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CAPÍTULO 1 AS PRAÇAS NOS PROCESSOS DE URBANIZAÇÃO DE

1.5. Passeio Público: nas trilhas dos séculos XIX e XX

Dentre as praças iniciais da Cidade que merecem destaque, por terem sido centros convergentes de atividades públicas, o Passeio Público, sem dúvida, está entre elas. O significado e a importância que adquiriu para a história de Fortaleza evidenciam- se através dos hábitos e comportamentos coletivos, desencadeados e adquiridos na urbe durante o século XIX. O logradouro é sem dúvida o mais emblemático para demonstrar

a relação indissociável existente entre as estruturas urbanas e os comportamentos da população vigorantes durante o século XIX.

O cenário do Passeio enquanto modelo e ícone mostrava a separação entre as classes pobres e os mais elevados grupos sociais. Sua construção fez parte de um projeto de embelezamento que reformulou as principais praças de Fortaleza, determinando novos modos de convívio urbano às imagens de “civilidade” e “assepsia”. Tal intervenção remodeladora esteve articulada com as campanhas de higienização social e com os mecanismos assistencialistas e policiais de controle exercido sobre as classes populares (PONTE, 2010: 21).

Construído no século XVIII, já era conhecido nesta época por Largo da Fortaleza31, servindo de depósito para material bélico e para a artilharia do antigo fortim de São Sebastião, e passou a se chamar Praça dos Mártires apenas em 1879, por proposta do vereador João Câmara homenageando os rebeldes da Confederação do Equador, que ali foram fuzilados, quando o logradouro ainda era conhecido por “Campo da Pólvora”. (CUNHA, 1990: 269).

O nome de Passeio Público foi dado em 1850, quando reformado pelo presidente da província à época, Fausto Antônio de Aguiar, que concedeu a população, um espaço voltado para passeios matutinos e vesperais, então cotidianamente já realizados no logradouro desde meados do século XIX. É interessante ressaltar que o uso de espaços como este para passeios, já era comum em outras cidades do Brasil e de Portugal.

As primeiras muralhas (gradis circundantes) do Passeio foram levantadas em 1867, na gestão do Dr. José Pompeu de Albuquerque Cavalcante, quando também recebeu uma vasta arborização e a construção de um pequeno jardim. A obra, finalizada apenas em 1879, graças a Tito Rocha, chefe das obras públicas da província, tornou o Passeio um lugar preferido para a realização do lazer em Fortaleza. Dali em diante, suas tardes passaram a ser animadas pelas apresentações da Banda de Música do 15º Batalhão, adquirindo de vez o status de “Passeio Público”.

Naquele ano, foram instalados no logradouro um rink de patinação e um conjunto de três avenidas (Avenidas Caio Prado, Carapinima e Mororó), as quais funcionaram como divisores, que separavam socialmente os freqüentadores da área.

31

(CUNHA, 1990: 270; PONTE, 2010: 37). Conforme Raimundo Girão a divisão era feita da seguinte forma:

Tudo convergia para ali: a gente mais modesta passeando vaivém pela avenida Mororó e a haute-gomme na Caio Prado, numa perfeita e espontânea separação. A classe mais baixa ficava na Carapinima. Ostentação de vestidos e de graça feminil. Dandismo masculino à altura do ambiente da mais indiscutível distinção social. (GIRÃO, 1979: 148).

O Passeio Público de 1879 era considerado um dos mais belos passeios do país e agregava em seu conjunto: bancos, canteiros, cafés, árvores nativas e estrangeiras, tanques, estátuas de deuses mitológicos, alamedas cimentadas, vista para o mar, além de um ampliado grupo de freqüentadores a se deliciar com o som das bandas de música do exército e do Batalhão Militar do Estado. (BEZERRA DE MENEZES, 1992: 190).

Lugar de experiências e vida social, o local passou a reunir pessoas oriundas das mais diversas categorias sociais. Seu clima distinto era mantido por um código específico, o qual demarcava simbolicamente fronteiras entre seus freqüentadores, estabelecendo o cumprimento de gestos moderados, a realização de conversações educadas e o uso de vestimentas elegantes, que convergiam para “um repertório difuso e sutilmente autoritário” da “civilização”.

Devido à forte normatização presente no espaço, o logradouro se transformou num centro para a exibição de modas e requintes de consagração sócio-econômica das classes emergentes da cidade, ansiosas por evidenciar seus novos hábitos, distintos e “superiores” aos costumes tradicionais tão fortes na cultura cearense.

Para Sebastião Ponte (2010), durante a segunda metade do século XIX “engendrou-se uma euforia “cosmopolito-civilizatória” no seio das elites sociais e intelectuais” de Fortaleza que intentavam transformá-la a imagem e semelhança de outros centros urbanos avançados do país e da Europa Ocidental. Conforme anuncia:

“Zelosamente cuidado e bastante arejado, o logradouro transformou-se em vitrine ideal para o desfile de elegâncias e principal cartão de visita da Cidade, haja vista o álbum de fotografias intitulado Álbum de vistas do Ceará, 1908, confeccionado pela casa francesa importadora-exportadora Boris Frères e Cia, impresso em Nice (França) e destinado a dar uma amostra imagética do desenvolvimento da Capital. Entre as dezenas de fotos selecionadas para o encarte, onde despontam praças, ruas, edifícios, escolas e construções em geral, o Passeio Público é o que mais aparece, merecendo

fotografias dos seus mais diversos ângulos” (PONTE, 2010: 37)

O momento se fazia propício para a disseminação do consumo de tecidos, chapéus, e demais adereços vindos de Paris e Londres a impregnar os olhos e os desejos de uma elite abastada, sequiosa por destaque, luxo e distinção social. Tal contexto reforçava mais ainda os anseios adquiridos pelas elites ao expor publicamente seus hábitos e costumes urbanos. Afirma Tião Ponte:

E não faltavam, agora, oportunidades sociais e urbanas para esta visibilidade: havia distintos modelos para vestir fosse nos bailes dos clubes, no carnaval, nas tardes de turfe, nos footings do Passeio Público, nas solenidades ou no interlúdio de uma conversação entre pares no Café Riche. (PONTE, 2010: 162)

Esta mesma tendência também é citada pelo pesquisador Antônio Luiz Silva Filho que enfatiza o aspecto normativo que a moda estabelecia no logradouro.

Embora destinado ao lazer, o Passeio mantinha normas que disciplinavam seus frequentadores, como a exigência de belos trajes e boas maneiras. (SILVA FILHO, 2001: 89).

Na descrição que o historiador Antônio Bezerra faz da Cidade de Fortaleza nos finais do século XIX, o Passeio Público aparece como a mais notável das praças existentes. O concorrido e atraente logradouro, mantinha a freqüência de um público assíduo, que para lá se dirigia às quintas-feiras e aos domingos, com o intuito de se divertir na “mais doce cordialidade”, embalado pelo som da boa música. (BEZERRA DE MENEZES, 1992: 36). Silva e Filho nos dá idéia deste quadro:

Circundado de um belo gradil e portões de ferro (projetados por Adolfo Herbster), munido de jardim bem arborizado, ornado com bancos, colunas, canteiros, postes e combustores de gás, vasos de louça e estatutária de estilo neoclássico retratando divindades da mitologia grega (...) (SILVA FILHO, 2001: 89).

Conforme o arquiteto José Barros Maia a preferência por este espaço para a realização de atividades de lazer entre a população, deveu-se em parte ao fato de que as residências, localizadas nas suas proximidades, não possuíam espaço reservado para o usufruto do lazer doméstico, pois na maioria eram transformadas simultaneamente em estabelecimentos comerciais. E logo, na falta de um lugar propício para a receptividade

e para a realização dos encontros sociais na vida doméstica, a população se sentiu motivada a utilizar aquele espaço como “sala de visitas”. (CAMPOS, 1996: 195).

Otacílio de Azevedo descreve sua composição paisagística em 1912, e nela abre destaque para a relevância que adquiriram alguns equipamentos, como a Avenida Marquês do Herval, quatro quiosques de madeira, e o suntuoso coreto, de onde saíram belas notas musicais das retretas da banda da Polícia Militar. A praça era espacialmente formada por quadrados de grama bem cuidada, touceiras e flores das mais variadas. O escritor reforça ainda a existência de colunas de mármore vindas de Portugal, trabalhadas em estilo coríntio, que sustentavam grandes jarros de porcelana japonesa, nos quais eram postas algumas plantas exóticas que davam um grande efeito estético na paisagem local.

Além dos bancos de talisca de madeira, pintados de verde e situados nas várias alamedas, toda sua ambiência era iluminada por belos combustores de luz carbônica, que irradiavam uma iluminação esverdeada sobre as belas e grandiosas árvores, margaridas, crisântemos e palmeiras, perfazendo no logradouro, uma atmosfera de fantasia.

É importante destacar aqui que a instalação dos combustores de gás carbônico, trouxe para a praça a prática dos passeios noturnos, antes inexistentes devido à escuridão e a obscuridade da noite. Após a instalação destes belos equipamentos, a cidade pôde incorporar com mais afinco e certeza as marcas e ditames do progresso, dada as benesses que engenhocas como aquelas traziam para a provinciana cidade. Ilustra Otacílio:

(...) À noite, famílias inteiras – moças, velhos, rapazes e crianças – enxameavam no meio daquela vegetação luxuriante, ou sentavam-se nos bancos. Nos dias de retreta, havia grande quantidade de gente, acotovelando-se para conquistar um lugar mais perto do coreto, onde a Banda executava valsas e trechos de operetas mais conhecidas, como “A Viúva Alegre” ou o “Príncipe Estudante” (...) Os quiosques regurgitavam de fregueses: servia-se ali, um saboroso “Blitz” ou a “Banadiana”. (AZEVEDO, 1992: 40, 41).

O autor rememora o “silêncio reinante no bosque”, a ajudar no “repouso do cérebro”, que vez ou outra era rompido pelos gritos de crianças a correr pelo logradouro, ou pelo pregão de um vendedor de guloseimas. Mas, nada de automóveis a buzinar nos ouvidos dos freqüentadores.