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1.1.2 “El paraíso era un autobús” (Millás s/d) (ANEXOS – doc 2)

Nesta história, encontramos dois desconhecidos que partilham o autocarro ao longo de toda a vida e mantêm uma espécie de relação secreta, sem nunca terem trocado uma palavra. O amor aumenta com a idade, mas nunca chegam a aproximar-se verdadeiramente. No momento da reforma, perceberam que se perderam e definham rapidamente. Depois de mortos são enterrados lado a lado e ficam finalmente juntos, para a eternidade. Trata-se de uma ação linear, simples, sem desvios desnecessários, em que duas personagens anónimas, numa qualquer cidade do nosso mundo contemporâneo, esquecem por momentos a selva da vida: enquanto dura a viagem dentro do autocarro, existem apenas ele e ela, num momento eterno e contemplativo, que não necessita de qualquer contacto físico.

Vemos, desde já que, em termos espácio-temporais, se repete a situação da sintagmática anterior, ou seja, o tempo é indefinido. Passa-se nos dias de hoje e nota-se a referência à passagem do tempo, pois desenrola-se ao longo da vida de ambas as personagens, num largo lapso temporal. Mas em momento algum conseguimos situá-los num momento concreto. Quanto ao espaço, podemos afirmar que está algures numa cidade grande o suficiente para os protagonistas partilharem o autocarro por vários minutos, numa indeterminação típica do relato contista, para melhor identificação do leitor, que, assim, pode de certa forma identificar-se com a personagem e refletir sobre a sua própria vida. Notamos a distinção entre o espaço físico, dentro do autocarro; o espaço social, ligado à vida agitada e anónima da cidade; e o espaço psicológico, no caso concreto do homem, que imagina que o autocarro é a casa de ambos, onde podem ser felizes sem entraves.

Se nos centrarmos nas próprias personagens, notamos mais uma vez as pinceladas largas com que são caracterizadas, de modo a manter um certo anonimato, um mistério necessário ao pacto entre leitor e narrador. Sabe-se que ele trabalhava numa loja de ferragens (ferretería) e ela numa retrosaria (mercería). Só se viam de manhã, pois da parte da tarde os horários não deviam coincidir. É igualmente conhecido que nunca se falaram, mas mantiveram uma espécie de relação secreta que não precisava de palavras. Sentavam-se no autocarro de forma a poderem ver-se, mas nunca houve qualquer tentativa de aproximação. Pressupõe-se, pois, que são ambos pessoas comprometidas, com uma vida organizada, possivelmente com família. Ao mesmo tempo, são muito tímidos, reservados e não sabem como dar o primeiro passo, assumindo uma total apatia para com a sua própria felicidade. A nível psicológico, todas as facetas dos protagonistas são apresentadas indiretamente, pela falta de ação que evidenciam ambos. A nível físico, o narrador deixa escapar algumas características, nomeadamente, o facto de ele ser mais moreno, de ela ter uma pele delicada

ou ter passado por uma doença grave, enquanto ele se descuidou claramente no aspeto físico durante a ausência da amada. Outra característica que se lhes pode atribuir é a enorme paixão platónica que os une, de tal modo que, na altura de reformar-se, ele entre em negação, numa desesperada tentativa de manter a rotina para estar perto dela. Já ela adoece pela ausência do autocarro. E o certo é que morreram ambos poucos anos depois. Coincidência ou não, foram enterrados lado a lado, juntos para a eternidade.

Estamos perante personagens planas, sem grande densidade psicológica, devido à apatia e falta de coragem que evidenciam do início ao fim da história. Nota-se alguma evolução pela forma como ele reage à doença dela, pela paixão que aumenta com a idade, bem como pela necessidade que ela tem de vestir-se melhor com o passar dos anos. A forma como definham quando são obrigados a separar-se também nos poderia iludir no sentido de pensar que são modeladas, mas, numa abordagem mais atenta, notamos que são planas até ao fim, porque evoluem devido aos acontecimentos e não por vontade própria.

O sincretismo actancial (Soares 2013: 19-21) é mais que evidente, na medida em que só existem duas personagens, ambas protagonistas, sem necessidade de outros no seu mundo perfeito. Assumem, por isso, várias funções, evidentes no esquema abaixo:

Destinador: Ele e ela Objeto: Felicidade silenciosa Destinatário: Ele e ela Adjuvante: Ele e ela Sujeito: Ele e ela Oponente: A vida que passa, os patrões que os reformam

Depois das considerações que fomos tecendo, podemos afirmar que o narrador desta narração assume uma posição heterodiegética, omnisciente e objetiva (Reis 2002: 259-267). Conhece todos os pormenores da história, é o único que partilha o segredo daquele amor com os protagonistas, vai ao fundo dos seus pensamentos, incluindo os mais íntimos. Além de que nos transmite as coisas como as vê, sem mostrar mais ou menos simpatia pelos acontecimentos. Mas é interventivo, tão omnisciente que acaba por imiscuir-se na ação, na mente das personagens, lamentando indiretamente a falta de iniciativa das mesmas.

Podemos dizer que o conto cumpre o esquema canónico, com uma certa confirmação entre o estado inicial e o estado final, numa circularidade conseguida pelo prémio obtido pelos “amantes” depois de mortos. De facto, à primeira vista, não temos equilíbrio final, na

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medida em que perdem uma vida inteira de felicidade por medo de agir e morrem separados. Contudo, são enterrados lado a lado e o narrador deixa no ar a feliz coincidência, apontando que terão a eternidade para mudar de atitude. Assim, a circularidade está confirmada, conseguem na morte o que não tiveram em vida, como duas retas paralelas que se cruzam no infinito. Ora vejamos: à prova qualificadora corresponde à relação platónica que mantêm dentro do autocarro; à decisiva a altura da reforma e à glorificadora a morte e enterro lado a lado, para toda a eternidade. E estes termos têm completa correspondência com a dinâmica da ação apresentada por Macário Lopes (Lopes apud Soares 2013: 14). Na situação inicial, vemos que as personagens vivem felizes com esta relação secreta. Este longo estado inicial, ocupa quase toda a narrativa. Depois, a perturbação é o momento de reforma, que vem por em causa a perfeição que tinham supostamente alcançado. Na transformação, vemo-los definhando longe um do outro. E a resolução apresenta-nos a morte de ambos, três anos depois da reforma e o enterro em nichos contíguos. No estado final, recuperam o paraíso perdido, agora para toda a eternidade.

Depois desta breve análise, podemos concluir que se trata de um texto literário com muitas potencialidades para uso em sala de aula, tanto a nível temático (meios de transporte, caracterização física e psicológica, profissões, entre outros) como no que respeita a aspetos culturais, na medida em que permitiria refletir, por um lado, sobre as dificuldades comunicativas da sociedade atual e, por outro, sobre a necessidade de lutar para concretizar os nossos sonhos, realizando um caminho totalmente oposto a estes protagonistas. Este é um dos contos escolhidos para a aplicação prática, exatamente devido à questão dos planos e sonhos para o futuro, relacionada com a temática das profissões, parte integrante do programa de 9º ano, nível B1, como veremos mais à frente.