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2.2 USOS MÚLTIPLOS DA ÁGUA

2.2.1 Para além da bacia hidrográfica

A Lei 9.433/1997 delimitou a bacia hidrográfica como unidade territorial para ação e

implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos. De acordo com a hidrologia, a bacia

hidrográfica é uma área que “[...] envolve explicitamente o conjunto de terras drenadas por um

corpo d’água principal e seus afluentes e representa a unidade mais apropriada para o estudo

qualitativo e quantitativo do recurso água e dos fluxos de sedimentos e nutrientes”. (PIRES;

SANTOS; DEL PRETTE, 2002, p. 17) Dessa forma, a bacia hidrográfica é considerada,

segundo a Agência Nacional de Águas (2015, p. 20), uma unidade territorial ideal para a gestão

dos recursos hídricos, além de permitir o seu planejamento.

A decisão pela bacia hidrográfica como unidade territorial ideal de planejamento, no

entanto, irá privilegiar o caráter quantitativo que torna possível mensurar informações

importantes, tais como: a quantidade de água da chuva que cai na área da bacia, a quantidade

que evapora, a quantidade que irá escoar para um ponto comum de saída, entre outros.

Trata-se, portanto, de uma escolha que considera estritamente os aspectos hidrológicos, cujo uso

poderá ser planejado.

Contudo, este estudo não privilegia a bacia hidrográfica como referência espacial

porque reconhecemos que outras unidades territoriais estão presentes nas questões que

envolvem as águas e muitas delas se impondo à própria bacia hidrográfica, como a escala do

bairro e até mesmo a da região metropolitana.

Apreender a problemática das águas numa perspectiva multiescalar, mais ampla, torna

possível reconhecer o alcance do fenômeno metropolitano que, no caso da RMS, pode ser

percebido para além dos limites físicos da região, sem, contudo, respeitar a escala de nenhuma

bacia hidrográfica, por caracterizar-se por um tipo de ação pontual no que se refere à captação

da água já reservada na Barragem de Pedra do Cavalo.

Como é possível verificar, as ações empreendidas pela EMBASA para regular as perdas

de água da barragem de Joanes II, na bacia do Rio Joanes, drenam as águas da barragem de

Santa Helena, na bacia do Rio Jacuípe, comprometendo o abastecimento do próprio município,

mas garantindo o abastecimento dos demais municípios considerados não fornecedores de água.

Ou quando verificamos que o maior consumidor de água do sistema Paraguaçu, que é a RMS,

se exime da responsabilidade de cuidar dos mananciais que abastece, embora seja responsável

por garantir 60% do seu abastecimento de água. Sobre isso, a posição da EMBASA é a de

delegar ao Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (INEMA) a responsabilidade por

garantir a “[...] preservação e recuperação dos recursos hídricos e das áreas de proteção

ambiental do estado”. Neste sentido considerará que

A principal função da Embasa, para contribuir com a qualidade ambiental dos

mananciais, como o rio Paraguaçu, é implantar, ampliar, operar e dar manutenção

nos sistemas de esgotamento sanitário nos municípios situados na área de

influência do rio, proporcionando a coleta, tratamento e destinação adequada dos

esgotos domésticos, ressaltou a assessoria. (RIO que abastece..., 2014, p. A6)

Trata-se, contudo, de uma função que notadamente tem falhado, uma vez que um dos

principais impactos ambientais registrados pelo INEMA

50

(2017) diz respeito ao lançamento

de esgotos no lago da própria barragem.

As discussões sobre a ponderação no uso do conceito de bacia hidrográfica

encontram-se preencontram-sente na literatura através de alguns autores que reconhecem a importância dessa unidade,

embora não encerrem nela todas as possibilidades de gestão das águas, especialmente por

reconhecerem a presença de interações de sujeitos e agentes dentro e fora dessa unidade, os

fluxos econômicos e as dinâmicas populacionais, por exemplo, que podem extrapolar os limites

físicos de uma bacia e/ou provocar impactos sem que essa unidade seja, necessariamente, a de

maior relevância no processo de gestão. (PIRES et al., 2002; PIRES DO RIO, 2009)

Pires e colaboradores (2002, p. 17) discutem a importância do conceito de bacia

hidrográfica e apresentam uma série de possibilidades de estudos que privilegiam a bacia como

unidade de análise e gerenciamento ambiental, além de demonstrarem que, em alguns casos, o

seu conceito é considerado “[...] análogo ao de Ecossistema, como uma unidade prática, seja para

estudo como para o gerenciamento ambiental”. Embora esses autores apresentem as várias

possibilidades contidas nos estudos que privilegiam o uso do conceito de bacia hidrográfica, como

já mencionado, buscam relativizar a sua importância, alertando-nos que

Apesar das reconhecidas vantagens do uso da BH como unidade de análise e

gerenciamento da paisagem para o estudo de processos ecológicos ou manejo

de alguns dos seus componentes, deve ser ressaltado que muitas vezes essa

unidade não é apropriada para estudos da dinâmica trófica, envolvendo o

deslocamento animal na paisagem, como os grandes vertebrados herbívoros

ou carnívoros terrestres. Nesses casos, tem sido recomendado o uso da

paisagem regional que inclui mais de uma unidade de estudo (BH) ou regiões

biogeográficas. Da mesma forma, muitas análises socioeconômicas devem

considerar as inúmeras bases de dados que extrapolam a BH, tais como

distritos, os municípios, as redes de cidades, os fluxos econômicos e as

dinâmicas populacionais. (PIRES et al., 2002, p. 19-20, destaque dos autores).

50 INEMA, informação disponível no site do próprio órgão em: <http://www.inema.ba.gov.br/gestao-2/unidades-de-conservacao/apa/apa-lago-de-pedra-do-cavalo/>.

E esclarecem, ainda mais, ao afirmarem que

[...] Gerir uma BH não significa submeter ou restringir a análise apenas às

determinações da realidade interna à dinâmica da mesma. Há uma

multiplicidade de relações internas e externas à BH que deve ser computada

na análise, sem que isso implique em contradições com o recorte adotado para

a gestão. Deste equívoco provêm amplas discussões e demandas que tentam

reduzir todo tipo de base de dados e análise exclusivamente à BH. (PIRES et

al., 2002, p. 19-20, destaque dos autores)

Nessa perspectiva de crítica sobre a adoção da bacia hidrográfica como unidade ideal

para o planejamento, cujas dinâmicas, como mencionado, extrapolam as análises

ecossistêmicas e hidrológicas, facilmente percebidas quando observados os limites naturais que

delimitam uma bacia hidrográfica, Gisela A. Pires do Rio nos explica a razão de considerar que

a gestão dos recursos hídricos por bacias hidrográficas deveria ser refutada, ao menos no Brasil.

(PIRES DO RIO, 2009). O argumento central da autora considera que

El proceso actual de gestión de recursos hídricos en Brasil encuentra dificultades

en su implementación en lo que respecta a las relaciones entre instituciones,

organizaciones y territorio. La gestión de aguas presupone, a nuestro entender,

considerar que la estructura espacial y los padrones espaciales resultantes de las

interacciones entre organizaciones y territorio no pueden ser circunscritas a un

único plan espacial. (PIRES DO RIO, 2009, p. 27)

A hipótese levantada pela autora para embasar esse argumento central considera que

[...] 10 años después de la implantación del sistema de gestión de recursos, la

cuenca hidrográfica es confrontada por otros territorios que se constituyen

siguiendo lógicas distintas que, además ha favorecido muy poco la deseada

descentralización [...] (PIRES DO RIO, 2009, p. 27)

A autora se refere à Lei 9.433/1997, que instituiu a Política Nacional de Recursos

Hídricos, e considera ser a bacia hidrográfica a unidade de planejamento ideal, assinalando que

“[…] el caso de los recursos hídricos registra inclusive una otra particularidad: es el único sector

cuya base espacial, la cuenca hidrográfica, fue institucionalizada para su gestión” (PIRES DO

RIO, 2009, p. 27). Para a autora existem riscos ao instrumentalizar a bacia hidrográfica como

unidade territorial pois

[...] la instrumentalización constituye un modo de privilegiar agentes

económicos en un espacio específicamente regulado, podemos preguntarnos

sí esos espacios, regulados e institucionalizados, no están tornándose en un

mecanismo mediante el cual se refuerza el control que ciertos grupos tienen

sobre el acceso al agua. (PIRES DO RIO, 2009, p. 27)

Em síntese, a autora considera que os agentes econômicos que requerem o uso

abundante de água em seu processo produtivo, como o setor de energia hidroelétrica, por

exemplo, podem ter suas ações refletidas para além dos limites naturais de uma bacia

hidrográfica ou sequer considerá-la em seu processo produtivo. De acordo com a autora,

Podríamos suponer que varias unidades espaciales serían apropiadas para la

gestión de los recursos hídricos: non sólo las unidades político-administrativas

de la federación, sino también aquellas que se configuran como unidades de

organización y manifestación de poder o que emergen de la lógica de las

actividades productivas, como las regiones, las redes y mallas, por ejemplo; las

cuales organizan acciones colectivas, sistemas de cooperación y negociación,

revelan conflictos y tensiones y no están limitadas por un espacio definido por

la ley. (PIRES DO RIO, 2006, 2009, p. 31)

A noção de rede é adotada pela autora como noção principal, pois se

[…] refiere a realidades distintas y no siempre pueden ser interpretadas en un

único sentido [...] considera la red como elemento substantivo de la

organización y de la gestión del territorio de la cual la gestión de los recursos

hídricos hace parte. (PIRES DO RIO, 2009, p. 31)

Consideramos que, de acordo com a perspectiva da autora, essa noção é capaz de

auxiliar na apreensão da diversidade das dinâmicas contidas em diferentes realidades, nas quais

a água figura como objeto de interesses e disputas entre agentes econômicos e não econômicos,

como também de interações e tensões entre diferentes modos vida, que se expressam em outras

escalas de planejamento, não consideradas pela Lei 9.433/1997, nem sempre aceitas nos limites

de uma determinada bacia hidrográfica, uma vez que suas ações se espraiam para além deles.

A autora aprofundará sua compreensão sobre a noção de rede, considerando-a

[...] como estructuras que direccionan flujos; son consideradas como redes

técnicas las ferrovías, la autopistas, las conexiones de electricidad y el

abastecimiento de agua, por ejemplo. Las redes, en su definición más

circunscrita, constituyen un conjunto de lugares geográficos conectados en un

sistema por un cierto número de vínculos. (KANSKY, 1963 apud PIRES DO

RIO, 2009, p. 31, grifo nosso)

Por fim, concluirá que “[...] la red puede ser un médio de apropiación de território.”

(PIRES DO RIO, 2009, p. 31) Apoiando-nos nesse entendimento, reconhecemos que as

dinâmicas e questões que envolvem as águas na Região Metropolitana de Salvador, desde sua

formação na década de 1970, extrapolam os limites físicos das diversas bacias hidrográficas

inseridas nessa região e conduzem a dinâmica metropolitana para além dos seus próprios limites,

estendendo-se aos espaços não metropolitanos para captação de água. Tal situação foi observada

pelo então superintendente operacional da Empresa Baiana de Águas e Saneamento S.A. e

professor, Rogério Costa Cedraz, em entrevista ao jornal A Tarde, em 2007, da seguinte forma:

Outra “irracionalidade”, na opinião do professor, é o fato de Salvador ter seu

abastecimento de água provido pelos mananciais da região semiárida. A

barragem de Pedra do Cavalo, que abastece 40 cidades do Recôncavo e da

Região Metropolitana de Salvador (RMS), é formada com os recursos hídricos

da bacia hidrográfica do Rio Paraguaçu, que nasce na Chapada Diamantina e

cruza parte do semiárido [...]. (ANDRADE, 2007, p. 8-9)

De acordo com informações do INEMA, a bacia hidrográfica do Rio Paraguaçu tem

67% de sua área com influência do clima semiárido, correspondendo a 10% do território do

Estado da Bahia, com chuvas anuais inferiores a 700 mm e integrando 86 municípios.

Essa condição da metrópole em captar água da Bacia do Paraguaçu, fora dos seus limites

físicos, segundo o professor e hidrogeólogo Olivar Lima de Lima, deve-se ao fato que

O governo do estado da Bahia deu prioridade ao abastecimento das indústrias,

o que revela o total alinhamento com o caráter desenvolvimentista presente

desde o Código das Águas e, por isso, arca com os custos de trazer água para

abastecer Salvador da Barragem de Pedra do Cavalo, em Feira de Santana, a

100 km de distância. (LIMA, 2005, p. 7- 9)

O que é tratado como sendo irracionalidade, na verdade reflete o cumprimento de uma

diretriz do planejamento governamental de base desenvolvimentista, que optou pelo

desenvolvimento urbano e industrial, a qualquer custo.

A irracionalidade é ainda maior quando se constata a existência do potencial hídrico

superficial e subterrâneo presente nos municípios inseridos na própria RMS, o qual justificou a

construção de várias barragens cujo objetivo principal era prover o abastecimento de Salvador

e posteriormente de toda a sua região metropolitana; no entanto, na atualidade, muitas delas

perderam importância – algumas foram abandonadas, como é o caso da Barragem do Cobre,

inserida na cidade do Salvador e desativada em 2010 – frente à possibilidade de expandir a

captação de água em barragens inseridas fora dos limites da região metropolitana.