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6 PATRIMÔNIO: A PRESENÇA DISCRETA NAS CARTAS DE ARANHA

6.1 Patrimônio: que ideia é essa?

O termo “patrimônio” está atrelado a uma série de conceitos e sentidos os mais diversos. Ao longo do tempo, a despeito de manter suas múltiplas significações, foi sendo moldado para atender ao que se demandava em relação a valores identitários de um povo, Nação ou comunidade. (CAMARGO, 2002; D’ALESSIO, 2011; FONSECA, 2005; CHOAY, 2001), Herança material, moral, temporalidades vividas? Obras de arte, imóveis, bens materiais, cultura? Representação histórica? Testemunha viva de tempos históricos? Referência identitária de um povo? Tudo isso e, certamente, muito mais.

Marilena Chauí (2000) ressalta que o conceito de patrimônio está diretamente relacionado ao surgimento da compreensão de Estado-Nação, às ideias de unidade territorial e soberania política.

Concebida em meio às grandes turbulências da Europa no século XVIII, a ideia de patrimônio irrompe na França revolucionária, numa tentativa de salvaguardar exemplares da cultura da época, submetidos à sanha destrutiva dos revoltosos. Assim, em meio ao vandalismo que incendiava igrejas, quebrava estátuas, saqueava castelos e destruía qualquer referência ao

Ancien Régime e à aristocracia, surgia a necessidade de proteção, preservação,

reconhecimento e valorização destes mesmos elementos, representativos daquele período. O patrimônio existente deveria ser nacionalizado; desta forma, na Constituinte, que iniciou seus trabalhos em 1789, foi estabelecido que os bens da Igreja, os dos emigrantes e os da Coroa estavam à disposição da Nação (FONSECA, 2009). Os passos seguintes foram o recolhimento

de objetos e obras de arte, guardados em depósitos designados como museum, a criação de comissões para inventariar esses bens, para proteger os monumentos, e a criação de normativas para se inventariar, classificar e administrar todo esse material.

Segundo Fonseca (2009, p.58), “A ideia de posse coletiva como parte do exercício de cidadania inspirou a utilização do temo patrimônio para designar o conjunto de bens de valor cultural que passaram a ser propriedade da nação, ou seja, do conjunto de todos os cidadãos”. A autora complementa: “A construção do que chamamos de patrimônio histórico e artístico nacional partiu, portanto, de uma motivação prática – o novo estatuto de propriedade dos bens confiscados – e de uma motivação ideológica – a necessidade de ressemantizar esses bens”. A apropriação, objetivada com a nacionalização dos bens da aristocracia francesa, ia muito além do âmbito da comunidade, do público: passava agora ao contexto pessoal, colocando cada cidadão como participante ativo da história, elaborando laços afetivos, um assenhoramento histórico e cultural, a construção de uma memória coletiva e uma identidade nacional.

Eventos de grande potencial destrutivo, como as grandes guerras mundiais, que destroem monumentos e objetos de valor cultural concreto, levam consigo os elementos de agregação de um povo, retirando-lhes as referências, o elo que os une e fortalece. Este entendimento, nascido na Revolução Francesa, vem evoluindo ao longo do tempo e permitindo a elaboração de normativas capazes de conceituar e proteger, salvaguardar o patrimônio em suas mais diversas representações – histórica, artística, cultural, natural, monumental, documental, entre outras. - categorizadas a partir de estudos sobre o tema. Desta forma, a partir da década de 1930, surgiram as Cartas Patrimoniais104, como resultado de conferências mundiais realizadas com o intento de traçar novos caminhos e posturas que assegurassem o melhor uso do legado identitário de cada Nação, grupo, cultura.

As Cartas Patrimoniais, documentos adotados por diversos organismos internacionais, são compromissos e recomendações que orientam as políticas patrimoniais. No entanto, a despeito de instituírem um padrão de atuação internacional, estes documentos não possuem poder de

104 Cartas Patrimoniais são diretrizes para a conservação, manutenção e restauro do patrimônio histórico, sem poder de lei, reunidas em um conjunto de recomendações de caráter internacional resultantes de amplos debates coordenados por organismos internacionais e governamentais. Durante a Era Vargas foram publicadas duas Cartas: Carta de Atenas (1931), que tratava da administração, valorização, restauração dos monumentos; Carta de Atenas (1933), que propunha um modelo de urbanização baseado em 4 funções a ela atribuídas: morar, trabalhar, recrear e circular.

legislação, mesmo assim, tratam das formas de ação sobre o patrimônio em suas categorias (GHIRARDELLO, SPISSO, 2008; SOUSA, 2013; CAMARGO, 2004).

O ideário do Patrimônio, então, não caminhou ao largo de questões políticas e ideológicas, ao contrário, serviu de apoio para o firmamento dos Estados-nações no mundo contemporâneo. Assim, tinha como funções simbólicas: a) reforçar a noção de cidadania; b) [...] contribuir para objetivar, tornar visível e real, essa identidade real que é a nação [...]; c) [...] legitimar o poder atual; d) conservar os bens por seu alcance pedagógico, a serviço dos cidadãos (FONSECA, 2009 p.59).

Cabe destacar que, além da relação próxima com as questões políticas, o patrimônio, desde cedo foi associado ao turismo, citado como pretexto para a conservação dos bens de interesse histórico e cultural, reforçada pela possibilidade de algum ganho financeiro. Aspectos dos quais tanto França quanto Itália souberam se beneficiar.

Refletir sobre o patrimônio é uma tentativa de manter “vivas” características de uma cultura, um passado, relações afetivas, coisas que remetem a histórias pessoais, à memória. Essa reflexão, que conduz à identidade nacional, remete ao passado, ao presente, e - por que não? – ao futuro, um futuro que se renova e visita diuturnamente o tempo pretérito, ansiando por conexões, raízes, tradições – inventadas ou não – e referências.

As ponderações acerca da legitimidade e relevância do que se designou de bens patrimoniais, fossem eles culturais, históricos, artísticos e/ou naturais, já vinham ocorrendo em âmbito internacional, antes que o conceito aportasse no Brasil.

É importange destacar que os aspectos econômicos do uso do patrimônio, do turismo e da propaganda, inicialmente, não se apresentavam com a mesma força que na atualidade. Não se desconhece a intenção de lucro dos que empreendiam nessa seara, no entanto, os aspectos políticos, tinham maior relevância nesse processo, não só no Brasil, mas também na Europa, por exemplo. Desta forma, imbuído deste espírito de elaboração de sua própria identidade, o Brasil começou a trilhar os caminhos do Patrimônio e, em seguida, do Turismo e da Propaganda. Sao tempos e abordagens diferentes, pois também o são suas demandas, no entanto, a partir do Governo Vargas, as três áreas se encontram sob o direcionamento dado pelo ideário varguista de valorização da história nacional, com o objetivo de se estabelecer uma identidade nacional que atendesse a seus interesses. É, certamente, a criação do “novo homem brasileiro”, o encontro da “alma brasileira”, do “verdadeiro Brasil”, expressões

largamente utilizadas para representar aquilo que se buscava, principalmente durante o Estado Novo.