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Reconquista paramilitar

No documento As FARC Uma guerrilha sem fins? (páginas 97-100)

O fenômeno paramilitar não data da década de 1990. Manifestou-se já no início da década de 1980. Já vimos qual foi seu papel nos assassi- natos e na “guerra suja” que culminou no extermínio da União Patrió- tica, mas ele apresenta muitas outras modalidades. Uma legislação que remonta de fato à década de 1960 autorizava a criação de grupos de autodefesa, termo utilizado dessa vez para designar a resistência con- tra a guerrilha. A constituição de uma organização de autodefesa em Puerto Boyacá para pôr fim ao domínio local das FARC foi saudada na época pelo presidente Belisario Betancur. A lei foi oficialmente aboli- da em 1989, depois que veio à tona a constituição de aproximadamen- te 200 grupos desse tipo no país e após as revelações sobre a colaboração entre militares, narcotraficantes e altas personalidades locais na organi- zação de Puerto Boyacá, colaboração que foi completada pelo recurso a mercenários ingleses e israelenses. Isso não impediu a proliferação das modalidades de autodefesa. Estas vão desde milícias particulares nos la- tifúndios e sistemas de proteção contra sequestros até a constituição de grupos mais ofensivos.

O fenômeno, porém, assumiu dimensão bem diferente a partir de 1991 e, sobretudo, de 1994. Os grupos paramilitares decidiram recupe- rar a região de Urabá a ferro e fogo. Suas ações foram facilitadas por nu merosas adesões de ex-membros do EPL, desmobilizados em 1991, mas enfrentando uma perseguição impiedosa das FARC, que queriam ocupar seu terreno. Fortalecidas pelos primeiros sucessos, as organiza- ções paramilitares se consolidaram. Com o nome de ACCU (Autode- fensas Campesinas de Córdoba y Urabá), em 1994 constituíram uma pri meira estrutura comum. Em 1997, adotaram a sigla definitiva AUC (Autodefensas Unidas de Colombia), com a qual manifestam seu intuito de desenvolver um projeto de contrainsurgência de envergadura nacio- nal. Seus líderes visíveis foram, sucessivamente, os irmãos Fidel e Carlos Castaño, cujo pai foi assassinado pelas FARC, ambos conhecidos tam- bém pela implicação no narcotráfico. Os grupos paramilitares também se multiplicaram quando o governo de Samper autorizou a criação de novas associações de autodefesa com o nome de Convivir, associações que na maioria das vezes serviam de fachada para os paramilitares e

proliferaram sobretudo no departamento de Antioquia sob o impulso de Álvaro Uribe, então governador daquele departamento.

Urabá foi apenas a primeira fase da reconquista territorial dos para- militares. Depois veio o vale do Médio Magdalena: a capacidade militar do ELN, que dividia seu controle com as FARC, foi definitivamente re- duzida. No fim de 1999, a ocupação de Barrancabermeja, que com a principal refinaria de petróleo da Colômbia foi marcada por uma longa história de sindicalismo radical, constituiu um acontecimento de gran- de repercussão. Essa cidade importante foi cercada pelos paramilitares, que nos meses seguintes mataram mais de quinhentas pessoas. Depois, foi a vez de outras regiões. Penetraram até em certos baluartes das FARC em Meta, Arauca e no sul amazônico, disputando com elas as zonas de plantio de coca no departamento de Santander do Norte, Putumayo, Caquetá e Nariño. Nas cidades, eliminaram a maior parte das milícias bolivarianas e em lugar delas instalaram bandos que lhes eram submis- sos. É o que ocorreu, como vimos, nas periferias de Medellín.

Num movimento inverso ao das FARC que, partindo do sul do país, tinham progressivamente estendido sua influência em direção ao norte, o avanço paramilitar foi do norte do país, onde estão os departamentos caracterizados pelos latifúndios dedicados à pecuária e as empresas ba- naneiras, para o sul. Como foi possível tal avanço paramilitar em detri- mento da guerrilha?

A unidade dos grupos que os constituem na realidade é das mais precárias, e a autoridade de Carlos Castaño, sempre incerta. Aliás, ele acabou sendo afastado do comando militar antes de ser morto por or- dem de um de seus irmãos. Ademais, os líderes das redes de narcotráfico aumentavam claramente seu poder sobre as organizações paramilitares. Numerosas figuras regionais, políticas ou econômicas, sem dúvida tam- bém estão implicadas em nome da luta contra a guerrilha. Mas Carlos Castaño admitia desde o início que as AUC eram 70% financiadas pe- lo narcotráfico. A partir de 2002, os grandes narcotraficantes passaram a orientá-las ou a, pura e simplesmente, assumir sua direção.

Do ponto de vista estritamente militar, esses grupos nunca foram real- mente capazes de rivalizar com as FARC. Aliás, raras foram as ocasiões em que as enfrentaram diretamente. Mas têm várias vantagens sobre elas.

A primeira decorre precisamente de sua falta de verdadeira unifica- ção. A fragmentação e a diversidade tornou-os mais adaptáveis às con- dições locais e capazes de concorrer com a guerrilha e, depois, rechaçá-la.

A segunda está no fato de que eles conseguiram criar nacionalmente a imagem de movimento político antissubversivo. Carlos Castaño con- tribuiu imensamente para isso. Em duas longas entrevistas generosa- mente concedidas a cadeias de televisão e, depois, em conversas reunidas num best-seller, ele apresentou as AUC como simples resposta às condi- ções insuportáveis que as FARC impõem em todos os lugares, em razão das carências do Estado. Com uma habilidade que a guerrilha nun ca demonstrou, ele reconheceu a responsabilidade das AUC em numero- sos crimes, mas os atribuiu a erros de seus subordinados. Antes mes- mo da eleição de Álvaro Uribe para a presidência, os paramilitares ex- traíram dividendos da preocupação de amplos setores da população (e não só dos proprietários e de outros membros das classes mais privi- legiadas) com os avanços das FARC e seus abusos. Quando Pastrana pretendeu criar em 2001 uma segunda zona desmilitarizada no Médio Magdalena para negociar com o ELN, os paramilitares conseguiram de- sencadear um movimento de repúdio que extrapolava as correntes mais direitistas. A desilusão provocada pelo malogro do processo de paz fez o resto. É verdade que as simpatias que granjeiam frequentemente per- manecem discretas ou até envergonhadas, e eles esbarram na oposição firme das organizações da sociedade civil e dos setores políticos demo- cráticos entre os quais se arrolam as vítimas das AUC. Mas o fato é que conseguiram provocar uma polarização sub-reptícia da opinião públi- ca, a tal ponto que quem os denuncia muitas vezes sofre a sus peita de cumplicidade com a guerrilha. O governo Uribe tiraria proveito dessa polarização.

A terceira vantagem é que puderam contar com a complacência de numerosas unidades militares e policiais, felicíssimas por disporem da força extra que faria o “trabalho sujo” em seu lugar. Mas seus apoios não se limitam às forças armadas. Através de associações como as Convi- vir, eles conseguiram situar-se numa fronteira indefinida entre legali- dade e ilegalidade e assim tecer laços cada vez mais estreitos com a classe política de certas regiões e, em breve, a classe política nacional. A exten- são da paramilitarização da política é propriamente desconcertante. Em 2002, a afirmação de Carlos Castaño, de que um terço dos membros do Congresso Nacional tinha sido eleito com o apoio paramilitar, parecia um blefe. Foi preciso esperar os inquéritos da Corte Suprema de Justiça e de algumas equipes de investigadores para descobrir-se que ele estava

aquém da verdade. Em abril de 2008, 29 parlamentares ou ex-parlamen- tares estavam presos e outros cinquenta estavam indiciados. E, por trás do paramilitarismo, o que se insinua é a sombra do narcotráfico.

A última razão do sucesso de sua reconquista territorial reside no fato de que os grupos paramilitares não se limitaram ao “trabalho sujo” de forças suplementares. Eles erigiram o terror e os massacres contra a população civil como principal método de guerra, o que lhes possibili- tou estender tão depressa sua influência. É um dos temas do próximo capítulo.

O recuo territorial das FARC, portanto, não pode ser atribuído ape- nas à eficácia das Forças Armadas. Pelo menos até 2003, os paramilitares tiveram papel essencial nisso.

No documento As FARC Uma guerrilha sem fins? (páginas 97-100)