com relação à vítima agressora, trata-se de um perfil distinto dos anteriores, uma vez que, neste caso, aqueles que cometem as agressões as praticam como forma de compensar as agressões sofridas. No caso escolar, são aqueles alunos que buscam descontar a violência sofrida procurando um “bode expiatório” para aliviar sua condição de vítima. Na verdade, este perfil busca:

26 “más ansiosos. Además, Suelen ser cautos, sensibles y tranquilos. Cuando se sienten atacados, normalmente

reaccionan llorando (al menos en los cursos inferiores) y alejándose. Asimismo, padacen una baja autoestima, y tienen una opinión negativa de si mismos y de su situación. Es frecuente que se consideren fracassados y si sientan estúpidos, avergonzados o faltos de atractivo.” (p. 50).

27 “problemas de concentración, y si comportan de forma que causan irritación agressiva.” (p. 52). 28 “traduce en reacciones negativas en gran parte del grupo, e incluso en todo él.” (p. 52).

reproduzir os maus tratos sofridos como forma de compensação, procura outra vítima mais frágil e comete contra esta todas as agressões sofridas na escola, ou em casa, transformando o bullying em círculo vicioso (Szymanski & Alves, 2009, p. 7979)

Com efeito, as vítimas agressoras seguem a lógica do revide, fazendo “valer os velhos ditos populares ‘bateu, levou’ ou ‘tudo que vem tem volta’” (Silva, 2010, pp. 37-42) Com isso, esses protagonistas contribuem para aumentar os casos de bullying, tornando tal prática ainda mais destrutiva.

Da mesma forma que as vítimas (alvos), os agressores (autores) também apresentam determinadas características que permitem identificá-los de acordo com os perfis que manifestam. O agressor propriamente dito pode não ser o mesmo, ou seja, muitas vezes é constituído por um grupo de alunos que se une para praticar as agressões contra um alvo, geralmente mais fraco e indefeso. O agressor típico indicado e estudado por Olweus (2006) apresenta como característica distintiva a agressividade ou a “belicosidade” contra os colegas de escola. Entretanto, os alunos que apresentam este traço também manifestam comportamentos agressivos contra os pais e os professores. Na maior parte das vezes são adolescentes que expressam maior tendência,

à violência e ao uso de meios violentos que os demais alunos. Além disso, geralmente caracterizam-se pela impulsividade e por uma necessidade imperiosa de dominar os outros. Têm pouca empatia com as vítimas das agressões. Frequentemente apresentam uma opinião positiva de si mesmos . . . Se são meninos, costumam ser mais fortes fisicamente que os demais e, em particular, mais que suas vítimas.29

(p. 53, tradução nossa)

Além dessas características, é importante frisar que, embora determinados autores de

bullying sejam rejeitados ou mal vistos pelos colegas, “em geral eles são populares,

respeitados, temidos e até admirados” (Neto, 2011, p. 50). Nesse caso, muitos gozam e “apreciam seu status social elevado, fortalecido pelas atitudes dos colegas, seja apenas como observadores ou como incentivadores ativos e passivos” (p. 50). Para Neto (2011), o autor típico apresenta ainda comportamentos e pensamentos que expressam negatividade acerca de si mesmo e dos outros, inabilidade ou dificuldade para resolver conflitos, em particular com os colegas, e muitos “provêm de um ambiente familiar conflituoso ou com supervisão pobre; seu conceito da escola é provavelmente negativo” (p. 40). Outra característica apontada por este autor diz respeito à tendência que muitos agressores (autores) de bullying apresentam

29 “La violencia y el uso de medios violento que los otros alumnos. Además, suelen caracterizar-se por la

impulsividad y uma necesidad imperiosa de dominar a los otros. Tienen poca empatia con las victimas de las agresiones. Es frecuente que tengan uma opinión relativamente positiva de sí mismos [...] Sí son chico, suelen ser más fuertes fisicamente que los demás, y en particular, más que sus victimas.” (p. 53).

com relação às influências causadas “por fatores comunitários e por seus pares de forma imprópria” (p. 40).

Finalmente, temos os espectadores. Trata-se daqueles que assistem às agressões cometidas contra os alvos. Aqui também uma série de atitudes pode ser destacada: há os que observam passivamente, seja por medo ou por apatia; há os que tomam partido, seja contra os agressores, seja unindo-se a estes contra as vítimas; e há os que incentivam ou atiçam as agressões, embora não participem diretamente delas. Contrariamente ao que se pensa acerca dos observadores, eles também são atingidos de múltiplas formas pelo contato direto com a violência que os cerca. Nesse sentido, Prudente (2015) salienta que os observadores:

Indiretamente magoam-se, ficam chateados e inquietos por acharem que não podem ajudar seus colegas. Muitos se sentem culpados por toda a vida. A maioria, embora não sofra nem pratique o bullying, presencia muitas vezes o abuso, mas se omite, por medo ou insegurança, pois se sair em defesa do agredido poderá tornar-se a próxima vítima. Outros tendem a acompanhar os agressores em suas ações, não só para garantir que no futuro não se tornarão as próximas vítimas, como também pelo prazer de pertencer ao grupo dominante. E acabam acreditando que o uso de comportamentos agressivos contra os colegas é o melhor caminho para alcançarem a popularidade e o poder e, por isso, muitos se tornam autores de bullying. Daí a omissão, o silêncio. Mas eles terminam por serem cúmplices da situação. (p. 147)

Essa cumplicidade, diga-se de passagem, também pode ser observada entre os adultos, na medida em que muitos assistem aos comportamentos de bullying e, por ignorar a eventual gravidade da situação, por considerá-la uma “brincadeira” de adolescentes ou por mero despreparo frente ao problema, tornam-se omissos, abrindo mão de uma intervenção oportuna nos casos que surgem. Há, além disso, os que acabam tomando as ocorrências de bullying ou mesmo as agressões cometidas entre pares como formas de indisciplina ou de incivilidade, o que dificulta ainda mais a real compreensão do contexto, da forma e da intervenção nas ocorrências do fenômeno. Do mesmo modo, os atos de humilhação, as ofensas e as agressões praticadas por meio da internet não podem ser minimizados ou tratados de forma superficial.

Stiegler (2006) relata, a título de exemplo, o episódio de um estupro praticado por um menor de idade em fins de 2005, em Nice, na França. As cenas teriam sido filmadas com a utilização de um aparelho celular e divulgadas no interior de um estabelecimento escolar. Cenas semelhantes, diga-se de passagem, também já foram denunciadas em escolas brasileiras, sendo a maior parte desses episódios caracterizados como prática de bullying entre adolescentes. Esta é uma modalidade de agressão que recebeu entre os estudiosos a denominação de cyberbullying, evidenciando uma manipulação perversa das novas tecnologias por parte de seus usuários, inclusive os adolescentes.

Um dos aspectos que denuncia o mau uso de tecnologias, de aplicativos como o

Facebook ou das redes sociais em geral, pode ser observado quando determinado indivíduo

passa a ser controlado, manipulado ou, em casos mais graves, tem a sua intimidade exposta publicamente. Sabemos que tanto o Facebook quanto os demais sites vinculados às redes sociais estão abrindo novíssimos espaços para determinadas agências que “tendem a se concentrar nos jovens e a tratá-los basicamente como ‘terras virgens’ à espera de conquista e exploração pelo avanço das tropas consumistas” (Bauman, 2013, p. 53).

No Brasil, algumas pesquisas sobre o bullying (Fante, 2005; Nogueira, 2007; Zaine, Reis, & Padovani, 2010) também revelam o crescimento do chamado bullying virtual, em que o uso dos meios eletrônicos, redes sociais, celulares, entre outros gadgets, tende a constituir um novo espaço para o exercício da violência. Isso, contudo, não significa que devemos renunciar às novas tecnologias, ou responsabilizá-las pelas mazelas que pesam sobre a educação escolar, mas que devemos nos apropriar delas de forma crítica e, se possível, de maneira autônoma, consciente e politizada.

O tempo que crianças e adolescentes consomem diante das telas é frequentemente absurdo e tem aumentado de modo contínuo. Sob esse aspecto, basta citar alguns números para compreendermos a dimensão real do problema. Autores como Stiegler e Tisseron (2009), ao discutirem questões polêmicas em torno das mídias digitais, em um trabalho intitulado

Faut-il interdire les écrans aux enfants?30 indagam como seria possível digerir a violência

cotidiana veiculada pela mídia em programas que são, inclusive, vistos por crianças. Segundo os autores, “pesquisadores calcularam que uma criança americana que consome três horas de televisão por dia será testemunha, antes de 12 anos, de aproximadamente 8 mil mortes”31 (pp.

48-49, tradução nossa).

As mídias operam, frequentemente, em uma temporalidade sem memória, avessa à reflexão e sem experiência, pouco importando o conteúdo que veiculam. Nesse sentido, o trabalho educacional deve assumir várias frentes de luta, sendo a crítica à indústria cultural, a reflexão, o trabalho do pensamento e a resistência à dominação algumas dessas frentes, pois a tarefa não é pequena; pelo contrário, trata-se de uma reeducação permanente do olhar e da sensibilidade, voltada para a “ampliação de experiência” (Horkheimer, 1963). Pensemos na violência frequentemente veiculada pela mídia brasileira:

30 “Devemos proibir as telas às crianças?”.

31 “Des chercheurs ont calculé qu’un enfant américain qui consomme trois heures de télévision par jour aura été

Há na mídia brasileira, a disseminação de diferentes formas de violência – confira-se os jornais televisivos que divulgam minuciosamente como se sequestram pessoas, a forma de intimidá-las etc., tudo a título de ‘informação’, e divulgam-se possíveis paradeiros de delinquentes a título de ‘democratização de informações’, quando, na verdade, o informado vem a ser, antes de mais nada, o transgressor. O retrato falado de ‘criminosos é mostrado na tela ou nos jornais, facilitando amplamente os disfarces do agressor. (Matos, 2006, p. 15)

Da mesma forma que a violência é tratada de modo sensacionalista, performática e irresponsável, assim também o humor e o entretenimento estão inseridos na mesma lógica. Isso sem contar os efeitos nocivos que o excesso das telas provoca no imaginário infantil: hiperatividade, déficit de atenção, desconcentração, impaciência, destruição da capacidade de escuta; enfim, uma multiplicidade de efeitos que ocorrem, sobretudo, quando as crianças são “abandonadas” diante das telas.

Além desse fenômeno aparentemente inofensivo, mas que preserva, segundo Horkheimer e Adorno (1985), traços totalitários – uma vez que, sob o comando da indústria cultural, a dominação se torna a regra, e a “servidão voluntária” se apresenta como sua decorrência necessária –, presenciamos também a “colonização do nosso mundo interno”. O novo capitalismo, que opera em escala global tendo a economia industrial como padrão e o marketing e as campanhas publicitárias como poderosos aliados, induzem, de acordo com Stiegler, “do lado dos consumidores, uma perda do saber fazer e do saber viver, isto é, a perda do saber inventar sua própria vida”32 (2006, p. 51, tradução nossa). Portanto, se o que

caracteriza a sociedade capitalista é justamente a proletarização dos homens, e se o que caracteriza o processo de proletarização é a perda dos saberes, seja do lado dos trabalhadores, com a perda do saber fazer, seja dos consumidores, com a perda do saber viver, é fácil compreender a relação entre marketing e propaganda, ou campanhas publicitárias como processos de dessubjetivação, alienação e empobrecimento simbólico dos indivíduos.

Esse empobrecimento simbólico, associado à incapacidade de estabelecer vínculos capazes de promover um processo de identificação entre os indivíduos, pode ser uma das chaves para se compreender o exercício da violência ou do bullying em meio escolar, pois a indiferença que tem caracterizado as relações entre os homens concorre para naturalizar e disseminar manifestações de violência, agressividade e barbárie. A esse respeito, Adorno (1995a) escreve:

Se as pessoas não fossem profundamente indiferentes em relação ao que acontece com todas as outras, excetuando o punhado com quem mantêm vínculos estreitos e possivelmente por intermédio de alguns interesses concretos, então Auschwitz não teria sido possível, as pessoas não o teriam aceito. (p. 134)

32 “du côté des consommateurs une perte de savoir-faire et de savoir-vivre, c’est-à-dire la perte du savoir

Assim, se cabe à escola coibir, conter ou combater as formas de violência, de maneira especial as que se expressam em seu meio, é mister que ela questione esse processo de perda da sensibilidade e do crescimento da indiferença que permeia as relações humanas. Além disso, os mecanismos de dominação, apoiados na técnica e vinculados à indústria cultural, devem igualmente ser questionados, uma vez que enaltecem, frequentemente, a estética da violência: “no cinema, nos jornais, na televisão e agora no celular, nos locais públicos ou em casa, os olhos parecem absorver sem emoção notícias abomináveis de mortes e de massacres. É o alimento da violência interior” (Novaes, 2015, p. 12). A expressão violência foi proferida por Valéry nesses termos:

Nosso século teria trazido, entre tantas outras novidades excessivas, às vezes desumanas, uma modificação tão grande e tão detestável naquilo que chamaria de “sensibilidade ética” dos indivíduos, na ideia que fazem de si mesmos e de seus semelhantes, no valor que eles dão à conduta e às consequências dos atos, que se deve admitir que a era do bem e do mal é uma era superada. (Valéry, n.d., citado por Novaes, 2015, p. 12)

Nesse sentido, o crescimento dos episódios de violência que mancham as páginas dos noticiários e dos telejornais - fato que pode ser meramente expressão do aumento na divulgação e informação desses acontecimentos, uma vez que garante um lugar favorável no ibope -, tem assumido um impacto negativo em todos os âmbitos da vida social, inclusive dentro dos muros escolares. Recorrentemente citada, convertendo-se mesmo em lema entre os frankfurtianos, é a velha expressão: “que Auschwitz não se repita”. Nesse prisma, Adorno (1995a) adverte que “qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta” (p. 119). Uma educação voltada para o abrandamento de tendências agressivas, para a aversão à crueldade e às formas de socialização contrárias à sensibilidade e ao pensamento crítico torna-se essencial, tal como sugere o autor, para a construção de uma sociedade verdadeiramente humana.

Com efeito, é preciso pensar as questões da violência ou da barbárie menos como um atributo natural intrínseco ao indivíduo e mais como uma tendência da forma como se estruturam a sociedade e as relações humanas. Por isso, Adorno insiste tanto na meta educacional que apresente resistência ao que aconteceu na Alemanha de Hitler. Refletindo justamente sobre essa meta, Matos (2015a) observa que a violência é sempre sem razão, contrária a qualquer princípio ético e ao pensamento autônomo:

E, em Auschwitz, as palavras de um soldado da SS, em resposta à pergunta de Primo Levi de por que lhe era recusado saciar a sede com a neve do chão, contém a essência da crueldade: “Hier ist kein Warum”. A violência é “sem porquê”, uma vez que violência e crueldade obedecem, sempre, ao que é cego à reflexão e ao pensamento. (p. 266)

Apesar da ausência de finalidade ou de um porquê que justifique a violência, Crochík (2012), com base em Adorno (1995a) e Bleichmar (2008), lembra que haveria um tipo de violência racional ou necessária, e que se oporia às demais modalidades de violência, uma vez que estas visam à dominação social, enquanto aquela “obra contra essa dominação. Dessa forma, a crítica deve ser dirigida ao tipo de violência que destrói a cultura, que aniquila o indivíduo” (p. 214).

Assim, cabe aos educadores mais uma tarefa, qual seja, a de assumir como princípio vital ou como meta educacional o combate à violência com todos os mecanismos possíveis,