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Política do ressentimento

No documento As FARC Uma guerrilha sem fins? (páginas 124-127)

No entanto, há outra coisa que subjaz nas profundezas da visão po- lítica das FARC, e isso desde o início: o ressentimento contra o mundo das elites sociais.

Devemos voltar mais uma vez àquilo que chamei de “ethos campe- sino” das FARC. Esse ethos não é apenas a manifestação da proveniência social da maioria dos combatentes. É acima de tudo carreado por uma sensibilidade e uma memória marcadas pela humilhação. Ambas aflo- ram incessantemente nos dirigentes históricos da organização, princi- palmente em Manuel Marulanda.

Naquele 7 de janeiro de 1999, quando deixou vaga a cadeira que lhe estava reservada, incumbiu um dos comandantes, Joaquín Gómez, de ler o discurso que havia preparado diante de uma plateia que in- cluía o Presidente Andrés Pastrana, embaixadores e outros membros do governo. O discurso lembrava as razões da luta travada pelas FARC havia 33 anos. O episódio de Marquetalia foi mais uma vez apresenta- do como ponto de partida. No entanto, Marulanda não o evocou ape- nas como um momento de resistência “heroica” dos camponeses. De- longou-se no bombardeio que destruiu suas galinhas e seus porcos (las gallinas y los marranos). O auditório e os comentadores percebe- ram essa referên cia como a marca da mentalidade camponesa que con- tinuaria a ani mar a guerrilha.

Ela é, na realidade, uma manifestação daquilo que os colombianos designam com a expressão “malícia indígena”, uma maneira de enganar o outro, passando-lhe uma imagem que corresponde a seus preconcei- tos para levá-lo a baixar a guarda. Contudo, exprime principalmente uma dimensão central da sensibilidade política das FARC.

Foi dito que La Violencia tinha sido uma experiência de humilha- ção, porque só depois os camponeses descobriram que tinham matado uns aos outros por uma causa que não era deles, que para as elites aque- le fora o meio de fortalecer sua dominação sobre as classes populares.

O ressentimento resultante volta-se principalmente para o adversá- rio de sempre, a “oligarquia” contra a qual Gaitán se insurgira. De resto, as FARC continuam usando com frequência esse termo que engloba tanto as elites políticas quanto as elites econômicas. Raúl Reyes gostava de dizer que os reféns políticos, de cuja sorte a opinião pública interna-

cional se apieda são, na qualidade de membros dessa oligarquia, prisio- neiros de guerra como os outros.

Entretanto, o ressentimento também visa todos aqueles que, num momento ou noutro, pretenderam abraçar a causa do povo para rever- tê-la melhor em seu próprio proveito. É o caso do Partido Liberal, que desde 1930 só fala de reformas para obter o voto popular. Manuel Ma- rulanda, cabe lembrar, começou sua carreira nas fileiras de uma guer- rilha liberal. Grande número dos que se aproximaram de Marulanda durante as fases de negociação depois relataram que as ideias desse guerrilheiro continuam sendo as de um liberal mais ou menos progres- sista. O erro não poderia ser maior. Marulanda nunca perdoou aquele partido por ter abandonado cabalmente os camponeses durante La Vio-

lencia nem pelo oportunismo que demonstrou logo depois. Muitas ve-

zes ele afirmou que preferia negociar com presidentes oriundos do Par- tido Conservador, e isso não é fortuito.

O ressentimento de Marulanda e de seus companheiros também se volta, todavia, contra todos os que, num momento ou noutro, bran- diram a retórica revolucionária e consideraram com comiseração uma guerrilha que lhes parecia limitar suas ambições à satisfação das rei- vindicações agrárias, em vez de atacar o poder de frente. A lista é longa. Ideólogos urbanos e estudantes esquerdistas que, não tendo conheci- do a humilhação, falavam em nome dela para colocá-la a serviço de sua demagogia. Guerrilhas como o M19, prontas a dar lições às FARC, mes- mo significando a desmobilização e a integração imediata no sistema. E até mesmo uma guerrilha como o ELN, dada ao moralismo, mas, afinal, desprovida de capacidade militar. Em muitos aspectos, permane- cem até hoje os vestígios das polêmicas que atravessaram a esquerda revolucionária nos anos 1960, quando o Partido Comunista e as FARC eram acusados de “revisionismo”.

Ressentimento e humilhação estão sempre juntos. Ambos estão li- gados ao trauma de La Violencia, trauma que não teve vazão e, por isso, está sempre prestes a despertar: a lembrança das galinhas e dos porcos mortos em 1964 é sinal dele.

O tempo longo das FARC terá relação com o tempo lento dos cam- poneses? É o que se afirmou com frequência, até que se tornasse lu- gar-comum. Com isso se esquece, porém, que os camponeses tradicio- nais já não existem há muito tempo, que muito menos existe o tempo

lento a eles atribuído. O tempo dos colonos é um tempo rápido e des- contínuo. Na verdade, sem fim é a duração do ressentimento. Verdade também é que o trauma de La Violencia nunca pôde inscrever-se numa narrativa histórica que lhe desse algum sentido. Assim, para muitos co- lombianos, os que sofreram esse traumatismo, e os que o imaginam, impôs-se uma memória ao mesmo tempo real e mítica que substitui a história e faz da repetição a característica da trama dos acontecimentos.

Não há por que duvidar que em 7 de janeiro de 1999, Manuel Ma- rulanda, então com 71 anos, saboreava seu triunfo. Todos os poderosos e os outros olhavam para a cadeira vaga. Naquele dia, o ressentimento parecia ter direito à história, e a humilhação, ao reconhecimento oficial.

O imobilismo que se seguiu mostrou que a sensibilidade política não basta para fazer uma estratégia política. O ethos campesino conti- nua insuficiente para desenhar perspectivas numa sociedade principal- mente urbana e singularmente complexa.

Nove anos se passaram desde então. Muitos dos líderes históricos das FARC morreram de velhice. Em janeiro de 2008, Marulanda tinha setenta e nove anos. Nada se sabia de seu estado de saúde, e desde 2006 ele nem sequer aparecia para responder às mensagens que lhe eram di- rigidas por Hugo Chávez e Nicolas Sarkozy. Sabe-se, porém, pelo exem- plo de outros líderes revolucionários lendários, que nada muda enquan- to eles estão vivos. Muitos desses líderes estão convencidos de que o imobilismo é garantia de perenidade da obra que realizaram, e que a ausência de debates internos é prova da solidez de seu poder. O mes- mo podia estar acontecendo com Marulanda. As dificuldades das FARC para ele talvez não passassem de peripécias: seus adversários anuncia- ram várias vezes sua morte e a derrocada da guerrilha. No entanto, a luta armada prosseguiu e recrudesceu. Seis anos de política de Uribe deviam parecer pouco aos olhos do fundador das FARC, diante dos mais de cinquenta anos de luta guerrilheira.

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No documento As FARC Uma guerrilha sem fins? (páginas 124-127)