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ROLLANT, GANELON E OLIVIER

No documento José Manuel Lopes Casquilho RESUMO (páginas 35-40)

4 CASOS COMPARÁVEIS EM LA CHANSON DE ROLAND

4.3 ROLLANT, GANELON E OLIVIER

Da análise destas personagens não podemos dissociar o conceito medieval de identidade cavaleiresca. A partir do século XII, ser cavaleiro torna-se um estilo de vida, na defesa dos mais fracos, da honra, da justiça, da fé e da terra natal. O cavaleiro está, na sua essência, fortemente ligado ao ato heroico, ainda que alguns episódios históricos mostrem que, por vezes, outros valores se sobrepuseram aos ideais do código cavaleiresco, como a luta por terras ou por afirmação social, tal como refere Robert Lafont:

“ La chevalerie plaçant dans son ascension les vertus de risque et de dépense au-dessus de l’hoirie, de la terre et de la prudence, bouleverse la morale publique”. (Robert Lafont, 1064-1154: 8)

Não é de estranhar que esta realidade histórica se reflita na produção literária medieval e que a coragem e idoneidade do herói sejam colocadas em paralelo com o erro cometido pelo anti-herói.

Rollant e Ganelon destacam-se, desde o início, como figuras antagónicas, não na valentia e capacidade bélica, mas na dedicação que colocam à questão essencial: lealdade a França e ao imperador na luta pela erradicação do infiel. Efetivamente, a rutura de Ganelon com a lealdade ao seu imperador é suscitada por uma questão pessoal, de orgulho ferido, não é inerente à própria personagem, já que, na laisse 20, Ganelon é considerado, pelos franceses, o mais sábio de entre eles. Efetivamente, assistimos a uma espécie de inversão de papéis entre as duas personagens: Ganelon, homem “saive” (“avisé”, Roland, 20, v. 280) recusa-se a servir de mensageiro, enquanto Rollant, que tem um caráter intratável e violento, tal como refere Olivier (“Vostre curages est mult pesmes e fiers”, Roland, 18, v. 256) é o primeiro a oferecer- se para tal. Este aspeto poder-se-á compreender a vários níveis: efetivamente, é Rollant quem apresenta uma perspetiva guerreira, de cruzada, em relação ao problema, enquanto Ganelon tem uma atitude de passividade, de crença, relativamente à veracidade da intenção de Marsilie, ao apresentar a sua rendição. Ganelon desvirtua a lógica guerreira, pondo em causa o código cavaleiresco, pois, ao

contrário de Rollant, defende uma solução do problema através da palavra, como refere o narrador: “Vindrent a Charles ki France ad en baillie;/ Ne s’poet guarder quë alques ne l’engignent” (Roland, 7, 94-95). Ganelon surge como duplo de Rollant e a partir do momento em que se coloca o problema, assistimos, tanto de uma parte como de outra, a tentativas sucessivas para se eliminarem mutuamente: Rollant indica Ganelon como mensageiro, sabendo que se trata de uma tarefa que lhe poderá custar a vida; Ganelon acorda com Marsilie a traição contra o imperador Carles na condição de que este o auxilie a eliminar Rollant e propõe que seja Rollant a comandar a retaguarda do exército. Ao contrário do que se verifica entre Carles e Baligant, em que o primeiro elimina o segundo, seu duplo, numa perspetiva de purificação do espaço territorial e imperial, no caso de Rollant e Ganelon há uma dupla eliminação, numa lógica de anulação total das duas personagens. Rollant morre devido à traição de Ganelon e este é condenado à morte pois traiu para se vingar do primeiro. A morte de Rollant coloca-nos uma questão, abordada, aliás, por vários autores: por que razão Carles não impede que seja Rollant a comandar a retaguarda do exército, sabendo que este correria risco de vida?

O sacrifício de Rollant é fundamental para que Carles não se anule e para que se perpetue o seu império e domínio, tal como refere Helder Godinho:

“Il semble donc que La Chanson de Rollant est parcourue par une chaîne d’isomorphismes qui se rapporte à un contexte sacrificiel qui permet la purification de l’espace du Personnage royal, que Charlemagne assume en plenitude”. (Helder Godinho,1989: 61)

Por outro lado, a análise literária de Rollant leva-nos também a refletir sobre Olivier e a sua função na narrativa. Olivier opõe-se a Rollant, na medida em que apresenta, ao longo do seu percurso textual, uma perspetiva mais consciente sobre os factos que Rollant. Dir-se-ia que Rollant assume uma postura mais irracional, enquanto Olivier parece ter uma visão estratégica sobre os problemas que lhe vão sendo apresentados. É cauteloso e prudente. Rollant age por emoção, enquanto Olivier parece ser menos emocional e mais racional: “Rollant est proz e Oliver est sage” (Roland, 87, v. 1093). Personagens duplas, um e outro parecem completar-se pois

reúnem, no seu conjunto, as características que um bom cavaleiro deve possuir: por um lado a emoção, o coração, por outro a justiça e a prudência.

Noutra perspetiva, a postura de Olivier não deve também ser confundida com a de Ganelon, que é ardiloso e propõe a resolução do problema através de um discurso assente no interesse pessoal e no engano.

Olivier e Rollant parecem, assim, funcionar, ao longo da narrativa, como um só. As construções literárias destas duas personagens interligam-se nos momentos mais cruciais: quando, na laisse 18, Rollant se oferece como mensageiro de Carles, Olivier contraria a sua opinião, referindo que a personalidade do amigo não se adequa a esta função, mostrando-se sensato e ponderado sobre a importância e cautela necessárias ao tratamento da questão. Por outro lado, Olivier também se opõe à recusa de Rollant em tocar o olifante e pede-lhe três vezes12 que o faça, da laisse 83 à 85. Este aspeto é bastante significativo, tendo em conta a perspetiva apresentada anteriormente. Na laisse 131, Olivier refere a Rollant que a prudência vale mais do que bravura desmedida, pondo em evidência a diferença existente entre as duas personagens: “Mielz valt mesure que ne fait estultie” (Roland, 131, v. 1725). Rollant age por orgulho, salientando o seu caráter bélico.

Ainda que saibamos, de acordo com a perspetiva de Helder Godinho, que a morte de Rollant é necessária para que se cumpra a sua função sacrificial, “ce qui a permis à Charlemagne de se débarrasser de Rollant pour “purifier” le personnage royal français” (Helder Godinho, 1989: 55), o seu sacrifício e, por consequência, o de toda a armada, ter-se-ia evitado caso Rollant tivesse tido em atenção as palavras de Olivier. A este aspeto, acrescentem-se ainda as palavras de Rollant aquando da morte de Olivier, que nos parecem elucidativas da inter-relação existente entre as duas personagens:

“Sire cumpaign, tant mar fuestes hardiz!

12

A propósito da referência ao número três, salientamos o facto da numerologia referida ao longo do texto estar, de forma geral, simbolicamente associada à tradição judaico-cristã, o que reforça o caráter religioso transversal a todo o texto e, como vimos noutros momentos, associado ao percurso de legitimação do herói. De acordo com Jean Chevalier e Alain Gheerbrant: “O 3 como número, o primeiro ímpar, é o número do Céu, o 2 o número da Terra, porque o 1 é anterior à sua polarização. O 3, dizem os Chineses, é um número perfeito (tch’eng), a expressão da totalidade, da conclusão: nada lhe pode ser

acrescentado. É o acabamento da manifestação: o homem, filho do Céu e da Terra, completa a Grande

Tríade. É, aliás, para os cristãos, a perfeição da Unidade divina: Deus é Um em três Pessoas”. (Jean Chevalier e Alain Gheerbrant: 654)

Ensemble avum estét e anz e dis; Ne m’ fesis mal, ne jo ne l’ te forsfis.

Quand tu es morz, dulur est que jo vif!”. (Roland, 151, v. 29027-2030)

Olivier parece, assim, funcionar como o alter-ego de Rollant. Este aspeto poderá justificar que, numa perspetiva de anulação da personagem de Rollant, Olivier tenha também de ser eliminado. É curioso perceber que é o próprio Olivier quem, ainda que por engano, atinge Rollant violentamente. Ferido de morte, com visão desfocada, Olivier tem uma atitude que pouco se adequa à perspicácia e sensatez referidas anteriormente, aspeto que, segundo cremos, só se poderá justificar nesta perspetiva. Olivier surge como metáfora do erro cometido por Rollant, por não tocar o olifante. Olivier, que sempre funcionou como a sua consciência, atinge-o enquanto metáfora da culpa que o assola. Da mesma forma, o sacrifício de Rollant justifica-se a si próprio, na medida em que a sua morte está intrinsecamente ligada à sua culpa. Ainda que se verifique, ao longo da narrativa, uma evolução de Rollant no sentido do material para o espiritual, o que lhe confere, aquando da sua morte, a condição indubitável de herói, Rollant falha na sua função de defesa do interesse comum, em prol do seu orgulho pessoal. A morte de Rollant justifica-se, não só pelo que já referimos anteriormente, mas também porque é a única forma de reparar o seu erro, já que ao cavaleiro compete suportar os piores sofrimentos pelo seu senhor, tal como refere o próprio: “Pur sun seignur deit hom susfrir granz mals” (Roland, 88, v. 1117).

O sacrifício de Rollant, que leva à sua anulação enquanto personagem, é a causa do desvio à regra, do erro que só ele pode corrigir, pois só ele é responsável por tal, como refere Olivier: “Vostre olifan ne deignastes suner,/ Ne de Carlun mie vos nena vez;/ Il n’en set mot, n’i ad culpes li bers” (Roland, 92, v. 1171-1173). Por outro lado, é importante compreender que é também o erro de Rollant que desencadeará a consolidação do seu processo de heroicidade. A partir do momento em que Rollant erra ao não solicitar a ajuda de Carles, o seu percurso estabelecer-se-á no sentido da desmaterialização, um trajeto que aponta para o crescimento espiritual enquanto cavaleiro e herói. O primeiro sinal deste aspeto parece ser a assunção da própria culpa, quando recua na sua decisão inicial e toca, mais tarde, o olifante. Por outro lado, no momento em que combate já só, Rollant parece adquirir uma força transcendental, “Li

quens Rollant, quant il les [paien] voit venir, / tant se fait si fort, e fiers e maneviz” (Roland, 158, v. 2124-2125), ao ponto dos pagãos referirem que não está ao alcance de nenhum homem, na sua condição humana, vencer Rolland: “Li quens Rollant est de tant Grant fiertét,/ Já n’ert vencut pur nul hume carnel” (Roland, 160, v. 2152-2154). Os desmaios de Rollant, no total três, desde a laisse 148 à 164, são, segundo cremos, também simbolicamente significativos neste contexto, na medida em que apontam para um estado de inconsciência, de alienação do real, o que antecipa o desfecho do percurso de desmaterialização da personagem. Mas é após a sua morte que este aspeto atinge a sua plenitude. Deus envia os seus anjos para que levem a alma do conde para o paraíso. A recompensa de Rollant é a que estaria prometida a todos os cavaleiros que, como ele, lutassem pela afirmação da fé cristã e pela erradicação do paganismo. Acrescente-se, a este aspeto, o facto deste estado transcendental, de herói, advir da morte da personagem, o que nos permite também associá-la a uma condição quase equiparada à do santo martirizado.

De acordo com Gilbert Durand, citando Bachelard, “Le schème de l’élévation et les symboles verticalisants sont par excellence des “métaphores axiomatiques” (..) “Toute valorisation n’est-elle pas verticalisation?” (Bachelard, apud Gilbert Durand, 1984: 138). A elevação da alma de Rollant consiste na elevação do estado humano ao do herói, através da passagem da condição material à espiritual, etérea: “Il est donc naturel que ces shèmes axiomatiques de la verticalisation sensibilisent et valorisent positivement toutes les représentations de la verticalité, de l’ascension à l’élévation”. (Gilbert Durand, 1984: 140)

No documento José Manuel Lopes Casquilho RESUMO (páginas 35-40)

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