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2 POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: UM FENÔMENO INERENTE À

3.3 PARTICULARIDADES DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER EM SITUAÇÃO

esperava ser assaltada pelo ladrão de dores em plena luz do dia

(Ana Zêpa) As inferências do patriarcado na construção do gênero feminino, apresentam diversas expressões cotidianas na vida das mulheres. Por exemplo, a Pesquisa Nacional de População de Rua, demonstra a desproporcionalidade quantitativa do número de mulheres em situação de rua (18% ou 4.964), com relação ao número de homens (82% ou 22.669) nesta condição.

Esta diferença significativa não aparece por acaso. A vida na rua apresenta desafios muito intensos para a vida de uma mulher em função de suas especificidades com relação aos homens. As obriga a lidar com uma realidade profundamente masculinizada e cheia de preconceitos, situação esta, que se impõe de forma muito mais brutal do que os casos de violência e preconceitos vivenciados cotidianamente por grande parte das mulheres que não estejam em situação de rua. Isto porque são consideradas frágeis e, portanto, “menos adaptas” a esta situação extrema, o que faz com que sejam percebidas como “vítimas fáceis” (BRASIL, 2008, p. 157).

A realidade de uma mulher em situação de rua é singular, pois vai de encontro a normatividade imposta às mulheres em uma sociedade patriarcal. Nesse espaço, a violência é aglutinada, sobretudo, pela legitimidade das relações públicas masculinas, que estruturam as relações sociais e permeiam os órgãos e instituições públicas, bem como estabelecimentos privados, a exemplo do comércio. Por essa compreensão, destacamos o patriarcado como alicerce para a condição violenta que a mulher se encontra na sociedade capitalista, de modo que é este o principal elemento de violência na vida das mulheres em situação de rua, ainda que elas estivessem no ambiente doméstico, momento pré-condição de rua, como observado no relato de Maria Damiana:

Figura 3 - Retrato Maria Damiana

Fonte: RN Invisível, 2018.

Fiquei apaixonada por um rapaz e com 17 anos fugi de casa com ele. Meses depois engravidei. Ele não gostou, ficou estranho, agressivo. Logo quis voltar pra casa de minha mãe, mas ela faleceu antes que eu pudesse voltar. Não sabia o que fazer, não tinha ninguém e nem condições de me sustentar, quanto mais um filho. Ela nasceu, era linda. Tive que tomar uma decisão, estava desesperada, acabei dando ela para minha tia criar e saí mundo afora. Acabei conhecendo outra pessoa, não me lembro como, sei que nos juntamos. E lá estava eu, grávida de novo. Era um menino e ele gostou muito, já que não tinha filhos. Mas ele bebia, sabe?! E quando o menino nasceu, parece que piorou, começou a gritar e a me empurrar, quando me dei conta já estava apanhando dele. Qualquer coisa ele me batia. Algum tempo depois, criei coragem e fugi, não tinha pra onde ir, mas só queria sair dali. Sorte que encontrei minha avó, que a muito tempo não via. Fui pra casa dela, mas ela já era muito idosa e algum tempo depois faleceu. Fiquei sem rumo de novo e lá estava eu, novamente dando meu filho, pra ele não passar fome. E mais uma vez saí mundo afora à procura de trabalho ou alguma coisa pra poder viver. Conheci um rapaz que trabalhava próximo onde eu morava, pouco tempo depois já estava morando com ele e grávida de novo, outro menino. Esse homem me batia tanto, que uma vez desmaiei e acordei toda ensaguentada dentro de uma ambulância, até hoje eu tenho um problema por causa disso. Ele foi preso, nunca mais tive notícias. Uma amiga me acolheu depois que saí do hospital. Eu e meu menino. Depois engravidei de uma rapaz que só fiquei uma noite. Aí conheci esse meu último marido, até que enfim um homem de verdade, tive essas duas meninas com ele, um homem bom. Estou aqui na rua pedindo, porque não tenho emprego, não tenho nada. Vem eu e ele. Me arrependo demais de ter dado meus filhos. Estou triste porque meu menino de 16 anos saiu de casa essa semana, disse que ia viver a vida dele. Meu nome é Maria Damiana e tenho 46 anos. Sonho: Ver todos meus filhos juntos. Desejo: Cesta básica, roupas e material de higiene para todos nós. (RN INVISÍVEL, 2018, [s.n.t.]).

Há que se notar, a violência doméstica115 como uma repetição na trajetória de vida de Maria Damiana, de modo que em alguns casos, é condicionante para o abandono do lar. No entanto, é necessário problematizar que essa situação não é uma escolha, pois no espaço da vida privada ocorrem as primeiras expressões violentas do patriarcado na vida das mulheres, haja vista a família monogâmica enquanto uma instituição amparada por essa estrutura, pois, “baseia-se no predomínio do homem; sua finalidade expressa é a de procriar filhos cuja paternidade seja indiscutível; e exige-se essa paternidade indiscutível porque os filhos, na qualidade de herdeiros diretos, entrarão, um dia, na posse dos bens de seu pai (ENGELS, 2012, p. 83).

Assim, a família se constituiu uma “unidade econômica por excelência”, de modo que,

Sob a capa de uma proteção que o homem deveria oferecer à mulher em virtude da fragilidade desta, aquele obtinha dela, ao mesmo tempo, a colaboração no trabalho e o comportamento submisso que as sociedades de família patriarcal sempre entenderam ser dever da mulher desenvolver em relação ao chefe de família (SAFFIOTI, 2013, p. 63).

No modelo monogâmico de família, a submissão da mulher ao homem é condição autêntica para formação desse tipo de organização familiar, já que considera-se o homem como àquele responsável por assegurar a reprodução dos bens, com o surgimento desse tipo de organização familiar116, legitima uma relação, baseada nas condições econômicas e coloca o

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A Lei Maria da Penha (nº 11340), define como violência doméstica e familiar: Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; ação parlamentar 15 Procuradoria Especial da Mulher IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria (BRASIL, 2010, pp. 14-15).

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Conforme Lessa (2012): A origem da família monogâmica se situa na transição para a sociedade de classes. Para que a resistência contra a exploração seja controlável, é fundamental que os escravos, servos, proletários, etc. busquem a sua sobrevivência de modo individual, não coletivo. Era, para isso, necessária a destruição dos laços primitivos que faziam da sobrevivência de cada indivíduo a condição necessária para a sobrevivência de toda a comunidade. Ao mesmo tempo, os membros da classe dominante perseguem as suas sobrevivências com o individualismo que caracteriza a propriedade privada; e, mesmo quando articulam ações conjuntas para a defesa de seus interesses de classe, cada um almeja apenas o enriquecimento pessoal [...] É assim que a família se descola

homem como o centro da reprodução. Por essa via, percebemos que a família monogâmica se apresenta como a primeira instituição a legitimar a opressão das mulheres, entendendo “a própria natureza da monogamia, solidamente baseada na supremacia do homem (ENGELS, 2012, p. 92).

Validou-se o modelo monogâmico de família, face o surgimento da sociedade capitalista.

O modo capitalista de produção não faz apenas explicar a natureza dos fatores que promovem a divisão da sociedade em classes sociais; lança mão da tradição para justificar a marginalização efetiva ou potencial de certos fatores que promovem a divisão da sociedade em classes sociais; lança mão da tradição para justificar a marginalização efetiva ou potencial de certos setores da população do sistema produtivo de bens e serviços. Assim, é que o sexo, fator de há muito selecionado como fonte de inferiorização social da mulher, passa a interferir de modo positivo para a atualização da sociedade competitiva, na constituição das classes sociais (SAFFIOTI, 2013, p. 66).

A inserção da mulher na sociedade capitalista, ocorre por meio da violenta condição de subalternidade, na qual se baseia o tipo de família necessário para os processos de acumulação capitalista. Logo, é desta situação que se expressa as diversas formas de violência na vida das mulheres, como a violência doméstica, a qual exprime as relações sociais, visto o local de privilégio do patriarca na relação afetiva. A primeira manifestação de violência no âmbito doméstico aparece na situação de dependência econômica dessas mulheres com seus companheiros.

No relato de Maria Damiana, a violência doméstica por meio da violência física possui as mesmas razões, as quais notamos o histórico de dependência econômica em suas relações afetivas, havendo assim mútua correspondência no tocante a situação a que foi inserida. A história de violência de Maria Damiana, não deve ser observada de maneira dissociada do movimento histórico da sociedade, pois “[...] a ruptura de integridades como critério de avaliação de um ato como violento situa-se no terreno da individualidade. Isto equivale a dizer que a violência, entendida desta forma, não encontra lugar ontológico (SAFFIOTI, 2015, p. 80). Entretanto, é sob as inferências da moralidade, que as mulheres são culpabilizadas pelos contextos violentos os quais vivenciam.

do coletivo e se constitui em núcleo privado: essa nova forma de organização de família é a família monogâmica ou família nuclear (LESSA, 2012, pp. 25-26).

O que se mostra de difícil utilização é o conceito de violência como ruptura de diferentes tipos de integridade: física, sexual, emocional, moral. Sobretudo em se tratando de violência de gênero, e mais especificamente, intrafamiliar e doméstica, são muito tênues os limites entre quebra de integridade e obrigação de suportar o destino de gênero traçado para as mulheres: sujeição aos homens, sejam pais ou maridos. Desta maneira, cada mulher colocará o limite em um ponto distinto do

continuum entre agressão e direito dos homens sobre as mulheres. Mais do que isto, a mera existência desta tenuidade representa violência. Com efeito, paira sobre a cabeça de todas as mulheres a ameaça de agressões masculinas, funcionando isto como mecanismo de sujeição aos homens, inscritos nas relações de gênero (SAFFIOTI, 2015, pp. 79-80, grifo nosso).

Assim como declarado por Maria Damiana, a repetição de violência doméstica se apresenta em demasia na vida das mulheres em situação de rua, sendo esta, ora causalidade do ingresso à situação de rua, ora a premissa para a condição contínua de agressão no ambiente doméstico, o que, conforme a Pesquisa Nacional de População de Rua (BRASIL, 2008), “ [...] o pequeno número de mulheres (em comparação a quantidade de homens) vivendo nas ruas, pode ser um indicativo de que muitas mulheres optam por permanecer em suas casas, muitas vezes suportando situações de violência e opressão (BRASIL, 2008, p. 160).

Outra realidade condizente com a de Maria Damiana e da maioria das mulheres em situação de rua, está relacionada a maternidade. A Pesquisa Nacional de População de Rua, apontou que “[...] cerca de 20% do total de mulheres entrevistadas declararam ser responsáveis por alguma criança e ou adolescente nas ruas e /ou albergues, enquanto que homens, apenas 4,3% o fazem” (BRASIL, 2008, p. 157).

A maternidade no contexto da rua torna-se um agravo diante da situação de vulnerabilidade e pobreza. As mulheres, mães (à exemplo de Maria Damiana), em situação de rua, são obrigadas a doarem seus filhos à parentes próximos, ou as crianças ficam sob responsabilidade do Estado. Maria Damiana tem o sonho de juntar todos os seus filhos, os quais lhes foram afastados pelas suas condições objetivas de vida, assim, o exercício da maternidade, quando em situação de rua, é abordada de maneira moralizante, onde a mulher é culpabilizada pelas condições que se encontra a criança. Este estigma é construído na ótica moral acerca da população em situação de rua. Logo, se for mulher,

“Dificilmente o juiz vai dar uma chance para a mãe. [...] Essa estigmatização que ocorre da vivência de rua e do uso de drogas é quase absoluta. No sentido de que é visto que necessariamente essa mulher não tem aptidão para a maternidade”, afirma ele. O advogado é categórico ao dizer que a premissa de que essa mulher não pode ser mãe é falsa. “Historicamente existe uma série de estudos produzidos, de várias áreas do conhecimento — sociologia, antropologia, psiquiatria, psicologia, enfermagem — que mostram o contrário, com casos concretos, em que a mulher consegue desenvolver fatores de proteção mesmo em alta vulnerabilidade”. (MARIAS DAS RUAS, 2017, [s.n.t]).

Quando mães, as mulheres em situação de rua são violentadas pela ótica dualista do Estado, que atua sob a medida de separação por meio da retirada da guarda. Entretanto, tal iniciativa expressa a contradição no tocante ao amparo à criança ou adolescente, estabelecido pelo Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa de Direitos de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC), que aponta:

Crianças e adolescentes têm o direito a uma família, cujos vínculos devem ser protegidos pela sociedade e pelo Estado. Nas situações de risco e enfraquecimento desses vínculos familiares, as estratégias de atendimento deverão esgotar as possibilidades de preservação dos mesmos, aliando o apoio sócioeconômico à elaboração de novas formas de interação e referências afetivas no grupo familiar (BRASIL, 2016, p.15).

Ainda que nos casos de vulnerabilidades devido às razões socioeconômicas, a proteção à família é de responsabilidade estatal. Nessa perspectiva, as mulheres em situação de rua deveriam ser amparadas para que haja garantia da guarda e do convívio com seus filhos/as. Todavia, é imprescindível observar que em razão da situação de extrema pobreza, a mulher, mãe, em situação de rua, é criminalizada, como se estar neste contexto de miserabilidade, partisse de uma escolha individual, e assim, o Estado se ausenta para com esta problemática social.

Percebe-se então, que a criminalização à mulher, mãe, em situação de rua é de antemão, a criminalização da pobreza feminina117. Segundo análises do economista André Urani, por meio da Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar - PNAD (2008)118, em 2008, o número de famílias, chefiada por mulheres, que viviam em situação de extrema pobreza, era de 1,8 milhões

de famílias. Além disso, no que se refere ao desemprego119, em 2017, era de 6,24 milhões (13,4%) de mulheres desocupadas, enquanto a taxa masculina, era de 6,07 (10,5%) milhões de

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Como no caso de Janaína, mulher em situação de rua, que sofreu esterilização a pedido do Ministério Público.

“Laqueadura forçada retoma processo de higienização contra negras e pobres, diz médica”. Disponível em:

https://www.brasildefato.com.br/2018/06/12/laqueadura-forcada-retoma-processo-de-higienizacao-contra- negras-e-pobres-diz-medica/. Acesso em 20 de agosto de 2018.

118 Informações por meio da página: https://pt.scribd.com/document/366636711/A-Extrema-Pobreza-e-Feminina-Observatorio- Brasil-Da-Igualdade-de-Genero. Acesso em 20 de agosto de 2018.

119 Informações encontradas na página: https://g1.globo.com/economia/concursos-e- emprego/noticia/desemprego-e-maior-entre-jovens-mulheres-e-trabalhadores-sem-ensino-superior.ghtml. Acesso

em 20 de agosto de 2018. É cabível ressaltar que os dados pertencem à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). Assim, os dados têm limites no que se refere às mulheres em situação de rua.

homens desempregados no Brasil. Tais dados revelam a crescente femininização da pobreza120 no país, onde as mulheres em situação de rua, ainda que excluídas dessas estatísticas, são expressões deste fenômeno, posta a condição de miséria, que já se apresenta como um destino às ruas e também define o perfil dessas mulheres.

A Pesquisa Nacional de População de Rua de 2008, revelou que a moradia (22,56%) é o principal motivo para a situação de rua dessas mulheres, “[...] seguido por problemas familiares (21,92%), alcoolismo e drogadição (11,68%) e o desemprego (8,8%) (BRASIL, 2008, p. 160). O fato da pesquisa ter sido realizada há dez anos, quando a questão da moradia já se apresentava para as mulheres como o principal motivo para à ida as ruas, denota-se que na atualidade essa problemática esteja em evidência, posto o problema da especulação imobiliária

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no país, que agrava a habitação para as populações mais vulneráveis, como declarado por Noemy:

Figura 4 - Noemy e sua filha

120 Com base em Medeiros e Costa (2008): A definição precisa da feminização da pobreza depende de duas questões subsidiárias: o que é pobreza? e o que é feminização? A pobreza é uma falta de recursos, capacidades ou liberdades que comumente são chamadas de dimensões da pobreza. O termo “feminização” pode ser usado para indicar uma mudança com viés de gênero em qualquer destas dimensões. A feminização é uma ação, um processo de se tornar mais feminina. Neste caso, “feminina” significa “mais comum ou intensa entre as mulheres ou domicílios chefiados por mulheres (MEDEIROS; COSTA, 2008, [n.p.]). Disponível em: http://www.ipc-undp.org/pub/port/IPCOnePager58.pdf. Acesso em 20 de agosto de 2018.

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No segundo capítulo já problematizamos acerca do mercado imobiliário e o aumento da população em situação de rua no país.

Fonte: SP invisível, 2018.

Não dá para morar lá no albergue que a prefeitura tá oferecendo para gente. Eu fui lá com a minha filha e ela tá com uma tosse horrível agora porque todo banho que ela tomava era de água gelada. É horrível, muita gente num lugar muito pequeno, todo mundo apertado. Lá, a gente dormia tudo um do lado do outro, gente que a gente nem conhecia. Um monte de cama numa salão. No espaço que tem lá de lazer, dava nem pra conversar com a assistente social porque era muita gritaria. Pelo menos a comida era boa. Voltei aqui pro largo porque, pelo menos a gente fica mais sossegado aqui. Meu nome é Noemy. Outro dia, voltou um outro rapaz que tava lá no albergue da prefeitura, também, falando que foi assaltado lá enquanto dormia e que tava sem nada. Isso não acontece aqui. Hoje, eu to atrás do meu auxílio aluguel que prometeram. Eu já tava desde antes do prédio pegar fogo. O problema é que depois que isso aconteceu, virou uma bagunça e entrou gente na fila da indenização até quem não morava ali no prédio (SP INVISÍVEL, 2018, [s.n.t.])

A declaração de Noemy retifica o descaso do Estado para com as famílias em situação de rua, provenientes de problemas com a moradia. Além disso, revela as fragilidades da política de Assistência Social, no tocante aos serviços oferecidos à população em situação de rua, e neste caso, na ausência de políticas específicas para as mulheres e famílias que se encontram nesta ondição. Assim, como relatado por Noemy, a defasagem nos serviços de acolhimento é condicionante para a preferência pela dormida nas ruas.

Elemento importante diz respeito ao necessário diálogo entre as políticas públicas. No caso de Noemy, remete às políticas de assistência social e de saúde, posto a preocupação com as condições de saúde de sua filha. No entanto, de modo geral, a condição de Noemy e sua filha, desvenda a necessidade de intersetorialidade entre as políticas de assistência social, saúde e habitação.

Na realidade brasileira, ainda que previsto na PNPR (2009), o diálogo entre as políticas públicas é algo distante, acentua as condições miseráveis de vida das mulheres em situação de rua e agrava sua permanência nesta situação, onde do ponto de vista de Vilma Aparecida da Silva, “se eu for morrer na mão deles, prefiro morrer antes” (SP INVISÍVEL, 2017, [s.n.t.]).

Figura 5 - Retrato de Vilma Aparecida

Fonte: SP invisível

Esse governo vai ajudar o povo que está na rua? Minha mãe me deixou recém-nascida no hospital e fui criada num internato, sai de lá com 18 anos. Sempre fui carroceira e sempre aprendi com meus irmãos de rua, eles são minha família e se acontecer alguma coisa com