• Nenhum resultado encontrado

Projeto político das FARC: a “plataforma de dez pontos” Por volta de 1990-1993, ressaltamos que a relação entre partido e

No documento As FARC Uma guerrilha sem fins? (páginas 115-118)

guerrilha se inverteu. A primazia dada à estratégia militar não signifi- cava, porém, abandono do projeto político. Mas eram as FARC que di- tavam sua concepção.

Desde a fundação, como nunca deixaram de lembrar, seu objetivo é tomar o poder ou, pelo menos, instaurar um governo que promova mudanças sociais e políticas estruturais e assim ponha fim à domina- ção da oligarquia.

Referem-se frequentemente, como ato de batismo político, ao pro- grama agrário que elaboraram em julho de 1964: depois de enunciar reivindicações que agora parecem muito reformistas, ele termina evo- cando a necessidade de criar uma ampla frente única de “todas as forças democráticas, progressistas e revolucionárias para travar um combate permanente até derrubar o regime oligárquico a serviço do imperialis- mo ianque”. Depois, esse programa ampliou-se e radicalizou-se.

Em 1993, quando se reorganizaram para as grandes operações mili- tares, adotaram uma nova versão com dez pontos, chamada de Plata- forma para um Governo de Reconstrução e Reconciliação Nacional. Os

2 Cf. Gilberto Vieira e Marta Harnecker, Combinación de todas las formas de lucha, Bogotá,

Ediciones Suramericana, 1988: Entrevista con la Nueva Izquierda, Bernardo Jaramillo y Nel-

son Berrío, Colombia a la conquista de las grandes ciudades, Mexico, Centro de Documenta-

dez pontos referem-se a aspectos institucionais como a transformação das Forças Armadas, que adotarão uma “doutrina bolivariana de defesa nacional”, a instauração de mecanismos de controle popular ou de refor- mas da justiça (em especial com a eleição dos magistrados); aspectos econômicos e sociais, como a nacionalização dos setores estratégicos da economia e a destinação de 50% do orçamento aos gastos sociais (e 10% à pesquisa científica) etc. Essa plataforma traduz bem a pretensão das FARC a afirmar-se como um governo virtual. Durante os anos seguintes, particularmente na época do processo de paz de Pastrana, ela serviu de constante referência para seus posicionamentos. Achavam-na de grande atualidade, principalmente por lhes parecer que o fracasso daquele pro- cesso fora causado, segundo declaração que publicaram em 2 de feverei- ro de 2002, pela “existência de um regime antidemocrático e violento sobre a qual se edificou o sistema econômico que privilegia uma minoria”.

A suspensão das conversações e a eleição de Álvaro Uribe não puse- ram fim às suas esperanças de uma rápida crise do regime que aumen- tasse as possibilidades de pôr em prática suas propostas. Num comuni- cado de 23 de dezembro de 2002, elas anunciavam a formação de um governo clandestino “integrado por doze colombianos representantes de todas as regiões do país e todos os setores que se identifiquem com a Plataforma de dez pontos para uma nova Colômbia”. Depois do relativo fracasso do polivalente referendo proposto por Uribe em 25 de outubro de 2003 e do relativo sucesso da oposição nas eleições regionais realiza- das no dia seguinte, as FARC voltaram a lembrar sua “disposição para constituir um novo governo”. Não viam na política de “segurança de- mocrática” mais que uma nova versão do fascismo demonstrado pelo “raivoso e violento método de governar [...] [que] sempre violou os di- reitos humanos com qualquer desculpa, como Hitler ou Pinochet” (co- municado de 26 de janeiro de 2005).

A prática política das FARC não se resumiu, porém, a proclamações e denúncias.

Elas também tentaram organizar novas redes políticas. A constitui- ção de um “movimento bolivariano” fora considerada já em 1993. Co- mo se viu, foi oficialmente lançado em 2000, como uma formação polí- tica clandestina cuja direção foi confiada a Alfonso Cano. Sua ambição era reunir simpatizantes que, pelo número, pudessem confirmar a legi- timidade política das FARC no momento oportuno. Pouco depois, as

FARC fundaram um novo Partido Comunista, o PCCC ou PC3 (Partido Comunista Clandestino da Colômbia), ainda mais secreto. Sua missão era, acima de tudo, a infiltração nas administrações ou nas empresas. Por definição, é difícil dimensionar a penetração dessas redes clandesti- nas. Contudo, parece que o movimento bolivariano e o PCCC não tive- ram muito sucesso, mas as FARC podem ter a esperança de que eles ga- nhem novo alento com o recente aparecimento de núcleos bolivarianos partidários de Chávez.

Em todo caso, o surgimento dessas redes demonstra a distância em relação ao Partido Comunista oficial. Este, porém, se abstém de aventu- rar-se em críticas frontais contra a guerrilha, com a qual grande parte, se não a maioria, de seus militantes conserva certa afinidade. Mas as FARC não escondem seu desprezo por muitos dos dirigentes, a começar por seu atual secretário-geral, o antropólogo Jaime Caicedo. Desconfiam ainda mais da maioria das correntes de esquerda que desde 2003 se uni- ram ao Partido Comunista no Polo Democrático Alternativo. Nume- rosos políticos eleitos desse partido não escondem sua rejeição à luta armada, entre os quais “Lucho” Garzón, prefeito de Bogotá de 2003 a 2007 (o segundo posto mais prestigioso depois do de presidente), ex-sin- dicalista e durante muito tempo membro do Partido Comunista, e o se- nador Gustavo Petro, economista, ex-membro do M19.

As FARC não se mostram menos desconfiadas em relação às orga- nizações da sociedade civil. Essas organizações com orientações políti- cas muito diversas – algumas podem manter uma solidariedade mais ou menos tácita para com as FARC ou o ELN – têm pelo menos em comum a militância a favor de uma solução política negociada e ganharam gran- de visibilidade em cada um dos processos de paz. Embora denunciem com grande coragem as violações dos direitos humanos por parte do Estado e dos paramilitares, a ponto de se tornarem alvos preferenciais de seus crimes, mostram-se frequentemente mais tímidas na denúncia das violações perpetradas pelas guerrilhas, preocupadas em deixar abertas as portas do diálogo com elas. Durante muito tempo hesitaram mesmo em denunciar os sequestros.3 Apesar de tudo, as FARC estão longe de

3 Precisaram de muitos meses de conciliábulos em 1993 para condenarem o massacre de La

Chinita pelas FARC. No relatório que elaboraram, essa condenação só vem depois de longas considerações alambicadas sobre a responsabilidade do Estado na miséria da região.

reconhecer a importância dessa sociedade civil, provavelmente por temer que venham a tornar-se na ossatura de uma política de não violência.

Raúl Reyes gostava de afirmar que as FARC constituem a verdadeira sociedade civil porque são “a sociedade civil em armas”.

Em suma, as FARC se comportam no plano político como se com- portam no da luta armada: assim como nunca deixaram de afirmar sua superioridade militar sobre as outras guerrilhas, pretendem constante- mente garantir sua hegemonia sobre todos os componentes da oposição política.

Na realidade, para pôr em ação seu programa político, as FARC es- peram sobretudo “a insurreição das massas” e/ou a crise definitiva do regime. Já em 1985, Jacobo Arenas considerava que ambas eram imi- nentes. O extermínio da União Patriótica, a seu ver, só podia desembo- car numa sublevação geral. Depois disso, quase não houve mobilização social que não tivesse ensejado alguma previsão semelhante. Cada greve mais prolongada, cada marcha camponesa, voluntária ou não, cada pro- testo contra as pulverizações aéreas eram apresentadas como prelúdio da revolta final. Mais recentemente, as FARC não duvidavam que o ad- vento de um regime “fascista” com Uribe rapidamente confeririam força irresistível à resistência de todos os “democratas”, portanto à possibili- dade de transformações profundas.

O erro desses cálculos decorre, acima de tudo, do erro da fórmula da “combinação de todas as formas de luta”. O que está cada vez mais claro é a incompatibilidade dessas formas de luta. Desde 2002, a esquer- da progride na Colômbia como no resto do subcontinente, mas é uma esquerda cada vez mais afastada da luta armada. Como resultado, as FARC se isolam e patinam, quando querem deslanchar no campo polí- tico, e não só no militar.

No documento As FARC Uma guerrilha sem fins? (páginas 115-118)