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Os territórios do medo

No documento As FARC Uma guerrilha sem fins? (páginas 109-111)

Cabe partir novamente de uma constatação formulada antes: o conflito orquestrado pelas organizações armadas não remete a divisões sociais ou mesmo, salvo exceções locais, a divisões políticas que tenham preexistido na população. Os colonos das regiões paramilitares pare- cem-se com os colonos a regiões de guerrilha. É o conflito que cria a divisão. A divisão é produto de sistemas opostos de dominação. O me- do é resultado da substituição das lógicas de proteção por lógicas de intimidação.

As fronteiras dos territórios assim constituídos são invisíveis. Desde o avanço dos paramilitares, é frequente que as fronteiras circunscrevam apenas espaços reduzidos. Elas podem passar por dentro de um mesmo município entre sua sede e as zonas rurais: é o caso de Caquetá, onde militares e paramilitares dominam os povoados, as FARC continuam dominando as zonas rurais. Podem também passar entre aldeias vizi- nhas submetidas ao domínio de organizações diferentes. Aliás, nem sem- pre se trata de uma guerrilha e dos paramilitares. Pode também tra- tar-se de duas organizações guerrilheiras concorrentes. Já mencionamos a guerra que as FARC e o EPL travaram em Urabá. Atualmente entre as FARC e o ELN é travada outra guerra em Arauca e em Nariño que já fez centenas de mortos. Na costa do Pacífico deste último departamento, a situação é ainda mais intricada, pois ali convivem todas as organizações armadas, não só as FARC e o ELN, mas também os paramilitares, as re- des de narcotraficantes e o exército. Está claro que a justaposição de grupos opostos em microespaços se traduz na porosidade das fronteiras e na circulação de boatos de um lado e outro. O medo, o silêncio ou a fuga é o que se impõe à maioria dos habitantes.

As fronteiras também são móveis em quase todos os lugares. Deslo- cam-se à medida que esta ou aquela organização assume o controle do território e desaloja os que mandavam antes. Os habitantes percebem a iminência da mudança por meio de rumores e ameaças. A experiência lhes ensinou que nessa situação não podem contar com a intervenção da organização armada com a qual lidavam antes. Diante da ofensiva paramilitar, a guerrilha não hesita em retirar-se, deixando-os entregues à própria sorte. A população, portanto, sabe que deve dosar sua confiança.

Contudo, há também regiões nas quais o domínio de uma das orga- nizações parece estabilizada. É o que ocorre com Caquetá, há muito tempo nas mãos das FARC. Também é o caso de grande parte de Gua- viare e Vaupés, com o controle das FARC sobre as plantações de coca. Outras regiões são solidamente dominadas pelos paramilitares. Grande parte do departamento de Córdoba, berço dos paramilitares, está há anos em suas mãos. Certamente é o que ocorre há quinze anos com Urabá, onde, a despeito de algumas tentativas, as FARC não consegui- ram afirmar-se de novo. Tal estabilização muitas vezes é bem recebida pelos habitantes – pelo menos aqueles que não foram obrigados a refu- giar-se em outro lugar. Eles encontram uma proteção que os tranquili- za. Também nesse caso, porém, evitam confiar de modo irrefletido. No contexto do Plano Patriota, as operações militares estão chegando cada vez mais perto das zonas isoladas de Guaviare. Em Urabá, os habitan- tes se acostumaram às normas impostas pelos paramilitares. No entanto, mantêm-se a distância: os paramilitares continuam cometendo assassi- natos encomendados, e a prudência recomenda não externar sentimen- tos políticos.

A experiência mais traumática está ligada ao fato de que não faltam combatentes que ingressam em alguma organização oposta. A passagem das fileiras dos paramilitares para as das guerrilhas é excepcional, e isso só pode ocorrer com raros infiltrados. Em contrapartida, a passagem das fileiras da guerrilha para as dos paramilitares é cada vez mais fre- quente. Não voltaremos ao exemplo dos numerosos ex-membros do EPL que em Urabá passaram-se aos paramilitares e contribuíram para seu controle da região. Numerosos guerrilheiros do ELN seguiram o mesmo caminho. Em Córdoba, uma comandante do ELN, exasperada com os abusos da guerrilha, passou com sua tropa para o lado paramilitar, afir- mando que, mesmo assim, conservava suas aspirações de justiça social. A ocupação de Barrancabermeja teria sido facilitada pela virada de um comandante do ELN, que teria entregado os nomes dos simpatizantes da guerrilha. Até os últimos tempos os casos de virada de guerrilheiros das FARC eram muito menos frequentes. Os casos de Bernardo Gutiér- rez, comandante das FARC que, no fim dos anos 1980, passou para o EPL com armas e bagagem, é excepcional, e as FARC o perseguiram sem trégua em sua vindita. Atualmente, quando as deserções se multiplicam

em suas fileiras, é provável que essas viradas sejam mais numerosas. Pa- rece realmente que as FARC executaram numerosos guerrilheiros acu- sados de traição ou infiltração.

As mudanças de lado aumentam ainda mais a resistência da popu- lação em confiar em alistamentos nos grupos armados. Os trânsfu- gas passam adiante as informações que têm sobre a população em cujo meio agiam e continuam eventualmente a agir. Qualificados como sa-

pos, denunciam os que supostamente colaboram com a guerrilha. Ora,

nenhum dos habitantes pode ter certeza sobre a maneira como será catalogado. O que é considerado “colaboração” pode ir da simpatia mi- litante ao simples fato de ter mantido relações de vizinhança, vendido mantimentos, assistido a reuniões. Muitas chacinas dos paramilitares começam com a reunião dos habitantes da localidade, diante dos quais o sapo mascarado passa, designando com um sinal os suspeitos que de- vem ser executados. Por sua vez, as FARC muitas vezes empregam os mi- licianos jovens para espionar os habitantes e não são realmente mais es- crupulosas na definição dos suspeitos. Desse modo, executaram moças culpadas de ligação com soldados. Nas zonas em disputa, portanto, a incerteza não diz respeito apenas às fronteiras, mas também à qualifica- ção que pode ser atribuída a cada um pelo simples fato de ter vivido sob o domínio de outra organização.

Os sapos não são recrutados apenas entre os trânsfugas. A denúncia pode ser um modo de resolver litígios pessoais entre os habitantes. Nos últimos tempos, o recurso sistemático do exército aos informantes e as recompensas prometidas acentuaram o clima de delação e medo.

O silêncio em que a população se mantém nas zonas de conflito não lembra a exaltação de uma guerra civil. É, sobretudo, sinal de uma socie- dade com medo.

No documento As FARC Uma guerrilha sem fins? (páginas 109-111)