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2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

3.1 PERCURSO TEÓRICO/METODOLÓGICO

Galeffi (2009) defende que, antes de pensarmos na dicotomia entre qualitativo e quantitativo, devemos levar em consideração o fato de estarmos acima de tudo investigando a natureza humana, com o objetivo de obter o conhecimento necessário para ser aplicado em benefício dos indivíduos e da sociedade. Visto dessa maneira, em um primeiro momento, não há separação entre o que é objetivo e o que é subjetivo. Segundo ele, essa separação é de ordem cultural, e resulta de modelos criados e sedimentados, os quais conhecemos como quantitativo e qualitativo, ou, respectivamente, "o modelo físico-matemático de realidade objetiva e o modelo complexo de realidade objetiva-subjetiva". (GALEFFI, 2009, p. 17)

No modelo quantitativo, a realidade é descrita de forma objetiva, segundo eventos que podem tanto ser observados quanto mensurados. Em outras palavras, os fenômenos são descritos de forma matematizada e geometrizada, facilitando a adoção de um rigor que se apresenta como consequência de regras, métodos e princípios inerentes a esta abordagem.

Por sua vez, o modelo qualitativo se caracteriza pela observação e análise do sujeito humano ou, como afirma Galeffi (2009, p. 27), "um saber relativo à sustentabilidade da existência humana em sua morada planetária". Esse pressuposto deixa claro o caráter subjetivo de uma pesquisa qualitativa, explicitado nas palavras de Minayo e Sanches (1993), para quem:

É no campo da subjetividade e do simbolismo que se afirma a abordagem qualitativa. A compreensão das relações e atividades humanas com os significados que as animam é radicalmente diferente do agrupamento dos fenômenos sob conceitos e/ou categorias genéricas dadas pelas observações e experimentações e pela descoberta de leis que ordenariam o social.

A abordagem qualitativa realiza uma aproximação fundamental e de intimidade entre sujeito e objeto, uma vez que ambos são da mesma natureza: ela se volve com empatia aos motivos, às intenções, aos projetos dos atores, a partir dos quais as ações, as estruturas e as relações tornam-se significativas. (MINAYO & SANCHES, 1993, p. 244).

O objetivo fundamental em uma pesquisa qualitativa não é lançar hipóteses. A base é o levantamento de questões. Ao pesquisador cabe questionar a realidade e comprometer-se a ir a campo pesquisá-la. O rigor a ser buscado, mais que rigor técnico, é o rigor ético, político.

André (2007) defende que a abordagem qualitativa da pesquisa se origina da concepção fenomenológica de conhecimento, na qual também se encontra a etnografia. Para compreender melhor essa natureza fenomenológica da etnografia, é preciso que nos detenhamos um pouco nos princípios da fenomenologia. Ao longo dos anos, vimos um movimento de categorização das ciências em duras e moles. Não raro, as primeiras – a matemática, a física etc. – são vistas como superiores às segundas – as ciências humanas. Uma das razões para essa visão de supremacia de uma sobre a outra se dá pelo caráter imputadamente objetivo dado às ciências duras e subjetivo às ditas moles. Galeffi (2009, p.20) nos traz dois termos empregados por Morin (2004, 2005), que ilustram bem este panorama: homo sapiens e homo demens. O "homem sábio" seria aquele que compreende o mundo por meio da lógica, da objetividade, dos conceitos prévios, enquanto o "homem louco" enxergaria a realidade sob a via da subjetividade.

A fenomenologia nasce como uma tentativa de dar consistência, ou rigor, às ciências humanas mediante uma atitude de reflexão sobre o conhecimento. Suas bases foram fundadas pelo filósofo e matemático Edmund Husserl, que a define, nas palavras de Galeffi (2000, p. 14), como "método da crítica do conhecimento universal das essências". Essência aqui refere-se a tudo o que é característico de um objeto, sem o qual não o reconheceríamos como tal.

Para Galeffi (2009, p. 43), a fenomenologia é "um caminho de investigação radical do que inere ao ser humano perceber, compreender e saber de si mesmo, do outro e do mundo em um fluxo ininterrupto e dialógico – fluxo transformativo".

Complementando esta definição, Martins (1992) entende a fenomenologia como "um nome que se dá a um movimento cujo objetivo precípuo é a investigação direta e a descrição de fenômenos que são experienciados conscientemente, sem teorias sobre a sua explicação causal e tão livre quanto possível de pressupostos e de preconceitos" (MARTINS, 1992, p. 50).

Trata-se, pois, de um método descritivo, que se propõe a estudar o fenômeno, termo originário do grego phainómenon – "aquilo que aparece". O rigor aparece na forma como o fenômeno é observado. Para Huserl, ao se investigar um fenômeno, é preciso que seja feita uma redução fenomenológica, ou epoché, que consiste em uma "suspensão do juízo" ou "contemplação desinteressada". Isto significa que é preciso perder, como nos ensina Galeffi (2009, p. 24 - 25), "a crença em uma verdade-mundo já consolidada e definitiva, para que o mundo seja reconquistado por nós em seu vigor originante" pois somente "deixando de lado nossa crença ingênua no mundo real e-ou ideal que se pode alcançar uma elaboração crítica que satisfaça a requisição de uma ciência articuladora da totalidade vivente".

Não obstante, epoché não deve ser confundida nem implicar em neutralidade científica. Pelo contrário, a epoché é feita de forma rigorosa. Trata-se de analisar o fenômeno como ele se apresenta, significa o "ir às coisas mesmas" de Husserl, sem se regular por concepções prévias, e deixando de lado quaisquer preconceitos ou interesses.

É possível afirmar, com base nessas considerações, que a Fenomenologia demanda um novo conceito de realidade, pois há "um abismo entre aquilo que se encontra formalizado fora de nós, e que não depende de nossa vontade [a realidade objetiva], e aquilo que se encontra dentro de nós, e que também não depende da nossa vontade [a realidade subjetiva]" (GALEFFI, 2009, p.23). A realidade exterior, objetiva, dos conceitos postos, existentes, quando exclusivamente considerada, não serve a seus propósitos. O "ir às coisas mesmas" significa observar os fenômenos com um olhar atento, crítico, consciente; se perguntar o que, por que e como, atendo-se exclusivamente ao objeto em si mesmo. A realidade passa então a ser algo subjetivo, o resultado dessa observação e dessas reflexões. É exatamente este movimento que preconiza a fenomenologia. Um movimento de ir-e-vir. É preciso ir até o fenômeno e nos voltarmos para dentro de nós, para que possamos refletir sobre o que vivenciamos. Só dessa maneira poderemos compreendê-lo e descrevê-lo com rigor.

A partir dessas reflexões, e por considerar as especificidades do objeto de investigação, a pesquisa proposta aqui será realizada considerando-se o paradigma qualitativo, um estudo de caso "do tipo etnográfico" (ANDRÉ, 2007, p. 28). É importante salientar que não se trata de uma pesquisa etnográfica e sim de uma "adaptação da etnografia à educação" (ANDRÉ, 2007, p. 28), ou seja, serão utilizadas técnicas de pesquisa tradicionalmente associadas à etnografia, tais como entrevistas, análise de documentos e observação de aulas.

A proposta de pesquisar com o outro investe uma pesquisa de inspiração etnográfica de um caráter de interatividade, do qual não pode prescindir. Isso quer dizer que ao pesquisador, a quem passo a chamar de etnopesquisador, ou etnógrafo, cabe não somente ir até o outro, mas também caminhar-com o outro, na busca de "descrever para compreender" (MACEDO, 2010, p. 9) a realidade dos atores sociais, suas ações, atos e atividades. Nas palavras de Macedo (2010), a pesquisa etnográfica enseja saber:

Como se estrutura a estrutura? Como se organiza o tecido cultural por suas múltiplas e complexas interações? Como os sujeitos imersos nos seus coletivos sociais significam e ressignificam suas ações? Pela via das ações dos atores sociais, como se dá reflexivamente a relação instituinte/instituído? (MACEDO, 2010, p. 13-14).

A busca por respostas a estas questões é geradora de tensões, uma vez que são mundos de realidades distintas que colidem e, ao fazê-lo, modificam o outro e se modificam, fazendo com que os atores envolvidos, observados e observadores, reflitam sobre suas próprias realidades, criando e recriando novas realidades.

Essas reflexões deixam clara a necessidade de um envolvimento próximo e reflexivo entre os sujeitos observador e observado. Em parte porque uma pesquisa que pretende utilizar técnicas da etnografia pressupõe uma disponibilização à apropriação e à descrição dos processos instituintes do/instituídos no sujeito observado. Nesse percurso, o etnopesquisador enfrenta, como explicita Geertz (2008, p. 7), "uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar". De onde se pode inferir que somente uma descrição apurada dessas estruturas conceituais é capaz de tomar esse estranhamento e transformá-lo em familiar.

No entanto, um envolvimento como esse pode trazer em si certas armadilhas. Se por um lado é fundamental que o etnógrafo esteja envolvido de forma intensa e extensa com o sujeito observado e com seu campo de investigações, por outro lado esse envolvimento pode fazer com que ele não consiga se distanciar criticamente dos pontos de vista expostos pelo outro no campo de pesquisa, e acabe por aderir a eles, elaborando, ao final da pesquisa, análises não necessariamente pertinentes, pondo em risco a objetividade do conhecimento produzido.

Por fim, é preciso considerar que o etnopesquisador produz um metadiscurso sobre o outro, ou seja, ele compõe sua escrita segundo sua compreensão particular acerca do discurso do outro, em uma narrativa que busca trazer, "pelas vias de uma tensa interpretação dialógica e dialética, a voz do ator social para o corpus empírico analisado e para a própria composição conclusiva do estudo" (MACEDO, 2010, p. 10). Uma escrita que parte desses pressupostos só pode ser conseguida com o adensamento da relação entre o sujeito observador e o sujeito observado, e demanda uma série de pré-requisitos: sensibilidade e rigor para perceber e descrever os "fatos miúdos" (p. 82), olhar clínico, ou seja, um modo de olhar para compreender, suspensão de pré-conceitos – epoché – para que se possa ter acesso à narrativa do outro e, assim, melhor compreendê-lo e principalmente ética, características que só podem ser atingidas com uma participação observadora e reflexiva por parte do etnopesquisador.