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Para tentar responder à pergunta “quem somos nós?” em um contexto de rápidas mudanças políticas e culturais ou “de qual passado nós gostaríamos de ser herdeiros?”, os americanos recorreram àquele pretérito que acreditavam ter sido plantada a sua “verdadeira raiz”: o que teria dado origem ao povo excepcional no qual haviam se convertido. Quando se institucionalizou um feriado como o Thanksgiving e criou-se uma memória sistemática sobre os peregrinos e o Mayflower por meio de produções artísticas e culturais, ficou claro que o passado escolhido foi o da colônia da Nova Inglaterra.

Esta memória baseia-se na chegada dos chamados peregrinos (Pilgrim Fathers), que fugiam das perseguições religiosas na Inglaterra. Descontentes com a reforma religiosa que consideravam moderada e acreditando que a Igreja não conseguiu se livrar dos dogmas do catolicismo e da corrupção, os dissidentes se autodenominavam puritanos, já que queriam “livrar a Igreja inglesa das práticas católicas romanas e ‘purificá-la’ mediante eliminação da

221 GINZBURG, Carlo. Medo Reverência Terror - Quatro ensaios de iconografia política. São Paulo: Cia das

hierarquia de bispos e da simplificação do ritual “222

. Embora estes puritanos não se considerassem seguidores de João Calvino, uma vez que acreditavam que liam a Bíblia de uma maneira própria, em uma perspectiva histórica, sua interpretação da Bíblia pode ser chamada de calvinista223, uma vez que acreditavam na doutrina da predestinação e que a partir dela deviam se esforçar para viver rigorosamente de acordo com a vontade de Deus e criar uma comunidade que se espelhasse nos primeiros cristãos224.

O rei James expulsou um pequeno grupo de puritanos radicais, chamados separatistas (porque queriam se separar da Igreja, e não apenas purificá-la), que se refugiaram na Holanda, e, após alguns anos, decidiram migrar para América225. Assim, em 1620, um grupo de 101 pessoas partiu a bordo do Mayflower rumo à Virgínia. Por conta do mau tempo e das condições precárias de navegação, o navio aportou mais ao Norte, na região da Nova Inglaterra (Plymouth e Massachusetts Bay) 226

, em Cape Cod. Ainda dentro da embarcação, 41 homens adultos (entre puritanos e não puritanos - os strangers) assinaram o Mayflower Compact227, um pacto de que seguiriam leis justas e iguais, que “[...] é sempre lembrado pela historiografia norte-americana como um marco fundador da ideia de liberdade, ainda que o documento dedique longos trechos à glória do rei James da Inglaterra” 228. Para Peter Gardella, este documento é responsável por fundar religião civil americana.

“[...] The effect of Compact was purely political: it bound Separatists and non-Separatists alike into a “civill body politick”, able to elect a governor and to make laws. As the statement of a nondenominational government acting “in the name of God” the Mayflower Compact became a founding document of American Civil Religion.”229

Entre os puritanos que migraram para a Nova Inglaterra estava William Bradford, que escreveu, entre os anos de 1630 e 1651, um manuscrito detalhado em que descreve todos estes acontecimentos e os primeiros anos na colônia. O texto, de 270 páginas divididas em

222 SELLERS, Charles; MAY, Henry; McMILLEN, Neil. Uma Reavaliação da História dos Estados Unidos.

Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1990. Pág. 24.

223 MILLER, Perry. Errand into the Wilderness. New York: Harper & Pow, 1956. Pág. 49.

224 SELLERS, Charles; MAY, Henry; McMILLEN, Neil. Uma Reavaliação da História dos Estados Unidos.

Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1990. Pág. 24.

225 GARDELLA, Peter. American Civil Religion: What Americans Hold Sacred. New York, Oxford University

Press, 2014. Pág. 32.

226 FERNANDES, Luiz E.; KARNAL, Leandro; MORAIS, Marcus V.; PURDY, Sean. História dos Estados

Unidos- das origens ao século XXI. São Paulo: Ed. Contexto, 2011. Pág. 46.

227 KUPPERMAN, Karen O. (Org.). Major Problems in American Colonial History. New York: New York

University Press, 2000. Pág. 85.

228 FERNANDES, Luiz E.; KARNAL, Leandro; MORAIS, Marcus V.; PURDY, Sean. História dos Estados

Unidos- das origens ao século XXI. São Paulo: Ed. Contexto, 2011. Pág. 46.

229 GARDELLA, Peter. American Civil Religion: What Americans Hold Sacred. New York, Oxford University

dois livros, ficou conhecido por diversos nomes: The history of Plymouth Plantation, History of the Plantation at Plymouth e William Bradford’s Jounal. O autor nunca fez nenhuma tentativa de publicá-lo e o deu ao seu filho que, por sua vez, o deu ao seu neto. O manuscrito foi emprestado ao longo dos anos a muitas pessoas, sendo, em 1669, referenciado por seu sobrinho, Nathaniel Morton, em seu livro New England´s memorial e, posteriormente, o reverendo Thomas Prince usou uma parte em seu livro Chronological History of New England, em 1736.

De acordo com o editor William T. Davis, na introdução à edição de 1908, Prince deu o manuscrito à biblioteca da Nova Inglaterra. No tempo em que ficou na biblioteca, o livro foi referenciado por William Hubbard em History of New England e por Thomas Hutchinson, 1767, em History of Massachusetts230.

Não se sabe ao certo o que teria acontecido ao manuscrito depois disto. Ele desapareceu no final do século XVIII e assim permaneceu até ser encontrado na biblioteca de Londres, por um bispo, em 1855. Davis sugere que Hutchinson pode tê-lo levado à Inglaterra quando o usava em sua pesquisa231

. Outras fontes, como um artigo na Revista Life, em 1946, sugerem que o manuscrito foi roubado por soldados britânicos que ocuparam a igreja durante a Revolução Americana. O editor Charles Deane, no prefácio da edição de 1856232, afirma que o texto foi encontrado pelo reverendo John Barry, um historiador que trabalhava com o texto no primeiro volume do seu livro History of Masschusetts. Durante sua pesquisa, Barry encontrou passagens familiares em um livro publicado em Londres, no ano de 1846, A History of the Protestant Episcopal Church in America, de Samuel Lord de Oxford. Deane escreveu ao reverendo Joseph Hunter, um dos vice-presidentes da Sociedade de Antiquários de Londres, perguntando se o documento era de fato o texto original de Bradford. Após a análise do documento, Hunter afirmou não haver dúvida da autenticidade do manuscrito233

.

Apesar da revelação, o governo britânico não se ofereceu para devolvê-lo, e enviou apenas uma cópia a Boston, em 1855. A cópia acabou publicada logo no ano seguinte e foi muito celebrada, principalmente por sua descrição do primeiro dia de Ação de Graças em Plymouth, que na época era apenas tradição regional e não um feriado nacional. A descoberta do manuscrito original gerou um debate entre estudiosos ingleses e americanos

230 BRADFORD, W. Of Plymouth Plantation. Boston: Wright & Potter Printing CO, 1908. Pág. XXX. 231 Idem, Ibidem. Pág. XXXII.

232 BRADFORD, W. Plymouth Plantation. Boston: Privately Printed, 1856. Pág. V. 233 Idem, Ibidem. Pág. VII.

sobre quem deveria ficar com o documento. A discussão se alastrou por mais 40 anos, quando o governador de Massachusetts, Roger Walcott, enviou uma petição formal a um tribunal de Londres pedindo o retorno do manuscrito. O governo britânico concordou devolvê-lo em abril de 1897. O manuscrito se encontra agora no Massachusetts State House.

O texto foi republicado, depois de um longo tempo desaparecido, um pouco antes da produção das pinturas que analisamos e isto é um fato relevante, pois acreditamos que este texto serviu como fonte de época, um programa que os pintores estudavam para produzir as imagens. Estes textos são narrativas dos eventos que são representados nas pinturas históricas.

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