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A arquitetura da linguagem

OS SISTEMAS DE INTERFACE

No estudo da linguagem humana, é muito importante termos sem-pre consciência de que os usos que podemos fazer com uma língua natural (como, por exemplo, a comunicação) não devem ser confundidos com a própria linguagem. Por exemplo, nós humanos usamos a linguagem essen-cialmente para estabelecer comunicação e trocar informações. No entanto, comunicação e troca de informação podem acontecer sem a utilização da linguagem humana. Pense nos animais que se comunicam naturalmente entre si, mas não possuem linguagem humana, ou pense nos pequenos bebês que ainda não adquiriram uma língua específi ca, mas são capazes de se comunicar com outras pessoas, ou, ainda, pense na comunicação entre as células que estruturam um organismo qualquer, ou na comunicação entre os dispositivos que compõem o seu computador pessoal. Todos esses são exemplos de comunicação e informação que acontecem sem a

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Sendo assim, muitos cientistas cognitivos concordam em dizer que a nossa linguagem produz representações de som e signifi cado, mas são outros sistemas cognitivos (como nossas intenções, crenças e desejos, os aparelhos fonador e auditivo etc.) que motivam essas representações e as põem em uso, inclusive para a comunicação. Para você entender melhor isso, façamos uma pequena alegoria. Imagine uma fábrica de telefones.

Ela somente produz telefones, depositando neles tudo o que é necessá-rio e sufi ciente para que funcionem corretamente. Todavia, a utilização específi ca que fazemos desses telefones não depende da fábrica, mas sim dos usuários. São eles que colocarão os telefones em uso, utilizando-os de todas as maneiras possíveis – para falar com quem quiserem, quanto tempo quiserem, na posição que quiserem, de onde quiserem, sobre o que quiserem, usando a operadora que quiserem etc. Podemos dizer, então, que o mercado da telefonia possui pelo menos dois polos: o da produção dos telefones (pela fábrica) e o do sua utilização (pelos consumidores).

Você entendeu a alegoria? Se sim, então poderá utilizá-la para compreender o mercado da linguagem. Nele, também encontramos dois polos, ambos interiores à mente humana. O primeiro é o da produção das representações do par (, ), que é de responsabilidade da linguagem.

A linguagem funciona como uma fábrica que deposita nas representações do par (, ) tudo o que é necessário e sufi ciente para os diversos usos que delas podem ser feitos, inclusive a comunicação. O segundo polo é o do acesso e uso dessas representações, algo de responsabilidade de outros sistemas cognitivos. Esses sistemas funcionam como usuários das representações da linguagem, que as põem em uso para diversos propósitos. Que sistemas são esses? Vejamos a seguir.

Os sistemas cognitivos que acessam e fazem uso das representações do par (, ) são denominados SISTEMASDEINTERFACE. Às vezes, tais sistemas são também chamados pelos linguistas de sistemas de desempenho ou sistemas superiores. Na arquitetura da cognição humana, esses sistemas desempenham a função de receber o produto (output) da linguagem e transformá-lo em dado entrada (input) para outros módulos da mente – os módulos de interface.

Os sistemas de interface são, na verdade, um conjunto de facul-dades cognitivas. Elas encontram-se interligadas de tal maneira que se torna possível agrupá-las, para fi ns descritivos didáticos, em somente dois sistemas: (1º) o sistema de pensamento e (2º) o sistema sensório-motor.

Analisemos em detalhes cada um deles.

Usamos o termo

Para entendermos as interfaces entre linguagem e pensamento, façamos a seguinte refl exão. Imagine o que acontece em nossa mente quando meditamos em silêncio sobre algum problema. Ao pensar num dado assunto, nossas ideias não são necessariamente mediadas pela linguagem verbal. Muitas vezes podemos pensar de maneira puramente abstrata, usando o pensamento pelo próprio pensamento – aquilo que Pinker (2007) e Fodor (1975) chamam de mentalês ou linguagem do pensamento. Esse fato empírico – a realidade do pensar não estrutura-do em palavras ou frases – evidencia que o pensamento é um sistema externo à linguagem e dela é relativamente independente. Mas é claro que, normalmente, organizamos os nossos pensamentos através da lin-guagem. Usamos palavras para representar conceitos e combinamos essas palavras em frases complexas, fazendo com que conceitos complexos sejam manipulados na estrutura das frases. A linguagem é, portanto, um sistema que fornece ao pensamento expressões com as quais ele possa se organizar. Isso signifi ca que, na estrutura da mente humana, a linguagem funciona como uma espécie de centro de logística, o qual provê o pensamento de instrumentos para a manipulação de conceitos.

Dizendo de outra maneira, a linguagem humana é um sistema capaz de produzir representações  que atendam às necessidades de outro sistema, um sistema externo – o sistema de pensamento. Esse sistema de pensamento, também chamado CONCEITUAL-INTENCIONAL, é, portanto, uma das interfaces da linguagem.

Analisemos, agora, as relações de interface entre linguagem e sistema sensório-motor. Imagine que queiramos expressar nossos pen-samentos às outras pessoas. Com esse objetivo, apenas codifi car ideias numa representação  não será o sufi ciente, afi nal essa representação não é capaz de propagar-se sozinha de uma mente para outra entre os humanos. Será necessário, então, criar um meio de exteriorização que faça  chegar à percepção dos outros indivíduos. Esse meio de exterio-rização será a representação .  é, dessa maneira, a contraparte sono-ra do conteúdo de . Na estrutura cognitiva humana, as informações contidas em  serão acessadas pelo sistema sensório-motor. Tal sistema tem a função de converter  nos sons que conduzirão, pelo ar, as estru-turas que veiculam , numa viagem que vai do aparelho articulador do

O sistema CONCEITUAL

-INTENCIONALdiz res-peito ao pensamento humano, isto é, refe-re-se a nossas crenças, desejos, conceitos e intecionalidades, a nosso raciocínio e a nossas motivações comunicativas.

O sistema ARTICULA

-TÓRIO-PERCEPTUAL diz

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interface do módulo da linguagem. Sua função, na mente humana, é claramente exterior à linguagem: cabe a ele controlar o aparato físico humano responsável pela produção e percepção de sons.

Resumindo o que dissemos até aqui, podemos afi rmar que a linguagem é um sistema cognitivo capaz de produzir representações linguísticas codifi cadas no par (, ). Uma vez gerada pela linguagem, a representação  deve ser acessada pelo sistema articulatório-perceptual, visto que contém as informações e instruções sobre som que levarão ao correto funcionamento de nosso aparato articulador e auditivo na tarefa de codifi car e decodifi car as cadeias sonoras da linguagem. Já a repre-sentação  alimenta o sistema conceitual-intencional e, dessa forma, produz as informações sobre signifi cado que permitirão a manipulação de conceitos, referências e valores pelo nosso sistema de pensamento.

As representações da linguagem humana e seus respectivos sistemas de interface podem ser visualizados na Figura 6.3.

Figura 6.3: Linguagem, o par (,) e os sistemas de interface.

Para exemplifi car a dinâmica da fi gura anterior, recorreremos novamente à frase simples Maria ama João. Depois de produzida, essa frase possuirá a forma , que é o conjunto de instruções que a lingua-gem passa ao sistema articulatório-perceptual de tal modo que a cadeia fonética [maria ama joaum] possa ser produzida pelo nosso aparelho fonador, propagada pelo ar e percebida pelo sistema auditivo de nossos interlocutores. A frase possuirá também o conteúdo , que contém a informação lógica [há um indivíduo X, tal que X é Maria, e X ama um

indivíduo Y, tal que Y é João], a qual será acessada pelo sistema concei-tual-intencional e desencadeará o processo de interpretação semântica.

Representação lógica vs. representação discursivo-pragmática

É importante você notar que a informação lógica contida na representa-ção não é ainda responsável pelo sentido contextual da frase. Os valores discursivos que o par (, ) pode receber não são previsíveis somente a partir de suas informações fonética e lógica. Por exemplo, para sabermos se uma frase como Maria ama João (1) é apenas uma declaração acerca da relação de amor entre Maria e João, ou se (2) se trata de uma frase contrastiva à pressuposição de que Maria não ama João, ou ainda se (3) é o caso de um comentário maldoso considerando que Maria é casada com outro homem diferente de João, precisaríamos de muito mais infor-mações do que aquelas puramente linguísticas produzidas pelo módulo da linguagem. Os estudiosos da linguagem devem sempre ter em conta que o sentido fi nal de uma expressão, isto é, o seu valor pragmático-discursivo, é o resultado da interação de todos os módulos cognitivos ativados na performance linguística.

A visão da arquitetura da linguagem que acabamos de aprender é bastante simples: a linguagem é um sistema cognitivo que interage com outros no interior da mente humana, passando-lhes informações de som e de signifi cado. Essa simplicidade, entretanto, não deve mascarar a importância que tal visão representa para o empreendimento da teoria linguística contemporânea. Veremos isso na seção seguinte, quando apre-sentaremos o Princípio da Interpretação Plena, conceito fundamental da linguística gerativa, segundo o qual todo o funcionamento da linguagem deve atender às necessidades dos sistemas de interface.

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Atendem ao Objetivo 3

5. O que, no estudo cognitivo da linguagem, devemos compreender por

“interfaces”?

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6. Quais são as interfaces da linguagem no conjunto da cognição humana?

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7. Por que os linguistas devem levar em consideração a existência das interfaces no estudo da linguagem humana?

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RESPOSTAS COMENTADAS 5. Entendemos por interface os sistemas cognitivos que se relacio-nam diretamente com a linguagem humana. Você pode imaginar o termo “interface” como duas “faces” mesmo, uma olhando fi xamente para a outra. Na inteligência humana, os sistemas cognitivos que funcionam em interação, trocando constantemente informações, são considerados “sistemas de interface”.

6. As interfaces da linguagem são duas: o sistema de pensamento e o sistema sensório-motor. Você não deve se esquecer de que esses sistemas são, na verdade, um conjunto de funções cognitivas, e não apenas uma função específi ca, como pensar e pronunciar, por exemplo.

7. A linguagem humana é apenas um componente cognitivo na arquitetura da inteligência humana. Sua função é produzir repre-sentações de som e de signifi cado. São outros sistemas cognitivos que motivam a criação dessas representações e as põem em uso, para diversos propósitos. Você deve ter entendido que esses outros sistemas estão em interface direta com a linguagem humana. É por isso que, para entender melhor como é a linguagem, os linguistas devem estudar também os sistemas de interface.

ATIVIDADES