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OS SONHOS PREMONITÓRIOS DE CARLES E A SUA RELAÇÃO COM O DIVINO

No documento José Manuel Lopes Casquilho RESUMO (páginas 31-35)

4 CASOS COMPARÁVEIS EM LA CHANSON DE ROLAND

4.2 OS SONHOS PREMONITÓRIOS DE CARLES E A SUA RELAÇÃO COM O DIVINO

De acordo com Jacques le Goff, o sonho é, durante o período medieval, uma forma de alienação em relação ao mundo real e também um mecanismo de aproximação ao divino: “Sonhos premonitórios, sonhos reveladores, sonhos instigadores, são eles a própria trama, os estimuladores da vida mental [medieval]” (le Goff, 1983, vol. II: 107). Por outro lado, o sonho, e sobretudo o sonho premonitório, está associado à tradição judaico-cristã, através do texto bíblico, sinal de revelação que é dado a conhecer aos eleitos. Ao longo do Antigo e Novo Testamentos, existem inúmeras alusões ao sonho enquanto forma de providência cristã e de revelação do futuro para evitar a catástrofe. No Evangelho de Mateus (2, 1:12), o sonho surge associado à causa política, visto que os magos, enviados a Belém na qualidade de espiões, são advertidos em sonhos para regressarem a casa por outro caminho, de forma a evitarem o seu encontro com Herodes e facilitar a fuga, para o Egito, da Sagrada Família, aspeto que também é revelado por sonho a São José. Por outro lado, o sonho é também, no Texto Bíblico, uma forma de revelação de Deus, uma espécie de facilitador da interpretação da vontade divina. Ainda no Evangelho de Mateus (1, 20:25), São José é advertido, através de um sonho, do nascimento de Cristo, de forma a apaziguar os seus receios ou reações negativas a este facto.

Esta forma de utilização do sonho parece adequar-se ao que presenciamos em La Chanson de Roland, relativamente ao imperador Carles. Esta personagem é informada através do sonho da traição de Ganelon e das consequências catastróficas que este aspeto terá no desenrolar dos factos futuros. Porém, e ao contrário do que se verifica no Texto Bíblico, não se observa, por parte do imperador, uma correção atempada dos factos, de forma a evitar o problema revelado9. Uma questão importa então colocar: por que razão é revelado o futuro a Carles, se este aspeto não contribuirá para que modifique o decurso dos factos? Segundo cremos, o objetivo

9

Na laisse 67, depois de receber uma visão de um Anjo, Carles refere que a França será destruída por Ganelon: “E dit al rei: “De quei avez pesance?/ Carles respunt ai, ne puis müer n’en pleigne:/ Par Guenelun serat deserte France!”. (Roland, 67, v. 832-834)

literário dos sonhos do imperador não é a salvação de Rollant, pois, como desenvolvemos anteriormente, esta personagem deve ser sacrificada para que se concretize a purificação do espaço imperial de Carles. Os sonhos são uma forma de reafirmar a imagem transcendental que se pretende transmitir do imperador, enquanto único intermediário de Deus e da interpretação da sua vontade. Este facto permite, assim, legitimar a campanha de cruzada, desenvolvida por Carles, ao serviço da causa cristã. Por outro lado, se tivermos em consideração a interpretação de Helder Godinho (1989) acerca da associação que se estabelece entre a morte de Ganelon e o sacrifício de um urso (aspeto que desenvolveremos mais pormenorizadamente no capítulo referente a esta personagem), facilmente relacionaremos a decisão de Carles, relativamente à morte de Ganelon, a uma forma final de agradecimento e comunicação com o divino.

Com o objetivo de compreender, mais pormenorizadamente, a importância do sonho na caracterização de Carles, tenhamos em conta o seguinte: ao longo da obra, observamos uma caracterização bastante positiva à volta da personagem do imperador, a qual aponta para a sua elevação enquanto cavaleiro, líder e exemplo de cristandade, o que, em algumas passagens, nos leva a crer que Carles está no limiar do terrestre e do etéreo. Esta condição que se coaduna, aliás, com a conceção de herói clássico, associada aos seus sonhos premonitórios, aponta para a divinização da personagem pois, tal como referimos inicialmente, aproxima-a do elemento divino, ao lhe ser revelado o futuro, através do símbolo10. Da mesma forma, a associação da personagem a entidades divinas, como é o caso do Anjo Gabriel, para proteção do imperador, é também significativa da caracterização transcendental que se pretende traçar da personagem. Porém, tal como o herói clássico, Carles vive uma condição dupla, pois parece hesitar, por vezes, no seu percurso de divinização. A consolidação da personagem, enquanto herói, está alicerçada na necessidade de exorcizar os sentimentos que o ligam à sua condição humana. Ainda que o seu lado humano o atraiçoe e, por vezes, o induza à incerteza ou à angústia, tal como é referido aquando de um dos seus sonhos premonitórios (“Karles se dort cum hume traveillét”, Roland,

10 Numa perspetiva medieval, o símbolo é também revelador da condição deítica da personagem, na medida em que cada objeto remete para uma correspondência figurativa de qualquer coisa pertencente ao plano do transcendente: “O símbolo (…) é a referência a uma unidade perdida, recorda e evoca uma realidade superior e oculta” (Jacques le Goff, 1983, vol. II: 93).

185, v. 2525), o divino tem como função a reorientação, através do suporte e consolo espirituais: “Seint Gabrïel li ad Deus enveiét,/ L’empereür li cumande a guarder” (Roland, 185, v. 2525-2526). Este aspeto não só é exemplificativo da conceção medieval sobre aquele que deve ser o percurso de um verdadeiro cavaleiro, como também nos permite caracterizar esta personagem como um modelo heroico a seguir. À legitimidade da autoridade ou da antiguidade, acresce, assim, a legitimidade da personagem através do milagre, facto que está, tal como refere Jacques le Goff, intimamente ligado à figura heroica:

“Evidentemente que os principais beneficiários de tais manifestações [milagres] eram os heróis. Na gesta de Girard de Vienne, um anjo vem pôr fim ao duelo entre Rollant e Olivier. Na Chanson de Rollant, Deus fez parar o Sol; na Peregrinação de Carles, confere aos valentes a força sobre- humana que lhe permite realizar proezas de que temerariamente se tinham gabado”. (le Goff, 1983, vol. II: 92)

Os sonhos e visões de Carles possibilitam-lhe a revelação do futuro, mas também a sua orientação espiritual e política. Acima de tudo, estas revelações permitem-lhe preparar-se para as vicissitudes que se avizinham, de forma a não fracassar, nem hesitar no percurso que lhe está traçado:“Quant Carles ot la seinte voiz de l’ange,/ Nen ad poür ne de murir dutance./ Repairet loi vigur e remembrance” (Roland, 262, v. 3612-3614). Ainda que solicite o conselho dos seus pares, pois é prudente e consulta frequentemente os franceses antes de decidir, a sua principal inspiração reside na fé e na vontade de Deus. Antes de ouvir os seus homens, Carles reza e ouve missas:

“Li empereres est par matin levét, Messe e matines ad li reis escultét. Desuz un pin ene st li reis alez,

Ses baruns mandet pur sun cunseill finer:

Par cels de France voelt il del tut errer.” (Roland, 11, v. 163-166)

Numa perspetiva histórica, dir-se-ia que a associação de Carles ao divino, em La Chanson de Roland, não é senão um reflexo da repercussão lendária que as campanhas

bélicas de Carlos Magno11 desencadeiam durante o período medieval e que a Literatura acaba por tratar de uma forma lendária, transcendental, de forma a legitimá-lo. Como refere Jacques le Goff, Carlos Magno está na origem da tradição de cruzada que ocupará uma parte significativa da História medieval e os seus feitos são decisivos “na tentativa de organização Germânica” (expressão retirada do título do Capítulo II, in Le Goff, 1983, vol. I: 65), nos séculos VIII-X:

“A leste, Carlos Magno inaugurou uma tradição de conquista em que se misturaram o morticídio e a conversão – a cristianização à força, que a Idade Média iria praticar durante longo tempo”. (Le Goff, vol. I, 1983: 66) Em conclusão, podemos considerar que os sonhos premonitórios e visões de Carles se desenvolvem nesta linha de legitimação do imperador, enquanto soberano supremo, cuja tarefa de evangelização está ao serviço de uma causa maior, a causa religiosa. Nesta perspetiva se compreenderá a inércia de Carles perante os avisos da catástrofe iminente que recebe através dos sonhos ou das visões que lhe vão sendo dados a conhecer ao longo do texto. A nível da economia da narrativa, estes sonhos ou visões não têm qualquer função significativa, pois não contribuem, de forma direta, para a alteração dos factos.

11 A utilização desta grafia justifica-se na medida em que nos referimos, neste contexto, à figura histórica e não à personagem literária.

No documento José Manuel Lopes Casquilho RESUMO (páginas 31-35)

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