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CAPÍTULO 1 AS PRAÇAS NOS PROCESSOS DE URBANIZAÇÃO DE

1.9. Nos tempos de chumbo: entre o autoritarismo e reformas tecnicistas

O clima alegre, festivo e democrático reinante nas Praças da Cidade e principalmente na Praça do Ferreira, veio a ser abalado ao final da década de 1960, através de impactantes reformas, como a que se deu em 1968 implantada pelo prefeito e engenheiro José Walter Cavalcante, que a transformou no que a população batizou de “monstrengo”, descaracterizando totalmente sua paisagem (ADERALDO, 1989: 11; CUNHA, 1990: 156). Tal reforma foi duramente criticada por técnicos e intelectuais. A severidade desta crítica pode ser vista neste trecho citado por Juarez Leitão:

Em 1968 o prefeito José Walter Cavalcante faz a demolição completa da praça e ergue uma coisa esquisita com canteiros altos em forma de caixões, interceptando a vista horizontal de tal modo que, quem estivesse de um lado não enxergava o outro lado. Como era no tempo da ditadura militar, muita gente achava que aquelas paliçadas de cimento armado eram para evitar a aglomeração no centro da praça e dificultar os comícios e mobilizações de protesto. O bate-papo vespertino, os bancos-parlamentares e o convescote dos aposentados...tudo isso finou. Os cronistas e historiadores consideram que o Dr.Zé Walter, querendo ou não, decretou a morte da praça. (LEITÃO, 2002: 21)

A intervenção, guiada por uma concepção arquitetônica e fundamentada sobre pesadas estruturas de concreto, típicas do padrão de urbanismo “desenvolvimentista” dos governos militares, destruiu a antiga paisagem física do local. Outras medidas centralizadoras como esta foram adotadas nas cidades brasileiras durante o final da década de 1960 com o intuito de modernizar as capitais do país, a partir dos Planos de Desenvolvimento Integrado (PDI’s), propiciando o controle o urbano através de medidas técnicas de intervenção no espaço (LOPES, 2004: 19).

Os discursos midiáticos não poupavam meias palavras, ao citar que a reforma empreendida na Praça, transformava-a “num dos mais bonitos centros urbanos do norte- nordeste”. Entretanto, pelo prisma da população, indignada e desgostosa com a mudança ocorrida, o projeto representava a extinção das sociabilidades reinantes no lugar, como conversas, comícios, protestos, e demais manifestações públicas.

A intervenção de José Walter, extinguiu os “bancos”, adotados como verdadeiros sindicatos e pontos de encontro para grupos de intelectuais e políticos (JOB, 1992). Tal modificação, encarada por muitos, como a “morte da praça”, repercutiu negativamente entre a população usuária, acostumada com a liberdade de expressão antes efervescente. Sobre a mudança na Praça, afirma Alberto Galeno:

Reencontrar velhos amigos. Bater um papo. Tomar um cafezinho no Abrigo Central. Ou, para variar, um pega-pinto no Mundico. A Praça? Sim, buscávamos a Praça do Ferreira! Qual o habitante desta cidade do forte que não se encontra por este ou aquele motivo ligado ao logradouro que nasceu sob o carisma do boticário Ferreira? Mas, onde encontrá-la? Pelos nossos cálculos deveríamos estar no espaço ocupado pela Praça do Ferreira. Mas, onde a Coluna da Hora? E o abrigo Central? Por mais que nos esforçássemos não conseguíamos encontrá- los. O que víamos em seus lugares eram aqueles estirões de cimento armado, de cinqüenta metros ou mais, como se fossem jazigos destinados a sepultar gigantes. Um cemitério surrealista com certeza. Fortaleza possuía destas extravagâncias. (GALENO, 1991: 7).

Com a implantação da reforma, os antigos marcos simbólicos que serviam de referência para a população, haviam sido destruídos. As memórias e os antigos usos foram temporariamente sepultados no “cemitério surrealista e extravagante” da Praça do Ferreira, a que nos aponta o escritor. Apesar das mudanças contextuais, a pesquisadora Vânia Lopes (2004) alerta que, embora predominasse uma visão crítica sobre a reforma, o discurso ideológico, disseminado por alguns meios de comunicação, reforçava a intervenção de José Walter como um fator positivo para a vida urbana, trazendo inovações no aspecto paisagístico de beleza, modernidade e humanização (LOPES, 2004: 55).

Conforme a pesquisadora, “a estética figurada pelo concreto, de fato produziu efeitos negativos do ponto de vista da experiência visual proporcionada por aquele espaço” e para seus contumazes usuários, o projeto visava impedir o acesso do povo ao logradouro, proibindo seus ajuntamentos e impedindo a voluntária comunicação entre seus freqüentadores (LOPES, 2004: 22).

A praça, pouco freqüentada, tamanha sua situação de isolamento, mais se assemelhava a um “deserto”. Seus antigos usuários, aos poucos passaram a ser vistos como suspeitos, subversivos e vadios perante as autoridades disciplinadoras, tornando- se vulneráveis às agressões e abusos da polícia autoritária, a serviço do regime

ditatorial. Nada de protesto! Nada de “baderna”! O moderno urbanismo implementado nestes anos de chumbo, compôs uma Fortaleza fragmentada.

Contraditoriamente, durante a gestão de José Walter foram construídas várias praças na cidade. Entre os anos de 1967 e 1968 haviam sido fundadas nove praças pelo gestor, sendo inauguradas durante os anos de 1970 a 1971, mais nove delas, totalizando ao todo, 18 logradouros construídos. Alberto Galeno nos dá indicativos sobre as demais reformas empreendidas nas Praças pelo prefeito:

Alencar deu-nos mais algumas notícias. Disse-nos do sucedido com o Passeio Público e a General Tibúrcio, cercados de grades para que o povo não tivesse ingresso. E, o que era mais grave, com a Praça Clóvis Beviláqua, transformada pela companhia de água e Esgotos numa imensa cisterna. Esse Zé Walter de quem o amigo falava com tanta familiaridade, não havia dúvida, inviabilizara o que Fortaleza possuía de mais atraente: a Praça do Ferreira, a General Tibúrcio, a Clóvis Beviláqua e o Passeio Público. (GALENO, 1991: 8).

Conforme se vê nas linhas acima, além da Praça do Ferreira, outras praças também foram reformadas ao estilo do urbanismo desenvolvimentista da época, dentre as quais as Praças General Tibúrcio, Clóvis Beviláquia e Passeio Público. Através desta intervenção suas arquiteturas foram redesenhadas valorizando suas funcionalidades espaciais, em contraposição aos seus aspectos estéticos.

“No trabalho que vem sendo executado pela administração José Walter Cavalcante ressalta a originalidade da concepção das novas praças a qual se estende aos projetos de reforma dos logradouros antigos. Em toda parte se nota um estilo novo, que se traduz na disposição incomum dos postes e das lâmpadas, na adoção de planos elevados, na escolha de novos espécimes de nossa flora, no desenho dos jardins e na utilização de uma série de elementos ornamentais antes desconhecidos (...)” (matéria jornalística publicada numa edição especial do Correio do Ceará intitulada “Avenidas e parques estão fazendo de Fortaleza uma cidade jardim” Ver: Jornal Correio do Ceará, 08 dez 1968 in: LOPES, 2004: 51).

Esse conjunto de reformas desencadeadas nas praças objetivava dar à cidade a condição de “fórum moderno”. Apesar do apelo modernizador, é inegável que os logradouros mais atraentes haviam sido descaracterizados. A cidade, ao final da década de 1960, já constituía um território repleto de conflitos e contradições e suas “modernas” reformas, escondiam os contrastes e dramas, silenciados pelas intervenções

militaristas e propagandas ideológicas disseminadas nos meios de comunicação. Assistia-se à época um crescimento exorbitante do número de camelôs a abarrotar seus espaços, muitos dos quais migrantes desempregados. A pesquisadora Vânia Lopes transcreve a seguinte notícia do jornal O POVO datado de 30 de novembro de 1968:

“Um trabalho de vulto está sendo executado pela prefeitura municipal de Fortaleza, sob a inspiração de um elevado objetivo: a humanização da cidade (...) Cumprindo fielmente o plano diretor da cidade, o prefeito José Walter Cavalcante ao mesmo tempo que asfalta dezenas de quilômetros de ruas, emprega substanciais recursos na construção e reformas de praças públicas, que são, os pulmões de uma cidade. Quando se completou o primeiro ano de sua administração, o prefeito inaugurou cinco novas praças, enquanto outras tinham seus projetos elaborados pela SUMOV (...) (O Povo de 30 de Nov. de 1968 in LOPES, 2004: 28)

Nesta onda de “humanização”, além de reformadas, foram fundadas mais 18 praças, concentradas nos seguintes bairros: Parquelândia, Jacarecanga, Porangabuçu, Amadeu Furtado, Fátima, Dionísio Torres, Messejana, Vila União, Alagadiço, Mondubim, Jardim das Oliveiras e Conjunto José Walter (CUNHA, 1990). É evidente, pelo contexto revelado, as várias contradições que esta década de 1960 trouxe para a urbanização, incluindo desde suas reformas e modificações no aspecto físico da urbe às insatisfações populares.