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DAS PELA LEI 11.107/

3.2 PREVISÃO CONSTITUCIONAL E REGULAMENTAÇÃO NORMA TIVA DOS CONSÓRCIOS PÚBLICOS

3.2.3 O Projeto de Lei 3.884/

Embora a Emenda Constitucional de que se cuida tenha sido promulgada em 1998, o mote da regulamentação só ganhou espaço na pauta das discussões políticas em 2003, quando o Governo Federal criou Grupo de Trabalho Interministerial para elaborar o referido projeto de lei. Ao fim dos trabalhos do Grupo, o Executivo enviou o Projeto de Lei 3.884, à Câmara dos Deputados em 30 de junho de 2004.

A aludida Proposta foi, desde a sua apresentação, objeto de severas críticas, baseadas especialmente em parecer elaborado por Miguel Reale, a pedido da Secretaria de Energia, Recursos Hídricos e Saneamento do Estado de São Paulo.176

Muitos dos pontos polêmicos do Projeto, que terminou por ser arquivado, como se verá adiante, constituíam inovações no modo de se pensar, no Brasil, os consórcios públicos, as quais vinham atender a reivindicações de entidades representativas de prefeitos

174 Exposição de Motivos n° 18, de 25 de junho de 2004, que acompanhou o Projeto de Lei 3.884/2004.

175 Veja-se, a exemplo, análise do Parecer SDO nº 515/2002, do Serviço de Desenvolvimento Organizacional da

Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais, referendado pelo Consultor Jurídico do Colegiado dos Secretários Municipais de Saúde de Minas Gerais, que conclui pela “impossibilidade de transferência das atividades de vigi- lância sanitária e serviço de controle e avaliação para um consórcio intermunicipal”.

176 Os debates em torno do Projeto de Lei, reputado inconstitucional, tiveram início após a divulgação do Parecer

elaborado por Miguel Reale. MARCHI, Carlos. ‘Parecer de Reale arrasa consórcios públicos’. O Estado de São Paulo, 4 de agosto de 2004, p.A6. No mesmo sentido, o artigo de Fernando Henrique Cardoso ‘De marcha à ré’. O Estado de São Paulo, 1 de agosto de 2004. Em defesa do Projeto, o Secretário Nacional de Saneamento Ambi- ental do Ministério das Cidades, Abelardo de Oliveira Filho rebate críticas de Fernando Henrique Cardoso: ‘Se- cretário rebate críticas de FHC a projeto’. OTTA, Lu Aiko. O Estado de São Paulo, 4 de agosto de 2004, p.A6

municipais preocupados com a precariedade dos instrumentos de consorciamento administra- tivo.

MIGUEL REALE destacou, em total desaprovação à medida, que os con- sórcios não se poderiam constituir como pessoas jurídicas, já que na tradição do Direito brasi- leiro essas entidades configurariam meros arranjos constituídos para executar determinado empreendimento, destituídos, portanto, de personalidade jurídica. Afirmou, também, que a medida criaria instituição jurídica anômala, capaz de alterar o sentido do federalismo brasilei- ro, já que promoveria a interferência da União em questões locais, afetando a autonomia de Estados e de Municípios. Argumentou, outrossim, que a constituição de consórcios públicos como entidades da Administração indireta poderia invadir a competência estadual de instituir regiões metropolitanas. Além disso, advertiu que aos consórcios estariam sendo conferidos poderes próprios dos entes federados, de modo a alterar o sentido do federalismo brasileiro. O jurista assim conclui sua avaliação: “Essa proposta legislativa viria constituir um poderoso instrumento de ação em conflito, como vimos, com várias disposições constitucionais, repre- sentando uma solução que manifestamente não se harmoniza com a tradição de nosso orde- namento jurídico”.177

Seguindo a mesma linha de argumentação, Fernando Henrique Cardoso rea- firmou que o Projeto de Lei governamental atribuía novo sentido à organização federativa, configurando claro retrocesso na tendência democrática de descentralização política em curso no país:

Embora não se tenha logrado uma redistribuição organizada de recursos e obrigações, a tendência até agora, pelo menos no papel, era a de avançar na descentralização e no respeito à autonomia dos Estados e municípios.

O projeto de lei em causa reverte isso. Os chamados ‘consórcios públicos’ passam a ser uma ‘associação pública’ (uma inovação) que junta dois ou mais entes da Federação e ganha o estatuto de pessoa jurídica de direito pú- blico, integrando a administração indireta dos entes associados. Resultado: a União poderá formar com um município qualquer, à revelia dos Estados e dos outros municípios (estes também poderiam, só que não dispõem dos re- cursos financeiros), uma nova entidade federativa, como se fossem uma au- tarquia ou uma sociedade de economia mista, e passará a canalizar recursos diretamente a ela.178

O deputado Walter Feldman também demonstrou preocupação com a possi- bilidade de o governo central estabelecer vínculos cooperativos diretamente com os Municí- pios, em detrimento da parcela de poder estadual:

O governo federal parece estar mais empenhado em criar novos problemas do que em sanar os já existentes. O que talvez se justifique pela idéia fixa de tecer um novo pacto federativo, criando uma espécie de linha direta entre o poder central e os municípios e alijando do processo cooperativo os gover- nos estaduais, que, ao menos na área de saneamento básico, são os maiores investidores. A aprovação do referido projeto de lei poderá dar início a uma

177 REALE. Miguel. Parecer sobre Consórcios Públicos.

política clientelista jamais vista no país, ao colocar de um lado a União (com polpudos recursos financeiros) e do outro os municípios (ávidos por investi- mentos). Além disso, é certo que sua aprovação desencadeará também uma série de questionamentos legais, já que ele fere claramente o princípio da au- tonomia dos entes federados, previsto na Constituição Federal de 1988.179 Em consideração às severas objeções que atingiram a proposição legislativa, o Executivo nacional, por meio do Ministério das Cidades, encaminhou consultas a renoma- dos juristas cujos pareceres, de modo similar, rejeitaram a tese da inconstitucionalidade.

Para DALMO DE ABREU DALLARI180, a proposta legislativa em comen- to não pode criar novo ente federativo, nem afetar a autonomia e as competências dos atuais, pois os consórcios nele previstos consubstanciam formas de descentralização administrativa, não compartilhando dos atributos essenciais às unidades da Federação (autonomia, competên- cias exclusivas definidas na Constituição e poder tributário).

A iniciativa do projeto de lei, segundo o jurista, tampouco se exclui da esfe- ra de competência da União, por estabelecer norma cogente a Estados e a Municípios, já que nenhum destes fica obrigado, nos termos da proposta legislativa, a integrar consórcio. Caso isso ocorra, por vontade própria, as unidades partícipes estarão apenas submetendo-se a regras de estruturação e de funcionamento, necessárias em qualquer organização.

Não é correto também afirmar, consoante DALLARI, que o projeto é in- constitucional por introduzir, no ordenamento nacional, regra centralizadora, contrária ao fe- deralismo, admitindo-se a participação da União nos consórcios. O abuso decorrente da supe- rioridade de poder, caso ocorra, será a expressão de situação de fato, contrária à lei e por ela não autorizada. Ao invés – conclui o jurista – as regras de organização e funcionamento dos consórcios públicos criam empecilhos legais à redução das autonomias.181

Finalmente, para DALLARI, a participação em consórcios públicos de Mu- nicípios integrantes de Regiões Metropolitanas não é inconstitucional. “A instituição de Regi- ões Metropolitanas pelos Estados tem caráter genérico, objetivando a organização e o plane- jamento integrados, para execução de funções públicas de interesse comum, de Municípios limítrofes situados no mesmo Estado”. Trata-se de medida de “racionalização administrativa”, que não comporta a gestão associada de serviços públicos nem autoriza a transferência de encargos, de serviços, de pessoal e de bens.

Da mesma forma, FLORIANO DE AZEVEDO MARQUES NETO, após render justas homenagens ao Professor Reale, refuta-lhe os argumentos que concluíam pela inconstitucionalidade do projeto de lei182, advogando ademais a possibilidade de os consór- cios públicos constituírem-se como pessoas jurídicas, por ilação do artigo 241 da Constituição e afirmando ser a prescrição constante da Lei das Sociedades Anônimas “absolutamente irre- levante para a matéria”, por constituir exceção à lógica da conjugação associativa:

179 FELDMAN. ‘Consórcio intermunicipal’. Diário do Grande ABC, 13/08/2004 180 DALLARI. Parecer. São Paulo, 14/01/2005

181 No mesmo sentido, a posição de FLORIANO DE AZEVEDO MARQUES NETO. Parecer. p.67 182 MARQUES NETO. Parecer. São Paulo, 08/03/2005. p.65-70

A reunião de esforços e capacidades entre pessoas jurídicas em torno de um objetivo comum tende a ter por conseqüência a constituição de uma sociedade. Daí porque no direito societário (...), justamente porque seria natural a personificação do ente consorcial, preocupou-se o legislador (cf. artigo 278 da Lei 6.404/76) em explicitar que o consórcio no direito societário não implicaria a criação de nova pessoa jurídica. Fosse natural a despersona- lização e não seria necessário ter o legislador isso determinado.183

Contudo, as criticas ao projeto foram contundentes no sentido de que a cria- ção de personalidade jurídica de direito público para o consórcio feriria o pacto federativo.

Nesse sentido registra-se editorial do jornal O Estado de São Paulo:

Domingo e ontem, este jornal publicou dois artigos que contêm, cada qual de seu ângulo, seriíssimas advertências sobre o que o autor do primeiro deles, o ex-presidente Fernando Henrique, chamou ‘marcha à ré’ e ‘direita, volver!’, nas relações institucionais entre os entes federados no Brasil, e sobre o que o autor do segundo, o governador da Bahia, Paulo Souto, identificou como a intenção de ‘alijar’ os Estados da execução e gestão na nova Política Nacio- nal de Saneamento Ambiental. A leitura dos dois textos deixa claro que o governo Lula se prepara para devolver ao poder central, isto é, a si, o domí- nio que o regime militar exercia sobre Estados e Municípios. (...) Essa (...) é a essência do projeto que prevê a criação de ‘consórcios públicos’.184

A mesma tônica discursiva predominou no Congresso Nacional. Os debates parlamentares em torno do extenso e detalhado Projeto de Lei 3.884/2004 conduziram à reali- zação de acordo político que resultou no seu arquivamento, com o aproveitamento de alguns de seus conceitos, transpostos a outra proposição já aprovada pela Câmara dos Deputados e em tramitação perante o Senado Federal. Assim, o Projeto de Lei 1.071/1999, de autoria do Deputado Rafael Guerra, mais conciso, deu origem à Lei 11.107/2005.

3.2.4. A Lei 11.107/2005

Em 6 de abril de 2.005, promulgou-se a Lei 11.107/2005, que “dispõe sobre normas gerais de contratação de consórcios públicos e dá outras providências”, com o objeti- vo de se regulamentar o artigo 241 da CRFB/88.

A Lei não gera obrigatoriedade às entidades anteriormente constituídas nem impõe a sua normatização a novas associações, posto que não exclui a possibilidade de agre- miação consorcial despersonalizada, por exemplo. A adesão ao regramento legal é voluntária. A cooperação entre entes federativos pode concretizar-se de diversas for- mas, e a Lei de Consórcios Públicos constitui apenas uma delas, sem prejuízo de outras já existentes. É o que se depreende da leitura do artigo 19 da norma em comento:

Art. 19. O disposto nesta Lei não se aplica aos convênios de cooperação, contratos de programa para gestão associada de serviços públicos ou instru-

183 Ibidem, nota 21, p.12-13

mentos congêneres, que tenham sido celebrados anteriormente a sua vigên- cia.