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Pensamento filosófico e literário: particularidades nos espaços de fala alemã

Como acontecia em toda a Europa, para além de um conjunto de ideias estabelecidas, o Iluminismo alemão pode ser considerado um modo de vida, uma maneira de pensar, que, de certa forma, representava o anseio da classe burguesa por mudanças não apenas políticas e econômicas, mas também intelectuais e filosóficas que proporcionariam liberdade de pensamento e expressão. De acordo com Horkheimer e Adorno (1969), lentamente, a queda dos regimes monárquicos e o consequente fortalecimento e ascensão da burguesia local fizeram possível, dentro da perspectiva iluminista, o fim das “trevas culturais” de modo que, com auxílio da razão, o homem desejava “escapar” da tutelagem em que por própria culpa se deixara prender (referindo-se à Idade Média). Em resposta à pergunta: o que é Iluminismo? (esclarecimento), Immanuel Kant (1724-1804), um dos grandes expoentes desse movimento, afirma:

O esclarecimento (Aufklärung) é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento (KANT, 1974, p. 100).

Nesse período, os territórios de língua alemã passavam por um momento de produção literária particularmente intensa, muito profícua na Literatura e na Filosofia. E, a partir do século XVIII, começaram a surgir grandes intelectuais de nacionalidade alemã, que, segundo Bornheim (1975), seriam gênios fundadores de uma nova cultura: Johann Joachim Winckelmann (1717-

25 O termo nações germânicas refere-se ao espaço herdado do Sacro Império Romano Germânico que foi

subdividido em principados e reinos logo após a paz de Wesfália em 1648. Segundo Beiser (1987), apesar da divisão territorial e da relativa autonomia dos principados e reinados, a língua foi um elemento comum entre os mesmos, daí se justificar o termo nações germânicas.Desta subdibvisão territorial e administrativa merece destaque a

1768), Johann Gottfried Herder (1744-1803) e Immanuel Kant (1724-1804), que proporcionaram ao Aufklärung26 alemão uma conotação singular.

Além desses, Abbagnano (2000, p. 20) cita outros, como Alexander Gottfried Baumgarten (1714-1762) e Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), considerado por muitos como o “[...] maior homem de letras da ilustração alemã [...]”. Mencionamos ainda: Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716), Christian von Wolff (1679-1754), Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), Johann Georg Hamann (1730-1788) e Wilhelm von Humboldt (1767-1835).

Embora fragmentados política e socialmente, os territórios prussianos possuíam semelhanças culturais que inspiraram os críticos do movimento francês a buscarem uma identidade cultural e uma consciência nacional. Para Abbagnano (2000), a preservação da tradição cultural, histórica e linguística do espaço de fala alemã possibilitava criar uma identidade adequada às necessidades e aos interesses do poder e da população local. Nesse sentido, Bertrand (2004) escreve:

Desde a Guerra dos Trinta Anos, da qual aos poucos se recuperava, a Alemanha era culturalmente dominanda pela França. Só com a ascensão da Prússia com Frederico, o Grande e o renascimento literário da segunda metade do século XVIII, a Alemanha começou a libertar-se da subserviência à cultura francesa (BERTRAND, 2004, p. 372).

De modo muito peculiar, a rejeição ao domínio intelectual francês e a esperança no futuro nacional proporcionava ao Aufklärung certa identidade que vinha acompanhada de um afastamento não somente da França, mas também de toda a Europa renascentista. Segundo Moura (2005, p. 97), “Ao se desligar do movimento europeu do Renascimento, a Alemanha deixará de se alimentar de uma das fontes da cultura ocidental, que é a cultura romana [...]”.

Para Ricotta (2002), o desenvolvimento do Renascimento tal como aconteceu na Itália foi impossível na Alemanha, primeiro, devido a Lutero e, depois, devido a Winckelmann. Lutero questionou a verdade advinda da razão preconizada pelo racionalismo, colocando em dúvida todas as doutrinas que nela se fundamentavam. Além disso, destacou-se pela tradução da Bíblia para o alemão, podendo esse fato ser analisado como um importante marco na valorização da cultura e da língua alemã.

Já Johann Joachim Winckelmann (1717-1768) foi historiador de Arte desde a primeira juventude, considerado o grande idealizador desse afastamento. Opondo-se à tendência iniciada

na Renascença europeia, o Aufklärung postulava o reconhecimento da especificidade dos gregos frente aos romanos e greco-romanos. Dedicando-se ao estudo da cultura Grega, a originalidade de sua obra está no estabelecimento de distinções entre Arte Grega, Greco-Romana e Romana, enaltecendo os valores essencialmente gregos. Bornheim (1975, p. 12) escreve: “[...] os alemães vão encontrar o seu centro em Atenas e excluem Roma”.

Winckelmann acreditava que a cultura greco-romana, reverenciada pela Renascença Italiana27, surgiu pelo contato dos gregos com as diversas culturas constituintes do Império Romano28, levando a uma fusão de valores e à consequente formação de uma nova cultura, diferente da cultura grega. Em 1755, escreve Gedanken über die Nachahmung der Griechischen Werke in der Malerei und Bildhauerkunst (“Reflexões acerca da imitação das criações gregas na arte da pintura e escultura”), obra em que descreveu a Arte dos antigos gregos com atributos de “nobre simplicidade e serena grandeza”. Winckelmann (1975, p. 39-40) escreve “[...] o único meio de nos tornamos grandes e, se possível, imitáveis, é imitar os antigos”.

Se para Winckelmann a Grécia era uma imagem de perfeição, segundo uma perspectiva que valoriza o caráter luminoso, solar, apolíneo da Arte grega antiga, foi a retomada dessa concepção apolínea por Goethe e Schiller, ampliando o campo de visão para um território que abrange também a Literatura, que estabeleceu o modelo da cultura grega como ideal de beleza (SÜSSEKIND, 2008c, p. 76-77).

Segundo Borhheim (1990), Winckelmann forneceu ao Classicismo seu ideal estético, sendo considerado um dos fundadores da Arqueologia científica moderna; teve influência decisava no surgimento do Classicismo na Alemanha e no desenvolvimento do Neoclassicismo (1750-1830) do século XVIII. Em 1764, Winckelmann escreveu Geschichte der Kunst des Altertums (“História da arte da antiguidade”), obra considerada, por Werle (2000), um dos principais monumentos de prosa clássica europeia, que, conforme se sabe, forjaria uma nova visão da Antiguidade Clássica.

27 Até o século XV, a Itália era o maior polo de atração de artistas em toda a Europa e o maior centro irradiador de

influência cultural e política. Contudo, sua invasão pela França, Alemanha e Espanha, entre o fim do século XV e o início do século XVI, levou à fuga de artistas e intelectuais para outros paises e à desestabilização econômica e política. Além disso, a eclosão da Reforma Protestante colocou fim à unidade do Cristianismo e à primazia do Papado romano.

Para Szondi (1974), desenvolvendo estudos sobre História da Arte, Winckelmann inaugurou uma compreensão baseada na busca das condições de surgimento das obras “sob o céu grego”, procurando, com isso, definir um critério normativo, atemporal, um modelo a ser imitado “sob um céu diferente”. Ele escreve: “O bom gosto, que mais e mais se expande no mundo, começou a se formar, em primeiro lugar, sob o céu grego” (WINCKELMANN, 1975, p. 39). Segundo Bornheim (1975, p. 12)29, embora não atacasse diretamente Roma, Winckelmann “ergue-se contra a Arte barroca, e é através desta que atinge Roma”. Baseado em preceitos iluministas defendia os princípios da moderação, simplicidade e equilíbrio contra o rebuscamento e os excessos decorativistas e dramáticos do Barroco30 e Rococó. Segundo Werle (2000):

Contra a Arte total do barroco, a Arte então em voga, Winckelmann privilegiava uma volta ao que é simples, ao que é destituído de pompa. Essa simplicidade de beleza e idealidade nobre ele encontrava justamente na Grécia antiga, principalmente na escultura. E é aqui que está a sua originalidade: ter visto uma Grécia que até então ninguém havia reconhecido desse modo. Pois costumava-se pensar a Grécia com base na ideia de um mundo greco-romano, ou seja, a partir de um mundo grego romanizado. [...] Nessa terra dividida entre inúmeros principados e ducados, imperava uma Arte absolutista e barroca. Winckelmann, tal como Lessing, defendendo uma Arte dirigida para os homens, uma Arte burguesa, que primasse pelo que é simples e não pelo que é rebuscado e tortuoso (WERLE, 2000, p. 26-27).

Enfim, o caráter geral, que antes de tudo distingue as obras gregas, é uma nobre simplicidade e uma grandeza serena tanto na atitude como na expressão. Assim como as profundezas do mar permanecem sempre calmas, por mais furiosa que esteja a superfície, da mesma forma a expressão nas figuras dos gregos mostra, mesmo nas maiores paixões, uma alma magnânima (WINCKELMANN, 1975, p. 53).

Winckelmann criticava também a cópia da natureza nos quadros dos pintores holandeses, em franca decadência quando comparada às obras-primas da Antiguidade grega. Diferenciando “imitação” de “cópia”, o pensador questionava a maneira de compreender a noção tradicional, como "imitação da natureza". Winckelmann escreve:

A imitação do belo na natureza ou diz respeito a um objeto único ou reúne as observações sugeridas por diversos objetos realiza um todo único. O primeiro procedimento significa fazer uma cópia parecida, um retrato; é o caminho que leva às

29 Considerções escritas para o prefácio da obra de Winckelmann (1975). 30

Embora o Barroco tenha assumido diversas características ao longo da história, seu surgimento está intimamente ligado à Contra-Reforma italiana, em que a Arte foi utilizada como divulgadora dessa “reforma católica”, ao passo

formas e figuras dos holandeses. O segundo é o caminho que leva ao belo universal e às imagens ideais desse belo; foi o que os gregos trilharam (WINCKELMANN, 1975, p. 47).

Essa exaltação à cultura grega fez surgir o Helenismo31, que caracterizaria o Aufklärung e alcançaria no período do Classicismo de Weimar seu apogeu32. De acordo com Süssekind (2008c, p. 74), “As noções de nobre simplicidade e calma grandeza, identificadas como o ‘traço geral preponderante das obras-primas gregas’, seriam retomadas posteriormente no contexto do Helenismo que marcou a cultura”. Assim, o Aufklärung foi se construindo por um renascimento intelectual, que, para Abbagnano (1994), teve sua originalidade pela forma lógica com que apresentava temas e problemas, que se transformariam em um método de fundamentação característico da Filosofia alemã.

Anterior a Winckelmann, precursor desse renascimento intelectual, o filósofo Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716) tornou-se, academicamente, muito influente na Alemanha do século XVII e, como precursor do pensamento iluminista alemão, estabeleceu os princípios da razão:

Nossos raciocínios estão fundados em dois grandes princípios, o da contradição, em virtude do qual julgamos que é falso o que ele implica, e verdadeiro o que é oposto ou contraditório ao falso. E o de razão suficiente em virtude do qual consideramos que nenhum fato pode ser verdadeiro ou existente sem que haja uma razão suficiente para que seja assim e não de outro modo, ainda que com frequência estas razões não possam ser conhecidas por nós (LEIBNIZ, 2004, p. 136-137).

Para Dilthey (1947), a missão do filósofo Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716) foi elevar a cultura de sua época à consciência de si mesma. Adepto do Racionalismo, Leibniz acreditava nas possibilidades da razão humana, afirmando que o homem teria condições de superar suas próprias limitações e criar um mundo perfeito, uma vez que Deus, como arquiteto, não criaria um mundo imperfeito. Essa afirmativa fundamentava-se na crença de certa harmonia universal que se explicaria em diferentes níveis, definindo-se como a pluralidade que se orienta por uma unidade. Seu universo, repleto de expressões como semelhança e diversidade,

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Embora a definição do termo Helenismo seja um pouco complexa, nesta pesquisa, utilizamos a definição proposta por Herder na obra Idéias para uma Filosofia da História da Humanidade. A obra conceitua Helenismo como a mistura de elementos das culturas gregas e orientais.

simplicidade e multidão, unidade e variedade, chega rapidamente à identificação de Deus como responsável por uma harmonia universal. Em Teodicéia, escreve:

Esta harmonia faz com que as coisas conduzam à graça pelas próprias vias da natureza, e que este globo, por exemplo, deva ser construído e reparado pelas vias naturais nos momentos requeridos pelo governo dos espíritos, para castigo de uns e recompensa de outros (LEIBNIZ, 2004, p. 148).

Como Teólogo, Leibniz acreditava ser possível explicar racionalmente o mundo sem rejeitar as concepções cristãs sobre Deus e a criação do homem. Buscou comprovar a compatibilidade entre fé e razão, Filosofia e Teologia, simplicidade e pluralidade, com uma racionalidade finalista e imutável, já que nada aconteceria contra a vontade do Senhor. Reconhecendo a razão o bem e o divino como estrutura essencial do mundo, Leibniz (2004, p. 138) escreve: “[...] não há mais que um Deus e este Deus é suficiente”.

Sendo Deus a razão última das coisas, Ele constitui-se de uma substância única, universal, necessária, perfeita, fonte das existências e das essências, e é, em última reflexão, a unidade primordial. Leibniz (2004, p. 139) afirma: “Só Deus é a unidade primitiva ou substância simples originária, da qual todas as Mônadas criadas ou derivadas são produções”. Estabelecendo a Metafísica da Mônada, forneceu, ao Idealismo alemão, a ideia de “unidade”, incorporada pelos românticos alemães e encontrada também no pensamento de Alexander von Humboldt.

Leibniz (2004, p. 153) infere: “Monas é a palavra grega que significa unidade ou o que é uno”. Opondo-se a Descartes, defendeu a tese de que não há duas substâncias, material e espiritual: o Ser é Uno, só havendo uma substância: a espiritual. Leibniz (2004, p. 131) escreve: “A Mônada de que aqui falaremos não é outra coisa senão substância simples, que entra nos compostos, simples, quer dizer, sem partes”. Essas Mônadas seriam os verdadeiros átomos da natureza: os elementos das coisas, que comporiam toda a realidade material; partículas metafísicas invisíveis, de natureza espiritual, regidas por uma harmonia preestabelecida e guiada por uma Inteligência Divina: “só poderiam começar e terminar de uma só vez” (LEIBNIZ, 2004, p. 131).

Essas substâncias simples representariam a multiplicidade do universo, quase como que “amostras arquitetônicas”, sendo, cada espírito, uma pequena divindade em seu domínio. Leibniz (2004, p. 132) escreve que: “É preciso mesmo que cada Mônada seja diferente de cada uma das

[...] toda substância é como um mundo completo e como um espelho de Deus, ou melhor, de todo o universo expresso por cada uma à sua maneira, quase como uma mesma cidade é representada diversamente conforme as diferentes situações de quem o olha (LEIBNIZ, 2004, p. 18).

Dentre essas Mônadas, distinguem-se as almas: espelhos vivos ou imagens do universo das criaturas, capazes de conhecer o sistema do universo, ou seja, mônadas cuja percepção seria dotada de memória: “[...] que se chame de almas só aquelas [mônadas] cuja percepção é mais distinta e acompanhada de memória” (LEIBNIZ, 2004, p. 134). Acerca da realização humana, Leibniz, em seu Racionalismo finalista, considerava que esta independe da vontade humana: “[...] como nosso senhor e causa final, deve constituir todo o fim de nossa vontade e o único que pode fazer nossa felicidade” (LEIBNIZ, 2004, p. 139).

Herdando de Leibniz certo otimismo e a concepção de um Racionalismo finalista, para Abbagnano (1994, p. 20), “O objetivo final da Filosofia é, segundo Wolff, iluminar o espírito humano [...] uma finalidade prática, que é a felicidade humana”. Para o autor (1994, p.19-20), “[...] objetivo de uma razão que pretende justificar-se por si e reencontrar em si próprio, isto é, no próprio procedimento analítico, o fundamento da sua validez”. Para Abbagnano (1994):

O ideal de uma razão que tem o direito de atacar, com as suas dívidas e os seus problemas o mundo inteiro da realidade é transformado pelo Iluminismo alemão num método de análise racional a um tempo cauteloso e decidido que avança demonstrando a legitimidade de cada passo e a possibilidade intrínseca dos conceitos de que se serve o seu fundamento (Grund) (ABBAGNANO, 1994, p. 19).

Segundo Abbagnano (1994, p. 19), “O fundador deste método foi o filósofo Christian von Wolff (1679-1754) que, sob este aspecto, é o representante máximo do Iluminismo alemão”, exercendo uma influência extraordinária sobre a cultura da época. Já Alexander Gottfried Baumgarten (1714-1762) foi discípulo de Wollf e autor de Metaphysica, posteriormente adotado por Kant. Segundo Abbagnano (1994, p. 30), Baumgarten, além de fundador da estética germânica33, postulou que “[...] a teoria do conhecimento se divide em duas: a estética, que tem

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Segundo Abbagnano (1994, p. 30), “[...] Baumgarten, introduziu o termo na Alemanha. Kant, que inicialmente foi também um seguidor da Filosofia de Wolff, utilizou livros de Baumgarten como texto de aula. Aproveitou, entretanto, o termo Estética, como denominação para o estudo gnosiológico da sensação e de suas formas

por objetivo o conhecimento sensível, e a lógica que trata do conhecimento intelectual [...]”, pressuposto utilizado por Alexander Von Humboldt. Segundo Abbagnano (1994, p. 31):

Os resultados fundamentais da estética de Baumgarten são substanciavelmente dois: primeiro o reconhecimento do valor autônomo da poesia e, em geral, da atividade estética, [...] segundo o reconhecimento do valor de uma atitude ou de uma atividade humana que era considerada inferior e, portanto, a possibilidade de uma mais completa valoração do homem na sua totalidade (ABBAGNANO, 1994, p. 31).

Nessa efervecência cultural, não poderíamos deixar de mencionar Immanuel Kant (1724- 1804)34, que, movimentando-se no mundo dos sentidos, cria teorias e observações que revelam um profundo conhecimento acerca das pessoas e da natureza. Em sua trajetória, é notório seu interesse pelo “conhecimento do mundo”, de modo que, por décadas, ministrou dois cursos em Könisberg: Geografia Física, iniciado no verão de 1756 e Antropologia, a partir de 1772, sempre no semestre de inverno, cujos manuscritos (utilizados nos cursos entre 1772 e 1796) resultariam na obra intitulada Antropologia sob o ponto de vista pragmático.

Característica da fase pré-critica do pensamento kantiano, a obra permeou o nascimento das ciências sociais (final do século XVIII), inserindo-se de modo mais amplo no Humanismo presente no pensamento europeu, além de, na Alemanha, ser concomitante ao Sturm und Drang. Como uma doutrina do conhecimento do ser humano, sistematicamente composta, sua Antropologia, definida sempre sob o ponto de vista pragmático, preocupava-se com a investigação “do que ele [ser humano] faz dele mesmo, ou pode e deve fazer de si mesmo como ser que age livremente" (KANT, 2006, p. 21).

Aceitando que a natureza humana era, ao menos em parte, produzível por si mesma através da ação livre, defendia que o ser humano deveria ser estudado segundo suas capacidades, disposições, temperamentos, idade, sexo, etnia e cultura. Acerca dos povos, Kant (2006, p. 207) escreve: “são apenas muitas tentativas ousadas de classificar empiricamente, mais para o geógrafo do que para o filósofo, segundo princípios racionais, as variedades existentes na propensão natural dos povos inteiros”.

Caracterizando sua Antropologia35 como um estudo empírico (Beobachtung), baseado na experiência (Erfahrung)36, concordava com David Hume (1978) ao afirmar que o único fundamento sólido que podemos dar à ciência do homem é a experiência e a observação. Incluindo observações da vida comum, a antropologia pragmática abrangia a práxis da vida e a experiência comum: a vida do homem na totalidade, que, juntamente com a Geografia Física, possibilitaria o conhecimento do mundo. Esse “conhecer o mundo”, protagonizado nas aulas de Kant, pressupunha o conhecimento de si, do outro, e de sua participação como cidadão no mundo, cujo objetivo era promover “o esclarecimento para a vida comum” (Aufklärung fürs gemeine Leben), característica semelhante ao cosmopolitismo presente no pensamento de Humboldt e dos primeiros românticos.

A pretensão de Kant era que suas palestras pudessem ser compreendidas por todos os homens: a todos os cidadãos do planeta, “[...] pois então elas seriam examinadas perante a experiência da própria vida, já que este âmbito de conhecimento deveria servir de esclarecimento para a vida comum e promover a ‘ciência comum utilizável’” (KANT, 2006, p. 12-13). Para tanto, Kant (2006) afirma que existiriam duas formas de estudo: na escola e no mundo; na escola, aprender-se-ia o conhecimento escolástico, pertencente aos professores profissionais; já nas relações (Umgang) com o mundo se aprenderia o conhecimento popular, pertencente a todo ele: o conhecimento do mundo.

Esse conhecimento popular seria projetado pela antropologia pragmática para ser útil não apenas para a escola, mas também para a vida através da qual o aluno talentoso é apresentado ao palco do seu destino: o mundo. De modo sistemático, esse conhecimento pragmático poderia ser realizado por meio de História, biografia, teatro, novelas; no entanto, somente as viagens levariam à ampliação da Antropologia. Kant defende que:

35 Kant teve um papel central no surgimento da Antropologia enquanto disciplina acadêmica moderna, entretanto,

sua concepção difere tanto da de muitos de seus contemporâneos quanto de seus sucessores. De forma significativa, a Antropologia kantiana era um campo de estudo único que não deve ser automaticamente igualado a Antropologias não kantianas, mesmo porque sua própria concepção de Antropologia se transformou ao longo do tempo.

36 Kant (2006) descreve seu sistema filosófico dizendo que sua tarefa era responder às perguntas: o que posso

conhecer? (metafísica); o que devo fazer? (moral); o que devo esperar? (religião); e, ao acrescentar uma quarta pergunta: o que é o homem?, afirmava ser esta pertencente à Antropologia. Kant pesquisou sistematicamente nas três críticas as condições de possibilidade dos juízos teóricos, práticos, estéticos e teleológicos. Porém, simultaneamente, pensava no agente capaz de executar esses juízos, sendo essa a questão que o levaria a sustentar seu trabalho de

Viajar ainda que seja apenas pela leitura de relatos de viagens, é um dos meios de se