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2.1 A AMPLITUDE DO VAZIO

2.1.3 Público x privado

Pensar a cidade a partir do lote foi a tradição modernista que influenciou o modelo de urbanismo implantado no Brasil entre os séculos XX e XXI. Segundo Ganz e Silva (2009), o planejamento urbano brasileiro obedece essencialmente à lógica da propriedade privada em detrimento do sentimento de coletividade. Mesmo que esse modelo seja mantido a base do “loteamento sem edificação”, onde o parcelamento é desvinculado da construção imediata.

Pode-se afirmar que o vazio urbano encontrado no país é decorrente de um modelo de gestão urbana que seguiu a lógica americana a partir de campanhas higienistas (Borde,

2006). Embora nos Estados Unidos a prática preservacionista10 tenha arrefecido o movimento gerador dos vazios urbanos projetuais, no Brasil o modelo é aplicado até os dias atuais nos maiores centros urbanos.

No entanto, existem situações que alteram o processo de formação do espaço urbano. Quando passam da transitoriedade ao estado de elementos estruturadores a partir da sua reativação, aceleram as transformações urbanas colocando-as em movimento e que essa tensão. “Entre inércia e movimento faz dos vazios urbanos atraentes objetos de estudo”. (ibid.) “O lote vago em uma cidade é a potência para o esquecimento, para a vagabundagem, para a não vigilância, para os atos não planejados ou pequenos delitos, para o descontrole e para a leveza. Potências positivas e não pejorativas” (Ganz e Silva, 2009).

Entende-se que os vazios urbanos e os espaços residuais urbanos são um produto do modelo de produção da cidade formal, já que para a cidade informal todos os espaços preconizam ocupação, a não ser, os poucos que se destinam ao constructo coletivo. À exemplo das áreas de lazer coletivas, como os campos de futebol. Estas podem ser entendidas como espaços livres, mesmo que raramente possam ser classificadas como “espaços verdes”.

Porém diante das necessidades pautadas por aspectos sociais como terra-moradia, a realidade presente desses espaços dotados de ausência de conteúdo social, especialmente quando o feito com intencionalidade gera uma série de reflexões críticas incômodas. A participação do Estado é destacada, na formação e manutenção dos vazios urbanos, pois além de, por vezes ser o proprietário desses vazios, deveria de fato, atuar na função reguladora e interventora sobre o território da cidade.

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Movimento que teve como líder, a autora americana Jane Jacobs (Ver Morte e Vida das grandes cidades).

A regulação da produção e uso do espaço urbano pode minimizar ou manter privilégios, incluindo ou não parte significativa da sociedade por meio da legislação urbanística. O papel do Estado também é rememorado quanto ao poder de investimentos em obras públicas, tendo como resultante a elevação dos valores imobiliários, o que restringe o acesso ao mercado imobiliário.

Ademais, de maneira ainda mais direta, o Estado possibilita a formação de vazios ao promover grandes intervenções urbanas. Para Vaz e Silveira (2015), os vazios urbanos históricos foram somados aos vazios contemporâneos, fruto de mega intervenções que se mantiveram inacabadas e refletem as práticas do modelo de gestão urbano brasileiro. Contudo, o Estado também tem poder para coibir a formação e mitigar os vazios existentes produzindo políticas ativas.

As autoras resgatam de Busquets (1996) o termo destinado para o preenchimento dos vazios intersticiais; o “infill” como estratégia de reciclagem e reabilitação dos espaços intersticiais com terrain vagues. (ibid.) através do incentivo às atividades comerciais, de serviços residenciais, culturais e de entretenimento. Vaz e Silveira (ibid.) deliberam que quando essas ações são realizadas de maneira coordenada, relacionadas muitas vezes aos projetos de preservação das áreas, geram processos de gentrificação. Nesse

Figura 13 - Foto publicada originalmente em Pise a Grama nº 3. Fonte: Joachim Schmid. 2010. Figura 14 - Foto publicada originalmente em Folha de São Paulo em 03 de Janeiro de 2016. Acessado em: www.folha.uol.com.br, 07 de Janeiro de 2018.

sentido, o Estado é novamente responsabilizado pela ausência de políticas públicas reguladoras.

Além disso, foi possível acompanhar os desdobramentos recentes das intervenções urbanas implementadas ao longo das últimas duas décadas em todo território nacional. À exemplo de cidades como Rio de Janeiro, Salvador, Recife e São Luís. Ações estas, pautadas em projetos com intervenções físicas e de “controle urbano”, envolvendo ingredientes como city marketing e parcerias público-privadas.

Dentro desse contexto, foi possível assinalar as transformações no período, apontando para duas tendências: Desenvolvimento, melhoramento e revitalização de áreas específicas e outra para a sua estagnação, deterioração e seu esvaziamento. Em perspectiva, Vaz e Silveira (ibid.) tecem críticas ao “afrouxamento” na participação do Estado nas transformações morfológicas e sócias espaciais sofridas nos últimos vinte anos.

Uma série de análises críticas vem surgindo diante das novas tendências e inúmeras intervenções em diversas cidades, apontando excessos, traduzidos por termos como: homogeneização, estetização, pratimonialização, gentrificação e, principalmente, a espetacularização suscitada pelos novos espaços.

(Vaz, 2003)

Diversos autores defendem a ocupação temporária para os espaços urbanos residuais que estão sob a propriedade privada. Pois, ainda que esses usos não alterem a sua relação de posse legal, todo o contexto urbano gerador de vitalidade é beneficiado. Intervir nos locais privados com a intencionalidade de entregá-los ao uso público no Brasil requer doses de criatividade, pois diferentemente das intervenções apoiadas pelo Estado como regulador do espaço urbano, a escassez de recursos financeiros pode ser um entrave para ações pautadas no interesse coletivo.

Em contrapartida, espaços privados apropriados coletivamente podem gerar, além de todas as benesses, retorno financeiro à comunidade. Dentro da atual lógica urbana, a cidade produtora dos lotes vagos, pode dar uso temporário para “criar vacas leiteiras, estender roupas, colocar piscinas, para realizar festas, casamentos e piqueniques, para se transformar em sala de estar, para plantar hortas e flores” (Ganz, 2008).

Uma vez que, na prática, o direito à propriedade privada se sobressai à sua função social11, Clichevsky (2000) delibera que os vazios urbanos são resultado do funcionamento do mercado de terras, das formas de atuação dos agentes privados e das políticas dos agentes públicos. O resultado dessa situação significa um alto número de imóveis ou territórios inseridos na malha urbana, dotada de infraestrutura, que se encontra ociosa.

De acordo com Clemente (2012), “a atual política pública urbana brasileira considera os vazios urbanos a serem combatidos e utilizados, principalmente os que se encontram em zonas consolidadas e centrais da cidade”. A proposta do governo federal através do MinC se destina a promoção de habitação social nessas áreas consideradas privilegiadas quanto ao abastecimento de infraestrutura. Porém a autora (ibid.) alerta para uma suposta falha no argumento para esse tipo de ocupação, alegando que não há “estoque” de vazios suficientes para atender toda a demanda populacional de baixa renda, as estruturas existentes não aceitam densificação e paradoxalmente, as áreas são submetidas “a intensos processos especulativos”.

De toda maneira, para lidar com todos os aspectos que envolvem os vazios urbanos em território nacional, é tecida uma teia complexa quanto aos papéis desenvolvidos pelo setor público e setor privado. Diferentemente da gestão urbana em países europeus, por exemplo, onde o Estado regulador, delibera sobre todos os aspectos do território urbano, no Brasil, existe uma ineficácia estrutural quanto aos modelos de gestão

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De acordo com a Constituição Federal, a propriedade atenderá a sua função social (artigo 5º, XXIII), o que se dá com o aproveitamento racional e a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei

urbana desenvolvidos. O efeito prático desse modelo de gestão permite a permanência da subutilização imobiliária e fundiária, bem como a manutenção dos vazios urbanos representados pelos espaços urbanos residuais, sobretudo nas regiões centrais.