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Os quatro discursos lacanianos

No documento Linguagem verbal e linguagem imagética (páginas 37-44)

2.2 A CONSTITUIÇÃO DO DISCURSO A PARTIR DA PSICANÁLISE

2.2.1 Os quatro discursos lacanianos

Ressalto aqui que a partir da psicanálise, um dos tripés da AD, busquei compreender melhor o discurso do espaço escolar e, dessa forma, verificar se as práticas discursivas das duas turmas de 3º ano do Ensino Fundamental I contribuíam para a formação do letramento. Questionava-me: será que o professor dá espaço para o aluno se expressar nos momentos de interação verbal e será que ela ocorre? Como a leitura do gênero verbal imagético se desenvolve?

A partir desse momento, considerei importante as noções de assujeitamento e subjetividade, noções incorporadas ao Outro lacaniano para a constituição do sujeito. Lacan explica que o homem é constituído pela e na linguagem, e esta é veiculada por meio de um

jogo simbólico intersubjetivo. Ao falar sobre o inconsciente lacaniano, Dor (1989, p. 154) menciona, citando Lacan, que ―o inconsciente é o discurso do Outro‖, isto é, a linguagem determina o sujeito mesmo antes do seu nascimento e também depois de sua morte porque, ao vir ao mundo, já está marcado por um discurso; este se refere à cultura, à classe social à qual pertence e à família. Tal relação subjetiva constitui o Outro, o lugar onde o sujeito se forma, por isso Lacan trata não só do sujeito na relação com a exterioridade do simbólico, mas também na relação com a linguagem.

Ao levar essa relação à escola, pode-se dizer que, para a aprendizagem se efetivar, é necessária a passagem do plano imaginário para o plano simbólico e, para isso, é fundamental que em determinados momentos ocorra a quebra do discurso autoritário que concede ao saber escolarizado um estatuto de ciência.

Pensando no sentido dos gêneros imagéticos, necessita-se encontrar os pontos cegos: aquilo que se vê não é suficiente para o desenvolvimento da crítica porque os sujeitos, na AD, são atravessados e constituídos sócio-historicamente, em suma, ideologicamente, todavia, para Lacan, não se trata de um processo sócio-histórico. Lacan18 (apud OGILVIE, 1991) diria que tal atravessamento é fruto da interdição, ou seja, os sentidos não estão acabados, mas formam uma espécie de ilusão; esta, no entanto, é regida por leis próprias. O autor postula a racionalidade do ilusório, por meio da qual a análise contrapõe-se ao reducionismo, dando atenção àquilo que é ilusório no discurso, como os lapsos, atos falhos, chistes e equívocos – sintomas do funcionamento do inconsciente.

No registro do imaginário ocorre a relação do sujeito com o pequeno outro (autre – o outro da interação); é uma relação dual, sem a presença de mediações ou intermediações, em que aquilo que se vê é originário do desejo e daquilo que se quer ver, ou seja, uma imagem narcísica. Já na relação com o simbólico, tem-se a presença da linguagem, esta relacionada ao grande Outro (Autre) e à formulação do inconsciente – estruturado como linguagem. Como afirma Lacan: ―o inconsciente é o discurso do Outro‖.

O Outro não é alguém anônimo nem uma pessoa determinada, refere-se a um lugar simbólico, ao qual o sujeito está submetido, sendo as relações significantes reguladas por esse lugar. Os significantes registram o inconsciente enquanto linguagem, inscrevendo a falta. Como mostra Lacan (2003, p, 11): ―Mediante o instrumento da linguagem instaura-se

18 Em julho de 1953, Lacan introduz a tríade simbólico-imaginário-real. Para delimitação, esta pesquisa se

certo número de relações estáveis, no interior das quais certamente pode inscrever-se algo bem mais amplo, que vai bem mais longe do que as enunciações efetivas.‖.

Os sujeitos, por estarem inseridos em um contexto social, envolvem-se com a relação de poder e por meio dela é que as relações simbólicas (linguagem) e materiais (dinheiro, capital, mercadoria) de uma sociedade são geradas. Isso significa que na relação professor-aluno o discurso é aceito dentro de determinados limites e a partir de determinados critérios, uma vez que ocorrem relações de poder que dependem da posição ocupada pelos participantes do discurso no decorrer das práticas. Além disso, uns participantes terão maior poder sobre os outros. As práticas discursivas poderão contribuir para a formação da sociedade como para a sua reprodução. Foucault explica que

as disciplinas, organizando as ―celas‖, os ―lugares‖ e as ―fileiras‖, criam espaços complexos: ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais e hierárquicos. São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos individuais e estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos [...]. A primeira das grandes operações da disciplina é então a constituição de ―quadros vivos‖ que transformam as multidões confusas, inúteis ou perigosas em multiplicidades organizadas. (1999, p. 126-127)

Em se tratando de transformação, é também papel do professor dar condições para que ela ocorra. Para tanto, considerar os sujeitos e seus contextos nas interações de troca de conhecimento é dar-lhes oportunidade para se constituírem em outras filiações, constituindo suas identidades e tornando-se agentes sociais capazes de se posicionarem em relação às práticas discursivas – ao mesmo tempo em que são construídas pelos outros e pelo mundo, as pessoas também têm a oportunidade de construí-los. Dessa forma, mesmo posicionados ideologicamente, os sujeitos serão capazes de organizar suas atividades cotidianas e seu entendimento particular do mundo social em que vivem com base nas discussões problematizadas.

Compreender como esse poder está sendo investido na escola e se auxilia para a alfabetização e letramento faz com que se pense na constituição do outro. Pressupondo que exista um discurso de poder (discurso autoritário) prevalecendo no seio escolar, embora não sendo determinado por completo, será que o aluno está conseguindo escapar a este discurso, produzindo contradiscursos? Este discurso de poder é coercitivo ou colaborativo?

Ao sair da esfera do imaginário (a relação com o outro), que tenta a unificação e a complementaridade dos sentidos para a via do simbólico (Outro), que trata da pluralidade dos sentidos, buscou-se compreender tais relações com os processos de alfabetização e

letramento. Visto que o sujeito constitui-se pela e na linguagem, é por meio do Outro que emergirá a pluralidade de sentidos na compreensão dos textos com imagens e não apenas destes. A partir desse ponto, verificar o esquema dos quatro discursos de Jacques Lacan tornou-se necessário.

O psicanalista francês Jacques Lacan propôs os quatros discursos: do Mestre, da Histérica, do Analista e do Universitário. De acordo com Nunes, Filho e Franco (2011), em comunicação apresentada no VI Congresso Nacional de Psicanálise e XV Encontro de Psicanálise da UFC, os discursos foram formulados a partir da implicação dos três ofícios considerados de impossível realização; estes foram relatados por Freud ([1937] 1996) como sendo os ofícios de governar, psicanalisar e educar. A esses três, Lacan acrescenta aquele de fazer desejar. A partir de Quinet (2009), os autores explicam que os quatro discursos se associam aos elementos: S1, S2, $ e a. Sendo que:

- S1 relaciona-se ao significante-mestre, aquele que tem a qualidade de comando, de unicidade. É, portanto, o significante que remete à experiência imediata e que não pode ser plenamente retomada e, pelo fato de se negligenciar essa impossibilidade, o S1 se configura em S2.

- S2 representa a busca perene pela primeira experiência; trata-se do saber inconsciente.

- $ define-se como o irrepresentável, considerando que não há um significante que exaure a definição do sujeito; refere-se à castração.

- a aparece com nuances diferentes no decorrer dos estudos lacanianos. A partir de Quinet (2009), os autores (2011, s. p.) mencionam que o a, denominado mais-de-gozar, “representa justamente o excesso do gozo que se perde pelo próprio funcionamento do aparelho psíquico.‖.

Para Lacan, explicam os autores, a perda desse gozo pelo sujeito é recuperada de outra forma, em outro nível: trata-se de um gozo paradoxal, obtido devido ao fato da primeira renúncia. O psicanalista explica (LACAN, [1969-1970]1992, p. 47/48):

De fato, é apenas nesse efeito de entropia, nesse desperdiçamento, que o gozo se apresenta, adquire um status. Eis por que o introduzi de início com o termo Mehrlust, mais-de-gozar. É justamente por ser apreendido na dimensão da perda [...] que esse não-sei-quê, que veio bater, ressoar nas paredes do sino, fez gozo, e gozo a repetir. Só a dimensão da entropia dá corpo ao seguinte – há um mais-de-gozar a recuperar.

Se o saber na psicanálise se faz a partir das incidências do inconsciente, da relação do corpo com o real da língua, compreender os discursos lacanianos pareceu-me essencial porque o contexto da sala de aula se faz por meio do discurso. A psicanálise entende que o discurso é o responsável pela definição e fundação de cada realidade, ou seja, não existe possibilidade de uma realidade anterior à discursiva.

De acordo com Jorge (2002, p. 25 apud NUNES, FILHO; FRANCO, 2011, s.p.), ―o sujeito falante se inscreve em uma realidade discursiva preexistente, a partir dos significantes do campo do Outro‖. O real (gozo), como precede a linguagem, não existe, mas ex-siste, e isso significa dizer que está separado da nossa realidade, ainda não foi simbolizado ou está para ser simbolizado. No seminário Mais, ainda ([1972-1973]1996, p. 45), Lacan ressalta que ―não há nenhuma realidade pré-discursiva. Cada realidade se funda e se define por um discurso.‖. Os elementos que compõem os discursos (S1, S2, $ e a) circulam por quatro lugares fixos, da seguinte forma:

Figura 2 – Discurso lacaniano

Fonte: Nunes, Filho e Franco (2011)

Tais lugares indicam que, necessariamente, todo discurso apresenta uma verdade (semi-dizer) que o faz emergir, colocando o aparelho discursivo em movimento. Essa verdade refere-se à lei interna de sua enunciação, ao que pode e não pode ser dito, é o lugar de ordem e dominância, do agente do discurso. Conforme Lacan, ―o agente não é forçosamente aquele que faz, mas aquele a quem se faz agir.‖ ([1969-1970]1992, p.161). Em outras palavras, o agente é movido por sua verdade e assim intervém no campo do Outro, colocando-o a trabalhar. Surge a verdade de quem está na atual posição de agente. Como explica Lacan: ―quem sempre trabalha é esse que está aqui, no alto e à direita – para fazer a verdade brotar, pois este é o sentido do trabalho.‖ ([1969-1970]1992, p. 98). O resultado desse trabalho é tido como resto, o mais-de-gozar.

Retomando o artigo de Nunes, Filho e Franco (2011), observam-se os lugares fixos (agente, verdade, outro e produção), a partir dos diagramas a quatro patas, conforme denominados por Lacan, na figura 3.

Figura 3 – Diagrama a quatro patas

Fonte: Nunes, Filho e Franco (2011) (a partir de Lacan)

No discurso do mestre19, para o sujeito entrar na ordem simbólica (Outro) é necessário um significante-mestre (S1). De forma exemplificativa, tem-se a figura do professor (S1), alguém que está ali, diante dos alunos, e que precisa ser considerado como tal para que o jogo possa começar, e para isso marcas se fazem presentes: sala de aula, carteiras, cadeiras, quadro e giz/pincel.

Assim que o rito inicia – o professor entra e os alunos se sentam – dá-se o processo de resistência por parte de alguns por meio das brincadeiras e das conversas. Esse é o momento em que se desencadeia o exercício da atuação de poder motivado pela figura do aluno considerado desobediente, porém, essa figura é importante para estabelecer essa relação de poder. Dada a desobediência, constrói-se o jogo do saber-fazer, ou seja, o mestre, que até então era um significante sem significado, passa a instaurar o discurso da ordem: significante do saber S2.

Uma vez instaurado o S2, o professor é então autorizado a exercer a sua função, esta que se baseia em um certificado/diploma. Todavia, os alunos sabem que o professor – para receber tal titulação – passou por escolas como eles, as quais – normalmente – não ensinam tudo aquilo que propagam. Dessa forma, o professor, para então exercer o papel de significante-mestre, desconsidera que é esse passar-sem-aprender que acabará reproduzindo. Em contrapartida, o aluno sabe que quer passar e também que o professor quer isso, uma vez que este quer que o jogo se mantenha; é como se aluno e professor estivessem imersos em um jogo de faz de conta e seduzidos pelas próprias jogadas; acreditando que elas são reais, estão

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embriagados, embebidos por uma fantasia, pela castração. O significante do sujeito castrado é o $ (lê-se esse barrado).

Diante dessa fantasia, o aluno tem necessidade (bem como o professor) de mostrar o que ocorre em sala de aula e, para isso, folhas e folhas de caderno escritas, fotocópias, exposições e, muitas vezes, as listas de exercícios que se aplicam seguem o mesmo padrão e são meras reproduções. Porém, servem para serem mostrados aos interessados (direção, equipe pedagógica, pais e ao próprio aluno) com o intuito de apontar tais elementos como constitutivos de uma promoção. Algumas pesquisas mencionam que se trata da causa da aprovação, mesmo sem se referir ao aprendizado real. Relacionam assim o objeto causa do desejo, ao a (lê-se a minúsculo).

No entanto, no ano seguinte, esse rito – como que movido por uma compulsão à repetição – novamente ganha fôlego. Esse considerado saber produzido nessas folhas de caderno e listas de exercícios é como se fosse um gozo perdido: reproduziu, muitas vezes não aprendeu, ou seja, não gozou, só repetiu e fez de conta. Por isso, acredito que além da causa do desejo, o rito provoca no sujeito uma potência de desejo, o que seria equivalente, na sala de aula, a um aprendizado ou uma produção intelectual por parte do aluno, todavia, parafrásticas.

O que se propõe aqui não é – a partir do discurso do mestre (em Lacan) – aplicar a psicanálise no processo de compreensão da linguagem imagética, tampouco orientar os eventos de sala de aula de forma psicanalítica, nem psicanalisar o aluno. O que se buscou foi compreender elementos constitutivos da psicanálise que poderiam auxiliar no entendimento do processo de interlocução professor-aluno e aluno-aluno, sendo este um dos objetivos desta pesquisa.

A busca dos subsídios teóricos necessários para a análise dos recortes discursivos que serão apresentados no Capítulo 4 levou-me não só à psicanálise, mas também a refletir a respeito do discurso da sala de aula. Isso porque o professor – constituído e constituinte da cultura escola – está embebido por uma investidura que lhe concede poder e lhe coloca a armadura da verdade inquestionável; mas na outra ponta aparece aquele aluno que busca desatar as amarras e desvencilhar-se da cientificidade, tentando sair do jogo da castração. Nesse momento, as regras foram quebradas, a interlocução recebe um novo funcionamento, que aqui me interessa. Isso porque, ao pensar em interações mediadas por leituras seguidas de interpretação e compreensão textual, quando ao aluno é oportunizado expor suas ideias, nota- se que outros se sentem também à vontade para se expressar.

Assim, a aula que era centrada nas explicações do professor passa a se aproximar do contexto dos alunos, suas vivências e experiências. Por isso compreender o discurso que circula em sala de aula também é importante; de acordo com Orlandi (2011), é possível supor que há três tipos de discurso – lúdico, polêmico e o autoritário – funcionando no discurso pedagógico. Porém, para a autora, o discurso autoritário é aquele que ainda hoje se apresenta. A subseção a seguir busca explicar os três tipos de discursos propostos pela autora, mas antes ressalto que o discurso do mestre em Lacan se coaduna ao discurso autoritário em Orlandi.

No documento Linguagem verbal e linguagem imagética (páginas 37-44)