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CAPÍTULO 1 AS PRAÇAS NOS PROCESSOS DE URBANIZAÇÃO DE

1.10. A praça (mal) dita em fins do século XX: a morte das praças?

Nas três últimas décadas do século XX, as praças sofreram profundas transformações impulsionadas pela lógica segregacionista do capital imobiliário, concentrando bens e recursos em áreas privilegiadas em detrimento da escassez e inexistência de políticas públicas voltadas para as áreas periféricas, aumentando mais ainda as zonas de contrastes sociais.

No rol destes espaços, algumas se tornaram precarizadas em termos de infra- estrutura. Pouco atraentes ao poder do investimento imobiliário, relegaram-se ao “sucateamento”. No entanto, apesar de fisicamente “desfiguradas” e “descaracterizadas”, transformaram-se em lugares de (re) apropriação, servindo como espaços de morada para população de rua, e lócus de sobrevivência para um grande contingente de trabalhadores informais.

Este contexto de final do século XX propiciou o surgimento de uma praça do conflito social, encarada como lugar das contradições e dos embates. É importante citar, por exemplo, que as antigas praças do centro, antes, “belas” e “enfeitadas”, transformaram-se em sinônimo de “decadência” e “feiúra”, adquirindo um aspecto negativo no discurso dos extratos que antes as ocupavam. É válido ressaltar também dentro deste contexto, que algumas praças, situadas nas “áreas nobres” da cidade, passaram a receber investimentos advindos da Parceria Público-privada, fruto de uma nova política, ao passo que algumas praças da periferia permaneceram “apagadas” e “esquecidas” pelos investidores urbanos.

Praças como o Passeio Público, José de Alencar, Parque da Liberdade, Lagoinha, dentre outras tantas, antes, referências centrais para as remodelações urbanas, transmutaram-se nas duas últimas décadas do século XX em espaço de atividades informais. Sobre o Passeio Público desta época, Noélia Cunha (1990) destaca: “O nosso

Passeio encontra-se hoje com suas belas estátuas mutiladas pelo tempo, sem prestígio, esquecido antro de desocupados e de encontros proibidos pelos bons costumes.” (Idem:

270). Tais usos “malditos”, encarados com repulsa por setores privilegiados da população, foram responsáveis por transformar a praça em lócus de sobrevivência para novos atores que passaram então a tomar a cena. Lamentando as alterações ocorridas devido a ocupação informal do espaço, em áreas como o Parque da Liberdade, Cunha também expõe:

Infelizmente, porém, as calçadas se transformaram em verdadeiro mercado, onde camelôs vendem de tudo; até peixe é tratado, tornando o ambiente fétido e desagradável. (CUNHA, 1990: 247).

A autora critica a ocupação da calçada do Parque pelos camelôs, novos atores que no discurso aparecem como os responsáveis por transformar o parque num mercado “estranho”, “fétido” e “desagradável”. Esta atmosfera contrastante, de ambiente “anti- higiênico”, rompeu com a antiga harmonia e leveza, reinantes no parque de antigamente. Entretanto, a cena demonstra nas entrelinhas o processo de (re) apropriação ocorrido no espaço, que passou a ser freqüentado por grupos menos favorecidos e por atividades não convencionais, servindo de vitrine para os dramas de uma sociedade problemática e desigual. Revelando as contradições e dramas na Praça Pública, Cunha destaca:

Lá havia de tudo: delinqüência infantil, prostituição, assalto à mão armada etc., etc. Também se estabeleceu o comércio ambulante, vendendo toda espécie de mercadoria: instalaram- se botequins com as mais variadas e anti-higiênicas refeições, num desrespeito à saúde pública, gerando pela sujeira, focos de doenças. Consta até que havia um pé de maconha no canteiro da estátua de José de Alencar, que era colhida e vendida a consumidores, que fabricavam e acendiam a droga ali mesmo. (idem: 217)

Nas últimas décadas do século XX, o Centro passou a ser ocupado por um grande contingente de pessoas vindas da periferia. Suas praças, então antes, voltadas para o ócio da burguesia e das classes altas, e vistas com orgulho pelas elites e governantes, passaram a ser ocupadas por grupos menos favorecidos, deixando de receber investimentos, e encarnando por isso mesmo, o status de espaços “desqualificados”.

É importante ressaltar que durante a década de 1980, os meninos de rua ocuparam o centro da cidade, e a Praça José de Alencar passou a ser um dos territórios preferidos do grupo, ao mesmo tempo em que camelôs, artistas populares, desempregados, prostitutas e uma série de sujeitos “sobrantes” também se apossavam do território (PIMENTEL, 1998: 60).

O antigo Centro, anteriormente repleto de praças ajardinadas, ruas alinhadas e modernas edificações, transformou-se num centro de “abandono”, fruto da falta de planejamento e esquecimento público. A área perdeu sua visibilidade simbólica, dando lugar aos discursos da especulação imobiliária e dos apelativos turísticos centrados nos

shoppings centers e nas áreas de praia da cidade (SILVA E FILHO, 2001: 44).

Esta canalização de atividades sociais, deslocadas para os espaços privados da cidade acabou demarcando um processo de “privatização das sociabilidades”, canalizando públicos e investimentos para as áreas de modernos centros de lazer e condomínios fechados.

Já inserida na década de 1990 a Praça de Fortaleza incorporava de vez os dramas da urbanização com seus processos de segregação. Incorporando esta nova feição, os logradouros se transformaram em espaços alternativos de escape para as tensões sociais e lócus de sociabilidades não-convencionais. Sobre este novo sentido e uso das Praças Pimentel esclarece:

“A praça propicia a criação de espaços específicos, como guetos, para o encontro de grupos sociais excluídos: os homossexuais, os hippies, as prostitutas, os loucos e participantes de gangues (...) Nesse sentido, a praça aparece na cidade como um espaço alternativo para que se estabeleça uma sociabilidade diferenciada da sociabilidade convencional, é um espaço de resistência que, de certo modo, funciona como “escape” das tensões sociais da cidade, imprimindo na mesma características próprias.” (PIMENTEL, 1998: 10)

No final do século XX e continuidade do XXI, o logradouro passou a agregar uma infinidade de atividades lícitas e ilícitas, redefinindo suas fronteiras entre o público e o privado, e entre o legal e o ilegal. Novos grupos e atores passaram a conviver, competir, dividir e demarcar territórios nestes novos “espaços síntese”. A coexistência entre concepções duais de civilização e não-civilização, moral e amoral, arcaico e moderno, legal e ilegal, legítimo e ilegítimo, tão presentes nos conflitos que estimularam as reformas urbanas em Fortaleza durante os séculos XIX e XX, tomaram novas formas neste outro milênio, redefinindo práticas, estilos e comportamentos. É por isso que no século XXI, o espaço da Praça de Fortaleza irá incorporar a condição de arena aberta para o convívio, conflito e afirmação da diversidade.