• Nenhum resultado encontrado

COMPLEXIDADE DE UMA FEDERAÇÃO TRINA.

2.3 O PROCESSO DE DESCENTRALIZAÇÃO NO BRA SIL

2.3.1. O perfil dos municípios brasileiros

Nos últimos sete anos, a população do Brasil cresceu a uma média anual de 1,21%. Em 2000, eram 169.799.170 milhões de habitantes, alcançando 183.987.291 milhões de habitantes em 2007. Entre os municípios, 2.601 apresentaram população inferior a 10 mil habitantes, concentrados nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste. Aqueles com até 20 mil habitantes (4.004) representaram 72,0% do total de municípios do país. Já os com mais de 100 mil habitantes eram 253, e, finalmente, apenas 14 contavam com mais de um milhão de pessoas.112

Existem, portanto, grandes desigualdades entre os municípios. Convivem, por exemplo, Municípios como São Paulo e Borá, ambos no Estado de São Paulo. O primeiro com mais de 10,6 milhões de habitantes e o segundo com cerda de 800 habitantes.

Contudo, desde a promulgação da Constituição da República de 1988, mui- tos Municípios têm assumido novas responsabilidades no plano da Federação, ocupando ele- vado patamar na condução de políticas públicas necessárias à concretização dos direitos fun- damentais. Essa assunção de encargos tem-se manifestado tanto pelo alargamento do conceito de ‘interesse local’, que delimita a esfera constitucional da atuação municipal, quanto pela transferência paulatina de atribuições estaduais e federais às instâncias locais de governo.

O conceito de interesse local se deriva do termo peculiar interesse de Cons- tituições anteriores, sendo que, desenvolvido por HELY LOPES MEIRELLES obteve clássica definição:

“Interesse local não é interesse exclusivo do Município; não é interesse pri- vativo da localidade; não é o interesse único dos Municípios. Se se exigisse essa exclusividade, essa privacidade, essa unicidade, bem reduzido ficaria o âmbito da Administração local, aniquilando-se a autonomia de que fez praça a Constituição. Mesmo porque não há interesse municipal que não seja re- flexamente da União e do Estado-membro, como, também, não há interesse regional ou nacional que não ressoe nos Municípios, como partes integran- tes da Federação brasileira. O que define e caracteriza o interesse local, ins- crito como dogma constitucional, é a predominância do interesse do Muni- cípio sobre o do Estado ou da União.”113

No que tange à ampliação das competências municipais, avultam os exem- plos de experiências bem sucedidas no gerenciamento de assuntos que os poderes locais, an-

112 Fonte IBGE, contagem populacional realizada em 2007.

113MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro, 6.ª ed., S. Paulo: Malheiros, 1993, p. 98. O autor

cita a lição de ANTONIO SAMPAIO DÓRIA, de que defluiu o clássico conceito de interesse local: Peculiar não é

nem pode ser equivalente a privativo. Privativo, dizem dicionário, é próprio de alguém, ou de alguma coisa, de sorte que exclui a outra da mesma generalidade, uso, direito. A diferença está na idéia de exclusão: privativo importa exclusão, e peculiar não. A ordem pública de um Estado é seu interesse peculiar, mas também é interes- se da Nação. Logo, não é privativo do Estado. Uma escola primária que certo Município abra é seu interesse peculiar, mas não exclusivo, não privativo, porque a instrução interessa a todo o País. O entrelaçamento dos interesses dos Municípios com os interesses dos Estados, e com os interesses da Nação, decorre da natureza mesma das coisas. O que os diferencia é a predominância, e não a exclusividade ("Autonomia dos Municípios", in Revista da Faculdade de Direito de S. Paulo, XXIV/419)

tes, não julgavam de sua competência. Essas instâncias de poder, não raramente, têm surpre- endido, ao ultrapassar suas obrigações legais para atrair investimentos, gerar empregos, fo- mentar pequenos negócios e renovar a base produtiva local. O sítio na internet do Programa Gestão Pública e Cidadania, da Fundação Getúlio Vargas, contém um banco de dados com mais de sete mil iniciativas inovadoras, especialmente na esfera municipal de governo.114

Da mesma forma, observa-se a importância crescente desses entes na exe- cução de políticas sociais nacionais, mediante gestão descentralizada, especialmente nas áreas da saúde, da educação e da assistência social. Como observa MARTA ARRETCHE: “Neste final dos anos 90, a estrutura organizacional do Sistema de Proteção Social Brasileiro vem sendo profundamente redesenhada. À exceção da área previdenciária, nas demais áreas da política social brasileira – educação fundamental, assistência social, saúde, saneamento e ha- bitação popular –, estão sendo implantados programas de descentralização que vêm transfe- rindo paulatinamente um conjunto significativo de atribuições de gestão aos níveis estadual e municipal de governo” 115.

Além disso, a maior permeabilidade das administrações locais à interferên- cia popular concorre substancialmente para a valorização do Município, nesse momento de redefinição global do papel do Estado. Muitas experiências, especialmente as que se abrem à participação popular, têm contribuído para o surgimento de formas diferentes de relaciona- mento entre governantes e governados, caracterizadas pela cooperação e pela co- responsabilidade entre o Poder público e os cidadãos na condução dos negócios da cidade. Por isso mesmo, a disposição em assumir novos compromissos, no campo das políticas que incidem sobre a qualidade de vida das pessoas, decorre, em boa medida, das pressões que os governos locais recebem da sociedade.

Após a Constituição 1988, que redesenhou o federalismo brasileiro, descen- tralizando recursos e competências, houve expressivo aumento do número de Municípios no Brasil, mas o ritmo do processo de fragmentação territorial e de implantação de novos Muni- cípios variou consideravelmente desde 1940, quando havia 1.587 unidades locais no Brasil. Passados vinte e cinco anos, alcança-se, em 1965, o total de quase 4.000 Municípios. Nas duas décadas seguintes, no entanto, entre 1965 e 1985, durante o Regime Militar, em que o país viveu o auge da centralização, inclusive tributária, praticamente cessou o processo de criação de Municípios, cujo total pouco se alterou.116

No final desse período, devido à crise econômica e financeira do Estado e ao processo de abertura do regime, vai tomando corpo uma gradual distensão dos instrumen- tos mais rígidos do poder central. Acentua-se a contradição entre a liberdade política e a de- pendência econômica dos Estados e dos Municípios em relação à União. Surge, na cena polí-

114 A coleção "20 Experiências de Gestão Pública e Cidadania" reúne os textos sobre as iniciativas finalistas de

cada um dos ciclos de premiação anual, que ocorre desde 1996. Disponível em: http://inovando.fgvsp.br. Acesso em: 20/12/2007.

115ARRETCHE, Marta Teresa da Silva. Estado federativo e políticas sociais: determinantes da descentralização.

Rio de Janeiro: Revan; São Paulo: FAPESP, 2000 p. 15.

116 BRASIL. ‘A descentralização do Estado e os Municípios’. Perfil dos Municípios brasileiros: gestão pública

tica, o movimento municipalista, contribuindo para a discussão e a criação de emendas consti- tucionais que deram início a certa descentralização fiscal.

No período de 1985 a 2001, após a redemocratização, restabeleceu-se o pac- to federativo, a partir de maior descentralização do poder político. Essa mudança resultou num estímulo à emancipação de novas unidades político-administrativas, em particular de novos Municípios. Outros dois fatores contribuíram para isso: o primeiro relativo à arrecada- ção, com a possibilidade de compartilhamento dos Fundos de Participação entre as unidades novas e as antigas; o segundo de natureza política, já que essas mudanças possibilitariam não só o surgimento de lideranças locais, mas também a acomodação de grupos rivais, resultando num novo formato de repartição dos poderes político e administrativo.117

A conseqüência imediata do estímulo institucional à descentralização foi a retomada do processo de fragmentação que, ao se acelerar e se intensificar, fez que a quanti- dade de Municípios atingisse as atuais 5.562 unidades.

No que tange à capacidade financeira, observa-se, nas últimas décadas, o aumento significativo da participação dos Municípios na divisão das receitas tributárias, mui- to embora as instâncias locais ainda dependam intensamente de recursos provenientes dos Estados e da União.118 Essas transferências constituem condição de viabilidade econômica para boa parte dos Municípios brasileiros, já que grande parcela de sua arrecadação é consu- mida com o custeio da máquina administrativa.119

117. Segundo ABRUCIO, a multiplicação de Municípios nesse período foi fortemente influenciada pela ação dos

governadores de Estado, para aumentar o seu “curral eleitoral”, visando obter mais poder na esfera estadual.

118GOUVÊA, Ronaldo Guimarães. A questão metropolitana no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Var-

gas, 2005 p.84

119 Segundo reportagem da Folha de São Paulo, “Os 5.565 (sic) municípios brasileiros gastam por ano cerca de

R$ 10 bilhões para manter atividades consideradas ‘políticas’. Mais da metade das cidades (57%) usa parcelas superiores a 21% da receita para sustentar esse ‘custo político’. Estudo inédito elaborado pelo Iedi (Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial) revela que centenas de municípios seriam absolutamente inviáveis do ponto de vista contábil se tivessem que arcar com esse ‘custo político’ com receitas próprias. Em muitos casos, salários de prefeitos e vereadores só são suportáveis porque as cidades recebem repasses da União. O trabalho mostra que há 1.609 prefeituras que têm um ‘custo político’ superior a 25% das suas receitas líquidas. (...) O Iedi fez o levantamento com base em dados oficiais enviados por mais de 5.000 municípios do país à STN (Secretaria do Tesouro Nacional). Na média nacional, essas prefeituras gastam 21,3% de sua receita com o ‘cus- to político’. No trabalho, o Iedi considerou como sendo ‘custo político’ os seguintes itens: 1) o total de gastos com o Legislativo; 2) despesas relacionadas ao Judiciário, relações exteriores e ‘essenciais à Justiça’; 3) 30% dos gastos administrativos, incluindo salários de prefeitos, secretários e funções comissionadas e; 4) 10% da despesa contabilizada na função "encargos especiais". O total desses gastos foi contraposto à receita total das cidades. Ela inclui todos os impostos cobrados (como IPTU, ISS etc.) e as transferências diretas da União. Não foram consi- deradas receitas e transferências ‘carimbadas’, como os repasses diretos para saúde e educação. (...). Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), entre 2002 e 2004, o número de servidores municipais aumentou 11,1%. As prefeituras empregam 4,6 milhões de servidores no país”. CANZIAN, Fernando. ´Custo

político come receita de municípios’. Folha de São Paulo, 01/01/2006, p.A6.

Observa-se a existência de certo consenso nos meios acadêmicos e empresariais, reforçado pela ação da mídia, contra o processo de emancipação de novos Municípios. O principal argumento alude à referida inviabilidade econômica de grande parte dos novos entes locais e ao “custo político” que eles representam para o país, o que, até certo ponto, se justifica pela análise dos números. Mas essa apreciação não parece suficiente. É preciso tam- bém considerar o ambiente político que motiva a opção pela transformação de um espaço territorial em unidade autônoma. A emancipação, na maior das vezes, representa, para a comunidade, a possibilidade de acesso a servi- ços, aos quais, de outra forma, não teriam acesso. Cf. BREMAEKER, François E.J. ‘Evolução do quadro muni-

Outra preocupação freqüente no que concerne ao perfil dos Municípios bra- sileiros é a deficiência de capacitação técnica da burocracia local. Segundo MARCELO DE FIGUEIREDO TORRES:

“O processo de transferência de responsabilidades e atribuições para os mu- nicípios tem encontrado forte estrangulamento na precária, sucateada, inefi- ciente e desmotivada burocracia pública municipal. Inequivocamente, dos três níveis de governo, o municipal é o que encontra as maiores dificuldades na implantação de uma estrutura burocrática eficiente e apta a desenvolver as importantes políticas públicas que lhe foram atribuídas pela Constituição Fe- deral de 1988.”120

O Brasil, então, se distingue pela existência de elevado número de pequenos municípios, com reduzida densidade econômica, dependentes de transferências fiscais e sem tradição administrativa e burocrática. Mas essas observações não se aplicam uniformemente ao conjunto dos Municípios brasileiros, caracterizados, em verdade, pela heterogeneidade. Assim, pondera ARRETCHE, “se, por força da recuperação das bases federativas do Estado brasileiro, União, Estados e municípios passaram a ser autônomos e independentes no plano político-institucional, no plano econômico, social e administrativo, o Brasil é estruturalmente um país marcado por profundas desigualdades.”121

Nesse panorama, convivem, lado a lado, realidades diversas. De uma parte, Municípios cujos atributos estruturais lhes permitem inovar, alargando o campo das compe- tências de interesse local e assumindo a gestão de políticas sociais nacionais e estaduais des- centralizadas, e, de outra, localidades de baixa capacidade econômica, de expressiva depen- dência de transferências fiscais e de fraca tradição administrativa.

Os primeiros tendem a assumir comportamentos que retratam sua auto- suficiência em relação aos demais membros da Federação, revelando características do que CELSO DANIEL denominou “municipalismo autárquico”:

“Sob o discurso de que os problemas devem ser resolvidos pelo prefeito, porque acontecem no município, foi sendo fortalecido um sentido de auto- nomia e autogestão municipal que, no mais das vezes, faz com que os prefei- tos tenham muita dificuldade em voltar-se para problemas que são mais am- plos e que, portanto, não podem ser resolvidos exclusivamente no âmbito do seu território. Esta cultura municipalista dificulta muito o estabelecimento de relações horizontais de cooperação. ” 122

Os outros, não raro, adotam postura de submissão, especialmente em relação aos governos estaduais, mercê da alta dependência política e financeira das pequenas e das médias localidades frente a essa esfera de poder regional. Para ABRUCIO, tal controle pôde ser obtido pela distribuição mais eficaz de recursos, pela repartição de cargos da burocracia

cipal brasileiro no período entre 1980 e 2001’. Instituto Brasileiro de Administração Municipal (Série Estudos Especiais n° 20), p.9-10

120 TORRES, Marcelo de Figueiredo. Estado, democracia e administração pública no Brasil. p.86

121 ARRETCHE, Marta Teresa da Silva. Estado federativo e políticas sociais: determinantes da descentralização.

Rio de Janeiro: Revan; São Paulo: FAPESP, 2000 p.17

122 DANIEL, Celso. Autonomia municipal e as relações com os estados e a União. In: HOFMEISTER, Wilhelm

estadual (delegados de polícia, diretores regionais de estatais, diretores de escola etc.) e pelo estabelecimento de diferentes formas de convênios, envolvendo a construção de escolas, de hospitais, de estradas vicinais etc., isso tudo sem que haja estruturas político-administrativas intermediárias que congreguem os interesses das centenas de Municípios junto ao governo estadual. Os governadores, então, se aproveitam da fragmentação das demandas municipais para controlá-las, tendo diante de cada Município, enorme poder de influência.123

A falta de percepção dessas disparidades tem sido a responsável pela adoção de posturas diametralmente opostas em relação à factual situação dos Municípios no Brasil. Os “estadualistas” dizem que eles foram agraciados com recursos abundantes, mas não rece- beram encargos compatíveis124, já os “municipalistas” asseveram que os problemas munici- pais devem-se à escassez de recursos aliada ao excesso de atribuições.125