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RENEWARD, GUIBURC, GUISCHARD E WILLAME

No documento José Manuel Lopes Casquilho RESUMO (páginas 52-58)

5 CASOS COMPARÁVEIS EM LA CHANSON DE GUILLAUME

5.7 RENEWARD, GUIBURC, GUISCHARD E WILLAME

Segundo cremos, a análise de Reneward, Guischard e de Guiburc deverá ter em linha de conta o contexto histórico medieval das cruzadas, em que se insere a obra em análise. Como sabemos, o Cristianismo constitui-se, por quase toda a europa até aos finais do século XIII, como uma religião sólida, facto que se deve, em grande parte, ao movimento de evangelização das cruzadas, tal como refere Jacques le Goff:

“A Germânia ocidental, cristianizada mais ou menos pacificamente pelos missionários anglo-saxónicos, dos quais o mais ilustre foi S. Bonifácio, os carolíngios, a começar por Carles, cujo comportamento para com os Saxões é típico, inauguraram uma tradição de cristianização belicosa e forçada”. (Jacques le Goff, 1964, vol. I, 186)

Para o cavaleiro medieval, o combate ao paganismo, através da sua erradicação ou evangelização, constituía o principal fundamento cristão. Como referimos, a cristianização consistia num processo complexo, que não passava exclusivamente pela erradicação do Mal mas, em muitos casos, pela sua conversão. A este princípio religioso subjaz a noção de que o Mal pode ser transformado em Bem, através de um processo de doutrinação, de “contágio” de fé. Citemos, ainda, a este propósito, Jacques le Goff:

“Além desses “pagãos” especiais que são os muçulmanos e perante os quais a única atitude oficial dos cristãos era a guerra santa, havia outros pagãos que se apresentavam como muito diferentes: eram aqueles que, adorando ainda os ídolos, ainda podiam fazer-se cristãos”. (Jacques le Goff, 1964, vol. I, 186)

Neste sentido, Guiburc e Reneward, que têm uma origem pagã, representam este outro lado do processo de evangelização, que consiste na conversão através da remissão, da fé cristã, do amor (amor conjugal, num caso, e amor à família, noutro), sentimento alquímico que, como já tivemos oportunidade de referir, tem uma função importante na construção de algumas personagens (as últimas palavras de Reneward, que correspondem também ao desfecho da narrativa, relacionam-se claramente com este aspeto, pois ao saber que Willame é seu cunhado, refere que, se o soubesse em

Larchamt, tê-lo-ia ajudado de uma forma ainda mais empenhada: “Estes vus dunc mun soruge, Willame?/ Se jol seusse en Larchamp,/ Bien vus valui, mais plus vus eusse esté aidant”, Guillaume, CLXXXIX, v. 3553-3555) e no processo de socialização que, no caso de Reneward, é bastante notório. Relativamente a isto, relembremos que Guiburc se converte ao cristianismo, casando-se com Willame15 (ainda que, no verso 1422, refira- se a Deus como a principal razão da sua conversão, o que, numa lógica medieval cristã, é compreensível) e que Reneward exige ser batizado, facto que passa despercebido a Willame e que só não tem um desfecho negativo, porque Reneward descobre que é irmão de Guiburc e, a pedido desta, aceita a reconciliação com o protagonista.

Reneward e Guiburc, sua irmã, têm uma ascendência pagã, visto serem filhos de Deramed, o rei inimigo de Willame. Estas duas personagens parecem, também elas, se construírem numa perspetiva dualística, no sentido em que o Bem e o Mal, um duplo do outro, coabitam em si, ainda que seja o Bem a prevalecer, ao ponto de Guiburc, uma recém-conversa, ser, segundo refere o narrador, o expoente máximo da esposa e da mulher cristã:

“Guiburc la franche l’i tastunad suef; Il n’i out tele femme en la crestienté Pur sun seignur servir e honorer, Ne pur eshalcer sainte crestienté,

Ne pur lei maintenir e garder”. (Guillaume, CV, v. 1486-1490)

Debrucemo-nos, no entanto, de forma mais prolongada, no processo de socialização a que está sujeito Reneward. Esta personagem assume um papel fundamental no desfecho da narrativa, já que a sua ajuda será imprescindível para que Willame consiga derrotar o inimigo. Não deixa de ser curioso, no entanto, que seja atribuído a Reneward (uma personagem que foge ao paradigma do herói medieval, pela sua figura burlesca, pela sua atitude desviante em relação aos princípios cavaleirescos) um papel tão importante na resolução do problema central. O caso de

15 Este aspeto está também presente, por exemplo, em La Prise d’Orange, do ciclo Willame d’Orange, na qual Willame conquista a cidade de Orange, a fim de comprovar a beleza de Orable, a rainha pagã que dominava a cidade. Na sequência deste facto, Orable converte-se ao cristianismo sob o nome de Guiburc. Neste caso, a conversão de Orable à fé cristã é também impulsionada pelo fundamento amoroso.

Reneward não é singular, já que, tal como referimos anteriormente, existem outros aspetos ao longo da narrativa que parecem apontar para uma visão desviante, relativamente ao conceito medieval do cavaleiro e do código cavaleiresco. No entanto, Reneward extravasa aquilo que parece ser aceitável a este nível, pois comporta-se como um tolo, não adequa o seu comportamento às diversas situações a que é submetido e é cruel, visto que utiliza a sua força de uma forma desmesurada, vingando-se de todos os que o afrontam ou ridicularizam. Combate utilizando uma tina, arma que, parecendo pouco adequada, se revela, mais tarde, aos olhos de todos, um instrumento bélico imprescindível, facto assumido pelo próprio Willame.

Por que razão tem, então, Reneward uma importância tão significativa no desfecho da narrativa, sendo La Chanson de Willame uma canção de gesta, o que, à partida, deveria requerer uma “visão mais tradicionalista”16 sobre a análise dos factos?

O percurso de Reneward é construído no sentido ascensional, tanto a nível espacial, como no que respeita o reconhecimento social. Reneward sai da cozinha, espaço simbolicamente inferior, para ingressar no exército de Willame. No entanto, este processo não é imediato e só parece consolidar-se no final da narrativa, quando descobre as suas origens e se converte definitivamente ao cristianismo, através da promessa de batismo que Willame lhe faz. O processo de transformação desta personagem é relevante, no que respeita a evangelização cristã, visto que existe uma aprendizagem recíproca, entre Reneward, Willame e os “Franceses”, sendo que estes últimos são levados a reequacionar os seus princípios cavaleirescos (sublinhe-se que o método de combate de Reneward, ainda que seja considerado pouco ortodoxo, é assumido por todos como bastante eficaz), sociais (através da aceitação, por todos, de Reneward enquanto par) e religiosos (pois é Reneward quem relembra a Willame a importância de ser batizado, enquanto última etapa da sua conversão ao Cristianismo). Assim, o facto de Reneward ser o principal responsável pela vitória sobre o inimigo

16 Tendo em conta a índole cristã e o cenário de cruzada inerente às duas canções de gesta em estudo, entenda-se, neste contexto, a utilização da expressão“visão tradicionalista”, no sentido em que, regra geral, são as personagens cristãs as que desempenham o papel de herói na ação, observando-se uma valorização preponderante destas em relação às personagens pagãs. A atribuição de uma função tão importante a Reneward, como a de contribuir para a vitória dos franceses sobre o inimigo, parece ser um desvio à visão mais comum que se encontra na canção de gesta, de enaltecimento dos cristãos e da religião cristã, em detrimento dos pagãos e das crenças que professam.

poderá indicar, simbolicamente, que o “Mal” pode ser convertido, em benefício pessoal e social, num “Bem” imprescindível à subsistência da paz e da harmonia. Por outro lado, o facto desta evangelização incidir em dois filhos de Deramed não é também despiciendo. Jacques le Goff refere, a este propósito, o seguinte:

“A pregação cristã falhou quase sempre ao dirigir-se aos povos pagãos, procurando persuadir as massas. Em geral, só conseguia bom resultado quando ganhavam os chefes e os grupos sociais dominantes. (…) A nova “Cristandade” medieval – ao contrário da Cristandade primitiva (…) – foi uma Cristandade convertida de cima para baixo (…)”. (Le Goff, 1964, vol. I, 187-188)

A conversão destas duas personagens é uma forma de erradicação definitiva do paganismo, eliminando-o das gerações futuras do rei inimigo. Esta parece ser uma preocupação transversal a toda a obra: Deramed é morto por Gui(ot) para que não tenha descendência, Guiburc e Reneward são convertidos à fé cristã, concluindo-se o trabalho da cruzada de Willame: erradicar o “Mal” que não pode ser evangelizado e cristianizar os que se predispõem a tal. No culminar da batalha, o narrador refere que os franceses triunfaram e que os sarracenos foram aniquilados por completo: “Ore unt Franceis l’estur esviguré,/ K’il ne trovent sarazin ne escler” (Guillaume, CLXXXI, v. 3343- 3344).

No final da narrativa, Willame parece atingir, desta forma, o auge do seu percurso enquanto herói e cavaleiro, pois cumpre na íntegra o ideal de cristianização inerente a toda a narrativa. Nesta perspetiva, refere ainda Jacques le Goff:

“ (…) Quase todos os heróis das canções de gesta são-nos apresentados como animados de um único desejo: bater-se com o sarraceno e derrota- lo. Doravante, reina toda uma mitologia que se resume no duelo do cavaleiro cristão com o muçulmano. A luta contra o infiel passa a ser o fim último do ideal cavaleiresco”. (Le Goff, 1964, vol. I, 185)

É de notar o papel decisivo que Willame tem no processo de conversão de Reneward, já que é ele quem o retira da cozinha e o integra no exército, dando-lhe a possibilidade de contribuir para o combate ao paganismo. Neste sentido, o papel de

Willame supera o do próprio rei Lowis, que limitou Reneward sete anos17 ao espaço da cozinha, espaço simbolicamente inferior, como já referimos, sem que lhe tenha dado a possibilidade de se integrar socialmente:

“Quant par la freire vint li reis chevalchant. il me esgardeit, si me vit bel enfant,

Fist me lever suru n mul amblant, Puis me menad a Paris lealmente. (…) Si me comendat a son cu, Jaceram E jurad Deu, pere omnipotent,

Mieldre mester n’avereie a mun vivant”. (Guillaume, CLXXXIX, v. 3532-3545). Guiburc e Reneward contribuem, assim, para a afirmação de Willame enquanto verdadeiro herói cristão. É, de facto, tal como observámos anteriormente, graças a estas duas personagens que Willame concretiza o seu percurso de revalidação social e cristã. Se, inicialmente, Willame é mencionado, nomeadamente por Viviën, enquanto modelo cavaleiresco (“N’obliez mie Willame al cur niés/ Sages hom est mult en bataille chanpel,/ Il la set bem maintenir e garder”, Guillaume, V, 55-57), no final da narrativa, por intermédio de Guiburc e Reneward, Willame é, aos olhos do leitor/ puvinte, um herói com obra comprovada. Assim, o seu percurso não é, de forma alguma, solitário. O reconhecimento de Willame está alicerçado num trabalho e esforço conjuntos, já que várias personagens (que não se reduzem a estas duas, como vimos) contribuem para o seu sucesso.

Há, no entanto, ao longo do percurso de Willame, uma personagem que contraria esta tendência e que parece indicar um fracasso no seu processo de evangelização, o seu sobrinho Guischard. De todos os sobrinhos de Willame, Guischard é o único que tem um percurso contrário ao dos restantes, numa perspetiva

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O número sete tem uma importância simbólica neste contexto, pois poder-se-á relacionar com a conclusão de um ciclo de vida da personagem e a passagem ao mundo superior. O número sete está também associado às celebrações pagãs em honra de Apolo, que aconteceriam no sétimo dia de cada mês, e à tradição judaico-cristã, pois é frequentemente referenciado no texto bíblico. Estes dois aspetos associados poder-nos-ão levar a analisar a referência ao número sete como a transição do paganismo, mundo inferior da cozinha, ao cristianismo, mundo exterior.outro (transição entre o mundo inferior e o superior, entre o anonimato e o reconhecimento social)

cavaleiresca e religiosa descendente, pois decide abandonar a batalha, dadas as dificuldades que encontra, acabando por renegar Deus:

“Puis m’en irreie a Cordres u fui né, Nen crerreie meis en vostre Dampnedé, Car ço que jo ne vei ne puis aorer. Car si jo eusse Mahomet merciëz,

Já ne veïsse les plaies de mês costez”. (Guillaume, XCIV, v. 1196-1200)

Este revés surge de uma forma quase inesperada e enigmática: num primeiro momento, quando Willame chega junto de Guischard, fala-lhe como estando iminente a sua entrada no Céu (“Ami Guischard (…)/ (…) entereies já en ciel”, Guillaume, XCIV, v. 1186/ 1188), o que não permite antecipar uma reviravolta tão significativa no comportamento da personagem. Este aspeto possibilitará, todavia, uma alteração na narrativa dos factos. Guischard representa o fracasso da conversão cristã, que se revela num momento de dificuldade e de cobardia da personagem. No entanto, este aspeto reforçará também a imagem heroica de Willame, visto que coloca os deveres morais e a defesa da fé cristã acima da família, renegando e amaldiçoando Guischard pela sua atitude herética:

“Respunt Willame: “Glut, mar fuissez tu nez! Tant cum aveies creance e buntez,

Retraisistes a la sainte crestienté; Ore es ocis e de mort afolé;

N’en poez muer, tant as de lasseté,

Ja de cest champ ne serrez par mei porté”. (Guillaume, XCIV, v. 1202-1207) Todavia, Willame evidencia alguma compaixão para com Guischard, estendendo-lhe a mão, agarrando-lhe o braço direito (facto que não deixa de ser simbolicamente significativo) e içando-o sobre a sua sela. Apesar de o amaldiçoar pela sua decisão, Willame continua a pôr em prática a sua conduta cavaleiresca, não desamparando Guischard, que se encontra ferido. Não se trata, segundo cremos, de um perdão pela ofensa cometida, mas de uma atitude moral, adequada ao código cavaleiresco, à semelhança da que tem com Deramed, o rei pagão, que quer poupar por se encontrar ferido, de acordo com aqueles que seriam os preceitos do bom

cavaleiro. Porém, e de forma quase profética, Guischard é morto, de seguida, por um pagão. Mais uma vez, Willame põe em prática a sua conduta moral e recolhe o corpo de Guischard que entrega mais tarde a Guiburc, o que reforça o que temos vindo a referir.

A morte desta personagem envolve ainda alguns aspetos que julgamos que devem ser referidos, pela sua importância simbólica. Guischard é atacado por trinta pagãos, número que poderá estar simbolicamente associado às trinta moedas pelas quais Judas vendeu Jesus Cristo, já que Guischard renega Deus, na incapacidade de converter o seu martírio em positividade cristã. À semelhança de Judas, Guischard fraqueja e cede à provação que lhe é apresentada. As consequências da injúria de Guischard refletir-se-ão mesmo após a sua morte, quando, na laisse XCIX, Guiburc deixa cair o seu corpo violentamente no chão, o que faz com que a língua do cadáver lhe salte da boca. Este aspeto não parece ocasional. Por ter renegado a fé cristã, o corpo de Guischard acabará inevitavelmente por ser lançado ao chão, espaço inferior, e a sua alma não ascenderá ao Paraíso, ao contrário do que lhe estaria prometido, tal como referiu Willame, antes de este ter proferido a sua heresia. Não deixa também de ser curioso o facto de perder a língua, já que foi esta que Guischard utilizou para cometer o seu erro.

Em conclusão, poder-se-á considerar que o caso de Guischard parece ser bastante significativo tendo em conta a visão do Homem medieval relativamente àqueles que, como ele, renegavam os seus princípios cristãos, mediante as vicissitudes com que se deparavam. Guischard personifica o desvio à regra no percurso de cristandade do cavaleiro medieval e o fracasso na conversão do paganismo.

No documento José Manuel Lopes Casquilho RESUMO (páginas 52-58)

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