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6. DISCUSSÃO

6.3 Padrão de consumo ;

Uma questão interessante que nos chamou atenção ao nos debruçarmos sobre os dados analisados foi o “padrão de consumo” típico desse grupo. Obviamente, padrão refletido não a partir de classificações científicas, mas pensado a partir das respostas dos próprios consumidores. Identificamos certo tipo de discurso muito comum entre os entrevistados de não localizarem o próprio consumo como sendo um consumo experimental, já que possuem regularidade semanal para o mesmo. Contudo, não o classificaram como consumo abusivo, cujas características denotam certas práticas não apontadas ou repelidas pelo grupo. Tais práticas abusivas são referidas como um tipo de consumo que deve ser evitado ou que não é de referência para grupo. E a partir desse elemento facilmente encontrado no discurso dos participantes, consideremos os consumidores abusivos o exogrupo para o grupo de consumidores regulares de maconha entrevistados nessa dissertação.

Se não é experimental, nem abusivo, seria então um tipo de consumo que se localiza entre uma concepção e outra, identificado como um meio termo entre esses dois padrões. Na verdade, o grupo pouco comenta sobre práticas experimentais em sua vivência de consumo. Assumimos que não há identificação e prática desse consumo, já que o grupo consome periodicamente maconha, o que não condiz com um consumo experimental e aperiódico, e até mesmo ocasional. Em contrapartida, o consumo abusivo é amplamente comentado como uma referencia contrária ao seu próprio, como o tipo de consumo cuja

prática deve levar à preocupação, pois seria “patológico”, típico de “dependentes químicos”, ou seja, negativamente valorado.

O consumo de maconha praticado por esse grupo, ou seja, o padrão de consumo, foi sempre referido como aquele que não é feito invariável e arbitrariamente em qualquer situação. Na verdade, o elemento que distingue principalmente esse padrão de consumo, típico de consumidores regulares, é a consideração de uma série de circunstâncias que seriam apropriadas para o consumo, não sendo, deste modo, generalizado, sem regras e normas. Tais circunstâncias seriam, por exemplo, as atividades sociais que serão desempenhadas após o consumo, limites ou controles sociais que não permitem o consumo ininterrupto, situações em que o consumo acontecerá, entre outros elementos considerados que procuraremos discutir nessa parte do texto. Supõe-se que esses elementos influenciem fortemente a decisão de fumar e funcionem como “modeladores” desse padrão. Em função ainda destes elementos o consumo pode não acontecer quando as condições não são consideradas “apropriadas”.

Não é incomum o consumidor identificar seu consumo como “hábito”, e não “vício”. O primeiro pressupõe certa autonomia e controle sobre a vontade de fumar, podendo não ocorrer em função das condições apresentadas. Já no segundo, essa autonomia e controle são sobrepostos pela necessidade de realizar o consumo, situação em que as condições para que este aconteça nem sempre são levadas em conta, caracterizando um padrão de consumidores abusivos, segundo a interpretação dos entrevistados.

Clóvis Bernado, por exemplo, admitiu certo grau de dependência, mas tal dependência não é entendida como aquela em que deixaria de se alimentar, de pagar as próprias contas, ou mesmo abandonaria tudo para conseguir a maconha. Entendemos ser uma tentativa de justificar a própria prática de consumo, argumentando que o padrão abusivo típico de “viciados” não é pessoalmente vivenciado por eles. Esse padrão abusivo, por sua vez, não considera riscos, condições e conseqüências associadas para aquisição da erva. Alguns ainda identificaram essa dependência como psicológica e não química. Nesse ponto nos remetemos ao processo de comparação social de que nos fala Tajfel (1983), que torna possível não só a valorização positiva do endogrupo, (consumidores estáveis de maconha), como a negativa do exogrupo (consumidores abusivos de maconha e outras drogas) (TAJFEL, 1983).

Procuraremos ilustrar esse ponto com uma série de relatos que simbolizam tal identificação de consumo, assim como buscaremos mostrar as condições consideradas para que o consumo não aconteça ininterruptamente. Bastiãozinho e João Bosco, por exemplo, afirmaram que quando acordam, eventualmente têm vontade de fumar, mas que não necessariamente o fazem, já que as atividades que ocorrem ao longo do dia devem ser consideradas. E mesmo não fumando, na ausência da maconha, não deixam de realizar as suas obrigações e responsabilidades sociais. A ausência eventual também deve ser considerada já que, como já exploramos, os “períodos de seca” são freqüentes, fazendo o consumidor adaptar-se a essas condições ou criar estratégias para evitar a falta de maconha.

O que parece preocupar os consumidores entrevistados é a perda do controle do próprio consumo, o que eventualmente para alguns de fato acontece, sendo relatados prejuízos na sociabilidade. Mas ao que parece tal condição é contornável e os consumidores entendem que o excesso de maconha elimina o prazer proporcionado – que é a motivação maior. Nesse sentido, procuram poupar-se de perder a satisfação gerada pelo consumo não ignorando completamente essas regras e condições, caso contrário o consumo seria excessivo e o prazer perdido. Não podemos deixar de ressaltar que tal noção funciona, em alguma medida, como certo controle.

Como relata Magrinho, a condição típica de um consumo não abusivo, nem experimental é a seguinte: trata-se de ter um momento específico para fumar maconha, e não fumar em possibilidades inesperadas, ao acaso. Para Magrinho, ao fumar maconha é preciso ter um tempo posterior específico para deixar suavizar a “onda que bate”. É preciso uns dez minutos, ter tempo suficiente para conversar um pouco após o consumo, descontrair, não ser dominado pela “onda”. Afirma ainda que não há prazer no consumo que é realizado e seguido de saída com pressa, sem dar tempo de sedimentar com calma a experiência de ter fumado. Ainda sobre esse relato, Magrinho diz escolher as situações em que quer fumar e descarta momentos que considera inoportunos para o consumo, negando os convites fugazes e furtivos para fumar a erva.

Outra condição considerada importante para delimitar esse padrão típico de consumo é a que diz respeito aos procedimentos realizados para se enrolar um cigarro de maconha. É importante considerar a quantidade de papel para enrolar, o papel apropriado, evitando- se o “papel de pão” ou guardanapo, a separação de sementes e gravetos da maconha, a qualidade da maconha, entre outros procedimentos habituais ao se fazer um “baseado”. Se tais condições não estiverem apropriadas, para Leo, por exemplo, não há o consumo, sendo deixado para depois. É importante esclarecer que essas condições consideradas podem ser “respeitadas” em maior ou menor grau, ou mesmo algumas sim e outras não, mas sempre identificamos a presença das mesmas.

Duas nuances adicionais observadas nos relatos nos permitem dar mais precisão à noção de um padrão de consumo que não é ocasional ou abusivo. A primeira delas é a forma como os consumidores entrevistados enxergam o consumo de outras drogas, que não a maconha. A segunda, mais explorada, é como pensam o que seria um comportamento típico de dependência química. Esta é vista como a necessidade de ter a droga para consumir, sem a possibilidade de sua falta, mas também pode ser entendida como a necessidade da droga para realizar todas as atividades, na ausência da qual a atividade não é ou é parcialmente realizada. Nos relatos dos nossos sujeitos foi possível verificar que não deixariam de realizar as suas obrigações diárias caso acordassem com vontade fumar e não fumassem (por não terem maconha, por exemplo). Tomam esse como um exemplo que os distinguiria do grupo de consumidores abusivos. Outro exemplo utilizado para reforçar a noção de controle sobre o próprio consumo foi dado por um dos entrevistados: ele afirmou ser mais fácil ficar sem a maconha do que sem o álcool, evidenciando uma influencia superior do segundo em sua sociabilidade quando comparado com o primeiro e relativizando a necessidade da maconha. Aqui também nos fica evidente os comportamentos de valorização positiva do endogrupo em detrimento do exogrupo em que “frequentemente as pessoas tinham a tendência de estereotipar mais os membros dos grupos de não pertença do que os membros dos grupos aos quais elas pertencem” ( DESCHAMPS & MOLINER, 2009, p.67).

A definição de dependência química empreendida pelos consumidores não é reconhecida pelos próprios como o tipo de consumo que praticam. Esse fato, por sua vez, mostra-nos que os consumidores não enxergam tal grau de dependência na sua relação com a erva.

Não nos custa repetir que alguns se consideram dependentes, mas nenhum afirma este grau. Novamente, mais um elemento identificado no discurso dos entrevistados corrobora essa noção de “consumidor regular de maconha” como sendo aquele que se identifica com uma experiência de consumo não abusiva.

Também foi observada uma comparação comum aos sujeitos entre o consumo habitual de maconha e o que seria o mesmo consumo de outras “drogas”. Bastiãozinho, Clóvis, Leo, Peter Tosh e Wanderley exploraram essa comparação, sempre ressaltando que se mantivessem o mesmo consumo que fazem de maconha com a cocaína, ou mesmo com o crack, facilmente desenvolveriam dependência química. Eles lembram a real possibilidade de overdose com outras “drogas”, o que não é admitido ou mesmo notado no consumo de maconha. Mais uma vez verifica-se a referência assumida pelos entrevistados, para que através de outra forma de consumo possam definir a sua própria. Ou seja, há uma definição do padrão de consumo pessoal determinado não pela prática exercida, mas pela prática e experiência de consumo não vivenciada, que seria a de consumo abusivo.

O que parece ser o “pano de fundo” dessa discussão é que os consumidores entrevistados entendem administrar essas pressões e controles sociais de um modo não impeditivo para o consumo. De fato, não foi incomum nos relatos dos entrevistados a seguinte reflexão: as pessoas que não fumam maconha ou mesmo aquelas que fumavam e deixaram de fumar, assim o fizeram em função de certos controles sociais e valores considerados superiores ao prazer ou à vontade de fumar. Aqui podemos citar alguns desses valores e controles sociais que, para os entrevistados, podem ser determinantes para a decisão de não consumir maconha: pressão da comunidade mais próxima, estereótipo de “maconheiro”, valores familiares, falta de prazer, não identificação com a “onda” proporcionada, gostar de outras drogas, conseguir sentir satisfação de outro modo, influência das políticas anti-drogas, mitos associados à maconha, trabalho e carreira, romance, não gostar perder “autonomia” sobre a consciência, “demonização” gerada sobre a droga e o consumidor, valores religiosos, enjoar da erva, envelhecer, e influência ruim sobre a vida social de forma geral.

Fica claro a partir do relato dos consumidores entrevistados que todos eles lidam ou lidaram em alguma medida com a “pressão” que os elementos citados acima exercem, mas que a forma de “administrá-la” permite que mantenham seu consumo. É importtante entender que não se trata de nos perguntarmos se tais elementos são de fato mecanismos de controle eficientes. Como possibilidade, cabe-nos investigar como os consumidores lidam com esses controles. Com isso, não estamos postulando ou sugerindo a renúncia a todas e quaisquer medidas de controle. O que se pode fazer é, a partir da investigação desses controles dos consumidores de maconha,

(...) levar em conta os controles já existentes e seus campos de aplicação, assim como outros recursos, de vários tipos, que poderiam ser mobilizados para seu aperfeiçoamento. Assim como preconizam os adeptos das políticas de redução de danos relacionados ao uso de “drogas”, pode-se atentar para as estratégias já empregadas pelos consumidores e tentar limitar os efeitos indesejáveis através de uma múltipla abordagem, reservando um papel importante para a mobilização das suas próprias redes de sociabilidade, tal como em vários países vem fazendo em relação a droga lícitas como o álcool e tabaco ( MACRAE, 2003, p. 7).

Os controles próprios do grupo por nós identificados serão discutidos adiante

detalhadamente no tópico dessa discussão reservado a eles.

A ideia de um padrão de consumo típico desse grupo poderá ser reforçada ainda quando discutirmos as atividades associadas ao consumo e as não associadas. Veremos que há uma série de limites que não são ignorados pelos consumidores, principalmente nas atividades desempenhadas após o consumo. Além disso, iremos discorrer sobre a não percepção de muitos consumidores de um ritual e rotina fixos para o consumo, o que acontece muito em função dessas limitações e controles, não sendo possível adequar os horários das atividades diárias ao consumo, ocorrendo o inverso, o que por sua vez, estabelece uma rotina ou ritual muito variado.

Por fim, foi possível observar nos relatos uma preocupação por parte dos entrevistados de ressaltar que o consumo praticado por eles não se aproxima de práticas consideradas como abusivas. Parece haver, desse modo, a presença de limites, a consideração a respeito de obrigações sociais e de atividades que serão realizadas após consumo, dos momentos específicos para consumir maconha, etc. Consideramos importante destacar o

consumo regular ou habitual de maconha do consumo abusivo, já que tal distinção é pouco evidenciada.