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OS SIGNIFICADOS DE JUSTIÇA, LIBERDADE E DEMOCRACIA

2. DEMOCRACIA, JUSTIÇA, LIBERDADE

2.10. OS SIGNIFICADOS DE JUSTIÇA, LIBERDADE E DEMOCRACIA

Assim como a figura do “caracol”, outro exemplo da inovação na linguagem política que caracteriza o zapatismo são os contos do Velho Antonio, personagem criado pelo Subcomandante Marcos para apresentar os saberes maias, no qual se fundamenta o pensamento político e a organização das comunidades rebeldes zapatistas. A figura do Velho Antonio representa a própria fundação do EZLN e o reencontro da cultura mestiça com a indígena, ou seja, do mexicano com sua memória histórica (NAVARRO, 2012). Em um comunicado de 2004, o porta-voz zapatista explica o significado dos seus três princípios através de um conto indígena, narrado pelo Velho Antonio. Este conto consiste na história das três palavras fundamentais da organização zapatista – liberdade, democracia e justiça –, que seriam as três primeiras palavras, de todas as línguas. Creio que uma das melhores formas de ilustrar a argumentação central deste capítulo seja através das próprias palavras do Velho Antonio:

“La lengua verdadera se nació junto con los dioses primeros, los que hicieron el mundo. (…) Las tres primeras de todas las palabras y de todas las lenguas son democracia, libertad, justicia. „Justicia‟ no es dar castigo, es reponerle a cada cual lo que merece y cada cual merece lo que el espejo le devuelve: él mismo. El que dio muerte, miseria, explotación, altivez, soberbia, tiene como merecimiento un bueno tanto de pena y tristeza para su caminar. El que dio trabajo, vida, lucha, el que fue hermano tiene como merecimiento una lucecita que le alumbre siempre el rostro, el pecho y el andar. „Libertad‟ no es que cada uno haga lo que quiere, es poder escoger cualquier camino que te guste para encontrar el espejo, para caminar la palabra verdadera. Pero cualquier camino que no te haga perder el espejo, que no te lleve a traicionarte a ti mismo, a los tuyos, a los otros. „Democracia‟ es que los pensamientos lleguen a un buen acuerdo. No que todos piensen igual, sino que todos los pensamientos o la mayoría de los pensamientos busquen y lleguen a un acuerdo común, que sea bueno para la mayoría sin eliminar a los que son menos. Que la palabra de mando obedezca la palabra de la mayoría, que el bastón de mando tenga palabra colectiva y no una sola voluntad. Que el espejo refleje todo, caminantes y camino, y sea, así, motivo de pensamiento para dentro de uno mismo y para afuera del mundo. De estas tres palabras vienen todas las palabras, a estas tres

se encadenan las vidas y muertes de los hombres y mujeres verdaderos. (…) Pero, para que la lengua verdadera no se perdiera, los dioses primeros, los que hicieron el mundo, dijeron que había que cuidar las tres primera palabras. Los espejos de la lengua podían romperse algún día y entonces las palabras que parieron se romperían igual que los espejos y quedaría el mundo sin palabras que hablar o callar. Así, antes de morirse para vivir, los dioses primeros entregaron esas tres primeras palabras a los hombres y mujeres de maíz para las cuidaran. Desde entonces, los hombres y mujeres verdaderos custodian como herencia esas tres palabras. Para que no se olviden nunca, las caminan, las luchan, las viven…” (Conto “La historia de las palabras”, Comunicado do Subcomandante Marcos, 30/12/1994).

Assim sendo, democracia, justiça e liberdade são princípios das comunidades indígenas zapatistas de Chiapas, mas também são considerados, por elas, conceitos universais. Recordemos que na Segunda Declaração da Selva Lacandona, os zapatistas afirmam que o mais precioso de todos os “direitos elementares” do ser humano é o de decidir, com liberdade e democracia, a forma de governo (Segunda Declaração da Selva Lacandona, 12/06/1994). Isto fica claro, por exemplo, na convocatória que o Subcomandante Marcos faz ao Primeiro Encontro Intercontinental pela Humanidade e contra o Neoliberalismo, quando afirma que o EZLN fala a “todos que lutam pelos valores humanos de democracia, liberdade e justiça” (Primeira Declaração contra o Neoliberalismo e pela Humanidade, 01/01/1996). No discurso de encerramento do Encontro, Marcos exalta a universalidade destes princípios, apontando que as mais diferentes realidades ao redor do mundo estão unidas contra a ordem global do neoliberalismo. Com as seguintes palavras ele conclui o seu discurso: “somos homens e mulheres que lutamos em todo o mundo; somos homens e mulheres que queremos para os cinco continentes: Democracia! Liberdade! Justiça!” (Segunda Declaração contra o Neoliberalismo e pela Humanidade, 03/08/1996). São mensagens de liberdade, justiça e democracia, que os zapatistas enviaram aos povos “hermanos” dos cinco continentes no Encontro Intercontinental contra o Neoliberalismo em 1996, da mesma forma com que foi por liberdade, justiça e democracia para todos os mexicanos que se levantaram os zapatistas no amanhecer de 1994 e que é por liberdade, justiça e democracia que dia a dia trabalham os zapatistas nos seus territórios rebeldes.

À título de conclusão, pode-se dizer que a democracia zapatista é não apenas a generalização da participação política direta, mas a radicalização do exercício do poder por todos. Para tanto, é necessário desburocratizar a política, tornando-a algo simples, acessível e cotidiano. A concepção democrática zapatista implica uma inversão entre governantes e governados, resumida nas sete regras das autoridades autônomas: servir e

não se servir, representar e não suplantar, construir e não destruir, obedecer e não mandar, propor e não impor, convencer e não vencer, descer e não subir. De acordo com o conto acima, envolve não a homogeneização de pensamentos e opiniões, mas sim um bom acordo entre eles. A liberdade zapatista está intimamente ligada com o autogoverno e a autodeterminação das comunidades, sem interferência ou dependência do estado. Trata-se de uma autonomia que enfrenta mais de quinhentos anos de poder colonial. Como explica o Velho Antonio, tem a ver não com fazer o que bem entender, mas sim com o poder de escolher o seu próprio caminho. Implica a retomada dos rumos das comunidades por suas próprias mãos e, portanto, está ligada, ao mesmo tempo, com a identidade e a diversidade, ou seja, à defesa do respeito às diferenças, por “um mundo onde caibam muitos mundos”. A justiça zapatista se dá segundo o uso de seus próprios costumes para resolução dos seus conflitos, está relacionada não à punição, mas a que cada um receba o que mereça. Está baseada na igualdade e equidade entre os indivíduos e coletividades, ou seja, com o fim dos privilégios.

Entretanto, a justiça implica o reconhecimento das diferenças, a participação de todos nos assuntos comunitários e a possibilidade de criar suas instituições autônomas. Também está intimamente relacionada com a reparação de quinhentos anos de história, da mesma forma que a participação democrática das comunidades também está imbricada com os séculos de resistência. Por sua vez, a negação da exclusividade do exercício da política por uma elite é prerrogativa à liberdade plena, assim como também é requisito para a liberdade a possibilidade real do uso dos seus próprios costumes para resolução dos conflitos, além da justiça social e material. Em suma, é impossível falar dos três princípios separadamente, não apenas pelas inúmeras intersecções dos seus significados na realidade das bases de apoio, mas também pela sua contínua reconstrução e ressignificação na prática cotidiana de autonomia das comunidades rebeldes em resistência. Retorno, assim, aos argumentos iniciais do capítulo de que o pensamento político zapatista é resultado da sua prática – e não o contrário – e que seus princípios de justiça, liberdade e democracia mesclam-se na organização autônoma das suas comunidades que, por sua vez, não se distingue da sua resistência cotidiana.