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4 LETRAMENTOS SILENCIADOS: MEMÓRIAS DE LEITURA NO

4.1.1.1 Os sujeitos/as vozes

A adesão dos colaboradores ao projeto sempre é de forma espontânea e voluntária. Não há qualquer tipo de vinculação do projeto à atribuição de notas ou vinculação ao

progresso curricular na disciplina Língua Portuguesa e Literatura que ministramos. O caráter de voluntariado diz muito acerca das identidades participantes: a permanência dos colaboradores revela muito mais um desejo de pertencimento à comunidade de leitores que uma necessidade de cunho imediatista e utilitária. Quem tem curiosidade pelo projeto e nele se integra não o faz para obter melhor rendimento acadêmico/escolar. Atuar no projeto é manifestação de desprendimento e doação: ler para os outros e fortalecer a comunidade do DLCL.

Sempre priorizamos o foco na participação ativa dos colaboradores. As decisões não são impostas verticalmente por uma voz de autoridade, porque todos têm direito à voz e a todos é dada a oportunidade de questionar, sugerir e intervir; os rumos e o destino do projeto são negociados e frutos de uma reflexão coletiva.

A liberdade de manifestação do pensamento e das ideias é, outrossim, outra marca característica do DLCL. Nos eventos, isso se manifesta, por exemplo, na livre escolha dos textos literários lidos. As sugestões advém do diálogo entre os colaboradores. Via de regra, as obras divulgadas são aquelas que fazem parte da memória afetiva literária de quem a propõe. Por essa ótica, compartilhamos leituras significativas para a trajetória de vida dos colaboradores.

Na figura 22, temos o registro dos colaboradores no ônibus, no trajeto para a escola visitada.

Figura 22: Colaboradores de saída para a Escola Djalma Marinho. Uso da camisa do projeto e uniforme tradicional

Fonte: acervo da pesquisa

O ponto de vista, a respeito das obras literárias, também segue o princípio do respeito ao universo de cultura de cada um, em deferência ao perfil identitário. As considerações feitas acerca do texto lido não são subestimadas a fim de que a voz da expertise do crítico literário seja privilegiada, por exemplo.

Lisa, uma das colaboradoras, certa vez analisou o conto A moça tecelã, de Marina Colasanti, e apresentou-nos reflexões inusitadas e criativas acerca dessa obra.

Lisa nos apresenta uma reflexão bastante inovadora: a moça tecelã estaria equivocada ao destecer os aspectos desagradáveis da vida. Nas palavras de Lisa: “na realidade não podemos destecer nossos erros como mostra o conto, podemos tentar consertá-los, mas não acabá-los”. Ou seja, Lisa não considera o desfazimento dos tecidos da moça tecelã como uma atitude de libertação, mas como uma fuga aos problemas. Essa opinião de Lisa é uma opinião identitária: muito provavelmente, em sua trajetória pessoal de vida, Lisa tenha sido orientada a jamais fugir dos problemas e conflitos, nunca destruí-los, mas conviver com eles. O destecer é a negativa do conflito, da crise, do problema. Isso Lisa não admite! Vislumbramos nessa escrita reflexiva de Lisa um posicionamento revelador de suas posturas filosófico-morais, bem como depreendemos a forma particular, específica de Lisa conceber o mundo, os sentimentos e desafios da vida.

É interessante também ressaltar que, pela ótica do projeto e pela ótica de Lisa, a literatura não é um mero artefato analítico. A relação de Lisa com o texto literário não se resume simplesmente à apreciação dos aspectos meramente textuais (formais). A aproximação dela com o texto se dá por uma processo de simbiose do texto com a vida. Ela tem ampla consciência dos atributos arquitetônicos textuais/formais (tanto isso é verdade que Lisa se deixa seduzir pelo título do texto, como ela mesma declara). Não obstante sua percepção sensível ao contexto da frase que encerra o título, isso não significa que ela está adstrita à composição/construção verbal.

Lisa não apenas compartilha a leitura literária de A moça tecelã como também reage face ao constructo composicional do texto. A consciência literária de Lisa é em nível de seu universo de cultura, de sua desempenho discursivo e de sua performance identitária. Nessa sintonia, consideramos que as reflexões, acerca do conto de Marina Colasanti, assoalham os fundamentos que caracterizam os Letramentos Múltiplos, nos quais nos esteamos: processo complexo, plural, multifacetado, situado social e historicamente e revelador dos mundos de letramentos de Lisa.

Nesse diapasão, confirmamos nosso intento de ver em nossos colaboradores a postura livre de atuação: não nos interessa que Lisa reproduza o pensamento de algum especialista literário que escreveu sobre A moça tecelã. Muito pelo contrário, interessa-nos o posicionamento identitário de Lisa, reverberador de uma voz “em suas digitais” e não na de outras digitais consagradas pelo ambiente escolar convencional.

A propósito de Lisa, algo bem peculiar: conhecemo-nos quando da primeira visita a Escola Djalma Marinho em 2013. Em 2014, ela ingressou no IFRN, campus Nova Cruz. A particularidade da participação de Lisa é que ela fazia parte da comunidade da escola visitada e hoje é colaboradora efetiva do DLCL.

São, além das já citadas, características/atributos dos colaboradores do DLCL a capacidade de atuar em grupo e a liberdade de fazer críticas ao projeto ou ao andamento das atividades. A atuação não se restringe a planejar e executar juntos, mas a construir uma trajetória colaborativa de fortalecimento em que laços de pertencimento, de afeto, amizade e amor são consolidados (EAGLETON, 2010). Preocupa-nos não só o destino do projeto, mas também o destino das pessoas que fazem parte do projeto.

Diálogo com Lisa sobre o conto A moça tecelã, de Marina Colasanti.

Teresa Paula: O que / quem fez (fizeram) você se interessar pelo conto A moça tecelã,

de Marina Colasanti?

Lisa: O título me chamou atenção ...

Teresa Paula: Como foi que você chegou até essa obra? O que lhe motivou a lê-la?

Lisa: A vice diretora da Escola Djalma Marinho mostrou-me o livro Contos

Contemporâneos Brasileiros, e entre tantos contos maravilhosos escolhi A moça tecelã,

fiquei curiosa em saber o pq do título...

Teresa Paula: O que você destacaria de importante no conto A moça tecelã?

Lisa: A lição de que devemos nos contentar com oq temos, pq mesmo ela se sentindo

sozinha deveria ter continuado só, já que na realidade não podemos destecer nossos erros como mostra o conto, podemos tentar consertá-los, mas não acabá-los.

Teresa Paula: Quais relações você enxerga entre o conto de Lygia Fagundes Telles, A moça tecelã, e a sociedade em que você vive (seu bairro, sua cidade, seu país, o

mundo)?

Lisa: Que a vida não eh perfeita, que nem sempre tdo acontece do jeito que queremos,

nem sempre concordamos com as propostas que nos são apresentadas.

Teresa Paula: Valeu a pena ler A moça tecelã? Por quê?

Lisa: Com certeza, faz com que o leitor imagine a história, como seria tecer tudo o que

pensamos, e destecer se não gostarmos, comer sem ter que ir até a cozinha, tecer o próprio homem (mas não poder tecer seus sentimentos ...) seria viver um Conto Mesmo!