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Ainda que o recorte temporal da nossa pesquisa se dê inicialmente no século XVII e em sua reapropriação durante o século XIX e embora o foco do trabalho seja a forma como o puritanismo, ainda que minoritário como prática religiosa nos anos posteriores à colonização da Nova Inglaterra permaneceu na memória, no imaginário e na retórica a ponto de influenciar escolhas políticas e decisões oficiais, é preciso que se destaque alguns eventos importantes ocorridos neste espaço de tempo preterido em nosso trabalho, ainda que de forma sintética.

O século XVIII e os movimentos políticos pela Independência corroboraram o papel que a religião civil teve na história do país, além de ter sido um período fértil para o surgimento de inúmeras correntes religiosas que buscavam seu espaço religiosa e politicamente, e de movimentos como os Grandes Despertares115.

Ainda no século XVII, surgiram, na região das Treze Colônias, uma série de vertentes religiosas, seja por migrações ou por dissidências políticas. Roger Williams, por exemplo, divergia de lideranças puritanas, como a do pastor John Winthrop, e foi preso e expulso de Boston, comprou dos indígenas o pedaço de terra onde hoje é o estado de Rhode Island116, e ele a chamou de Providence, onde se estabeleceu uma nova tradição religiosa. Era assegurada, nesta colônia, a liberdade de consciência e respeito às liberdades individuais, o que fez com que vários dissidentes e insatisfeitos, como batistas e Quacres, se mudassem para a região117.

A grande extensão do território americano possibilitou o estabelecimento de grupos de diferentes convicções religiosas. Ainda no mesmo século, chegaram católicos que

114 Idem, Ibidem. Pág. 13.

115 Os Estados Unidos são do ponto de vista religioso, uma “colcha de retalhos”. Para uma maior compreensão

dos inúmeros movimentos religiosos surgidos no país desde o começo da colonização, recomendamos alguns textos. Parte desta bibliografia foi levantada e sugerida pela prof. Dra. Eliane Moura, a quem agradeçemos. A Cultural History of Religion in America, de James Moseley; The American Religion: The emergence of Post- Christian Nation, de Harold Bloom; A Religious History of the American People, de Sidney Ahlstrom; One Nation Under God, de Marjorie Garber e Rebecca Walkowitz; American Religious History, de Amanda Porterfield; Religion in American Life, de Butler, Walcker e Balme.

116 AHLSTROM, Sidney E. A Religious History of the American People. New Haven: Yale University Press,

1973. Pág. 108.

se instalaram onde hoje se situa o estado de Maryland118. Em 1654, se instalaram em território americano os primeiros judeus, na Nova Amsterdã, entreposto comercial controlado pela Holanda, onde hoje é a Ilha de Manhattan119. No final do século XVII, foi fundada, ainda, a colônia da Pensilvânia, que se baseava nas ideias de seu fundador, William Penn, que era Quacre, e recebeu, também, inúmeros imigrantes praticantes de outras religiões, como alemães e tchecos120. Assim, o século XVII terminou com uma infinidade de crenças coexistindo neste território: puritanos, presbiterianos, católicos, quacres, batistas, anglicanos, metodistas, judeus, menonitas, além de praticantes de movimentos oriundos destas religiões.

A primeira metade do século XVIII é marcada por inúmeras guerras em todo o território norte-americano e a crescente intenção da Inglaterra de desenvolver um sistema colonial nos moldes portugueses e espanhóis, que gerou enorme resistência entre os colonos. Concomitantemente a esta instabilidade política, houve também o aumento da prosperidade material, um aumento significativo de ondas migratórias, a melhora contínua da educação e instrução formal, o que fez com que houvesse, aos olhos de muitos religiosos, uma diluição da religião, visão que era especialmente compartilhada pelos puritanos mais fervorosos,

“[...] yet allof these colonies were pervaded by an ideology which, though increasingly secularized, was puritan at the level of both personal and social ethics.”121

Surgiram, assim, movimentos de fortes fervores religiosos, o Great Awakening, que se propagaram em ondas. O primeiro Grande Despertar ocorreu, de forma geral, entre as décadas de 1730 e 1760, e parece ter começado em áreas rurais entre imigrantes alemães que encontraram na América a abundância que lhes faltava na Europa122. No entanto, os líderes mais influentes do movimento foram o teólogo calvinista Jonathan Edwards123 e um dos fundadores da Igreja Metodista, George Whitefield. O movimento se espalhou por outras colônias, graças, em especial, a pastores itinerantes que pretendiam propagá-lo. Whitefield,

118 Idem. Ibidem. Pág. 109.

119 SILVA, Carlos E (org.). Uma Nação com Alma de Igreja. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 2009. Pág. 80. 120 Idem. Ibidem. Pág. 81.

121 AHLSTROM, Sidney E. A Religious History of the American People. New Haven: Yale University Press,

1973. Pág. 263.

122 SILVA, Carlos E (org.). Uma Nação com Alma de Igreja. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 2009. Pág. 86. 123 MAXSON, Charles H. The Great Awakening in the Middle Colonies. Chicago: The University of Chicago

por exemplo, em 1738, realizou um circuito entre a Filadélfia e Nova York, além de ter ido até a Geórgia, em 1739, e as colônias do Sul, em 1740124.

De forma geral, o Grande Despertar teve duas vertentes principais: uma mais emocional, que procurava reavivar a religião por meio de uma experiência interior de salvação125, e outra mais racionalista, ligada a ideias iluministas e que visava a combater, de certa forma, o fervor e alguns dogmas calvinistas126. Foi criado, assim, um antagonismo entre as duas escolas, que passariam a ser conhecidas como Old Lights e New Lights127, travado em várias universidades, além de uma divisão entre os que acreditavam que este movimento restringia-se apenas à região da Nova Inglaterra, como Edwards, e os missionários que pretendiam levá-lo para outras regiões das Treze Colônias, como Whitefield128.

Embora este movimento religioso pareça contrário às ideias científicas e apesar de em vários momentos ele ter usado como justificativa a diluição da religião e o deísmo que, eles acreditavam, ganhava forças, alguns historiadores consideram o primeiro Grande Despertar como um evento proto-revolucionário às lutas pela Independência. Como afirma Sidney Ahlstrom: “The Great Awakening wrote a crucial prologue to the political and ideological transformation that characterized the dramatic years between 1763 and 1775 [...].” 129

Isto porque, segundo o historiador, tal movimento foi responsável por criar uma autoconsciência dos colonos em relação à metrópole, os líderes foram um dos primeiros a falar explicitamente das colônias como um todo, o que criou uma forte pressão por mudanças sociais e econômicas, vindos destes novos convertidos, Whitefield, por exemplo, se referia publicamente a eles pelo termo “americanos” 130. Este movimento “[...] cruzou as religiões e

124 AHLSTROM, Sidney E. A Religious History of the American People. New Haven: Yale University Press,

1973. Pág. 283-284.

125 KUPPERMAN, Karen O. (Org.). Major Problems in American Colonial History. New York: New York

University Press, 2000. Pág. 330.

126 SILVA, Carlos E (org.). Uma Nação com Alma de Igreja. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 2009. Pág. 80. 126 Idem. Ibidem. Pág. 86.

127 AHLSTROM, Sidney E. A Religious History of the American People. New Haven: Yale University Press,

1973. Pág. 288.

128 Idem. Ibidem. Pág. 289. 129 Idem. Ibidem. Pág. 349. 130 Idem. Ibidem. Pág. 349-350.

fronteiras sectárias, jogou luz sobre elas e transformou o que tinham sido até então igrejas de estilo europeu em igrejas americanas.” 131

Ao mesmo tempo em que os movimentos de reavivamento religiosos circulavam na colônia, as ideias iluministas, vindas especialmente da Europa também ganhavam força entre os colonos e foram responsáveis, pelo crescimento do desejo de emancipação. John Locke foi um dos filósofos que mais influenciou os movimentos intelectuais que lutavam pela Independência. Assim, o período de fundação dos Estados Unidos seria algo: “[...] sandwiched between the momentous religious revivals know as the first and second Great Awakenings, as in age of Enlightenment and rationalism” 132. A religião pode não ter sido a fonte de todos os ideais políticos da Revolução Americana, mas certamente, para muitos dos revolucionários, ela animou e apoiou a causa da Independência.

O debate intelectual, que tinha no Iluminismo suas bases, não era em geral anticristão ou ateu, e nem negava a Bíblia. O que foi levantado, neste período, foram discussões principalmente em torno do deísmo, que, de forma geral, enfatizava a moralidade e criticava uma visão ortodoxa da divindade de Cristo, do qual muitos eram adeptos. Como afirma Ahlstrom:

“[...] No thinker better exemplified that confidence in man's mental powers which gives the Age of Reason its names. In the eighteenth century's "Deistic Controversy", in the debate over the nature of Christian morality, and in the ongoing contest with skeptics, there gradually came to prevail among the educated classes a climate of opinion in which moderate common-sense viwes prevailed. High-ranking churchmen as well as poets, essayists, and statesmen expressed this outlook. The efect of theEnlightenment on Christian thought thus became deep and pervasive [...]”. 133

Parte dos articuladores do movimento de Independência eram adeptos de ideias iluministas e do deísmo, pregando, principalmente, a liberdade de crença para o novo país que estava surgindo. Entre eles estavam dois nomes importantes: Thomas Jefferson e John Adams.

Os chamados Founding Fathers foram os líderes políticos que assinaram a Declaração de Independência, que participaram da Revolução Americana ou que ajudaram a

131 SILVA, Carlos E (org.). Uma Nação com Alma de Igreja. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 2009. Pág. 80. 131 Idem. Ibidem. Pág. 87.

132 DREISBACH, Daniel. Reading the Bible with the Founding Fathers. New York: Oxford University Press,

2016. Pág. 111.

133 AHLSTROM, Sidney E. A Religious History of the American People. New Haven: Yale University Press,

redigir a constituição e entre eles havia membros de diferentes denominações religiosas, deístas ou que não eram ligados à religião alguma. Uma das preocupações ao redigir a constituição era assegurar a liberdade de crença para garantir que estes grupos seriam representados, o que culminou na primeira emenda: "O congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações de queixas” 134.

O texto bíblico e a religião, no entanto, permaneceram tendo papel importante na vida pública norte-americana (embora se expressem de formas diferentes nos séculos XVII, XVIII e XIX). Neste contexto, a Bíblia continuou permeando os discursos privados e pronunciamentos públicos daqueles que moldaram a nova nação e as instituições civis135, ainda que de forma diferente da dos puritanos, já que a influência iluminista era notável em outros importantes líderes, como Benjamin Franklin e Thomas Paine136. Isto não significou desconsiderar que os americanos viviam em uma cultura moldada pela tradição bíblica, afinal, mais do que qualquer outro escrito, a Bíblia era o livro mais acessível à maior parte das pessoas até este período, e, embora a religião não se manifestasse da mesma forma que anteriormente:

“[...] the founding generation wove biblical language, often whithout quotation marks or explicit references, into the various written communications of daily life, including public papers. Quotation marks and citations were unnecessary to identify the source of words so familiar to a biblically literate people.”137

Assim como a religião se expressava, na política, de maneira diferente no século XVIII, a religião civil também era entendida de forma distinta. Benjamin Franklin, já detectava o que ele chamou de “public religion”, ou seja, os valores que deviam moldar a virtude republicana138 e, como a religião civil, ela não devia ser confundida com qualquer denominação.

134https://constitutioncenter.org/interactive-constitution/amendments/amendment-i. Acesso em: 18/01/2018. 135 DREISBACH, Daniel. Reading the Bible with the Founding Fathers. New York: Oxford University Press,

2016. Pág. 124.

136 Idem. Ibidem. Pág. 124. 137 Idem. Ibidem. Pág. 160.

A Independência é essencial na complementação do que Sacvan Bercovitch chamou de mito da América139, no qual, mais claramente, é possível enxergar as expressões da religião civil, já que, neste período, foram produzidos seus próprios santos (Washington, Jefferson, Franklin, Paine, Adams, etc), que são iconograficamente popularizados como heróis ou mártires (Washington era cultuado como um líder semelhante a Moisés) e seu corpus sagrado de textos (Declaração da Independência e Constituição), cuja hermenêutica vai sendo renovada, enfatiza a dimensão sacrifical do serviço à pátria (culto cívico aos mortos), sacraliza e cultua objetos (bandeira nacional) e invoca seu maior credo: a liberdade, defendida sob o exemplo cristológico140.

O século XVIII termina com uma série de colônias independentes, que precisa construir laços de identidade que as tornasse uma nação, uma geração de novos americanos, que nasceram ingleses, mas que pelo processo de independência passaram a ter uma nova nacionalidade141. Era preciso assimilar a grande quantidade de imigrantes que chegavam à América. Além disto, do ponto de vista religioso, o país era uma colcha de retalhos, com uma infinidade de grupos religiosos. O século XIX tinha uma missão: construir uma nação que transformasse esta série de grupos heterogêneos em um único país.

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