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3.3. IMERSÃO TEÓRICA, METODOLÓGICA E ANALÍTICA

3.3.1 Performatividade na construção das identidades

Não sendo a identidade uma categoria central do nosso trabalho, consideramos importante fazer algumas reflexões sobre a problemática da identidade, na medida em que, face às exigências da performatividade, refletidas na formação continuada dos gestores, a identidade profissional tende a reconstruir-se. A assunção de novos papéis atribuídos e a sua interiorização e aceitação por parte dos gestores passa a fazer parte da sua profissionalidade, reconfigurando, assim, a sua identidade. Tomamos Claude Dubar como referência teórica fundamental para esta reflexão.

Nessa proposta de mudanças na apresentação do trabalho do professor, estes são “encorajados a refletir sobre si próprios como indivíduos, que fazem cálculos sobre si próprios, ‘acrescentam valor’ a si próprios, aumentam a sua produtividade, vivem uma existência baseada em cálculo.” (BALL, 2002, p. 5-6). Esse autor apresenta o gestor escolar como um ator relativamente novo, no palco das organizações do setor público e maior beneficiário dessas reformas que têm por finalidade oferecer uma liberdade, supostamente maior, em decisões operacionais.

Nova propositura de ação exige dos gestores falarem de si e dos outros, pois são responsáveis por recursos humanos que precisam ser geridos, e por isso torna-se necessário repensar suas maneiras de agir e de se relacionar (BALL, 2002). Conforme definido por Robertson (1996, p. 33), “o desempenho substitui o empenhamento.” Assim, novos papéis e subjetividades são criados, à medida que estão sujeitos a avaliações e comparações de seus desempenhos.

Esse novo modelo de formação pressupõe a introdução de novos sistemas éticos baseados nos interesses institucionais, pragmáticos e de valores performativos. Aqui prevalecem elementos paradoxais, pois ao mesmo tempo em que as responsabilidades de gestão são delegadas e a iniciativa e capacidade de resolver problemas são valorizadas, são implantadas formas de vigilância e automonitorização por meio de avaliação, definição de metas, comparações de rendimento, que deverão se constituir numa dimensão social e interpessoal. (BALL, 2002)

Tais possibilidades de ação podem exigir que o professor/gestor se transforme em algo diferente do que anteriormente foi. E esse “refazer” carrega consigo um

potencial para a inautenticidade. Dessa forma, o ato de ensinar e a subjetividade estão profundamente alterados por essa nova visão de gestão e das novas formas de controle. (BALL, 2002). Assim,

Dois efeitos, aparentemente em conflito, são conseguidos: um aumento da individualização, incluindo a destruição de solidariedades baseadas numa identidade profissional comum e a filiação em sindicatos, contra a construção de novas formas institucionais de filiação e ‘comunidade’, baseada numa cultura de empresa. (BALL, 2002, p. 9)

Ainda nas palavras de Ball (2002, p. 12), “um tipo diferente de esquizofrenia é vivido por professores individualmente, sendo o compromisso e a entrega, o julgamento e autenticidade, dentro da prática, sacrificados pela impressão e desempenho”, para responder às exigências institucionais. Isto pode exigir fabricações de um modo de agir que pressupõe a desistência da autenticidade e do empenho, num investimento à plasticidade para que esta fabricação seja seguida na vida prática.

Hannah Arendt (2001) coloca a modernidade como um tempo em que ocorre a vitória do animal laborans, do trabalhador que passa a ser “fabricado” também em sua subjetividade. As mudanças que vêm ocorrendo no mundo do trabalho geram impactos, alteram de forma significativa relações de toda ordem e exigem flexibilidade nas identidades e projetos de vida, sejam eles pessoais ou profissionais, que muitas vezes podem ser apontados como elementos geradores de desconforto existencial.

Isso posto, parece-nos plausível que os gestores escolares estejam vulneráveis a vivenciar possíveis crises de identidade, o que, segundo Dubar (2006, p.14), corresponde a uma

fase difícil vivida por um grupo ou um indivíduo. Mais precisamente, esta acepção da palavra crise remete para a ideia duma «ruptura de equilíbrio entre diversas componentes». À semelhança das crises econômicas, as crises de identidade podem ser pensadas como perturbações de relações relativamente estáveis entre elementos estruturantes da atividade (produção e consumo, investimentos e resultados, etc.). A atividade aqui posta em causa é a identificação, isto é, o fato de categorizar os outros e si próprio.

Em seus estudos, Dubar (2005, 2006) trabalha com a ideia de identidade como “forma identitária.” O autor aborda a dimensão sociológica da construção de identidade entendida como o resultado de um processo não só interno do indivíduo, mas também

como resultado das interações vividas por ele ao longo de seu processo de socialização. Nesta perspectiva, o autor assume a concepção filosófica nominalista/existencialista para definir identidade. Como bem disse Heráclito40: “Não se pode tomar banho duas vezes no mesmo rio, tudo flui e não há essências eternas, pois tudo é submetido à

mudança.”

A identidade é “[...] resultado a um só tempo estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, que, conjuntamente, constroem os indivíduos e definem as instituições.” (DUBAR, 2005 p. 136). Depende sempre da época considerada, do ponto de vista adotado.

[...] a identidade não é aquilo que permanece necessariamente «idêntico», mas o resultado duma «identificação» contingente. É o resultado duma dupla operação linguística: diferenciação e generalização. A primeira visa definir a diferença, aquilo que faz a singularidade de alguém ou de alguma coisa em relação a uma outra coisa ou a outro alguém: a identidade é a diferença. A segunda é aquela que procura definir o ponto comum a uma classe de elementos todos diferentes dum outro mesmo: identidade é pertença comum. Estas duas operações estão na origem do paradoxo da Identidade: aquilo que existe de único e aquilo que é partilhado [...]. (DUBAR, 2006 p. 8-9)

Na base da noção de formas identitárias está a relação entre dois processos de identificação: as identificações atribuídas pelos outros, “identificações para Outro,” e as identificações reivindicadas por si próprio, “identidades para Si,” que constituem sistemas de designação, historicamente variáveis, religando as identificações por e para o Outro e as identificações por e para Si em categorizações que podem coincidir ou divergir. O processo biográfico engendra a identidade para Si (o que o indivíduo diz de si mesmo, o que pensa ser, ou gostaria de ser) e o processo relacional forja a identidade para Outro (quem o outro diz que eu sou, a identidade que o outro me atribui). (DUBAR, 2005, p.142)

Nesse processo articulado ocorre a atribuição de papéis pelo outro, a interiorização por meio da aceitação e vivência do papel atribuído e a incorporação, quando esse papel passa a fazer parte da identidade social-profissional do indivíduo. (DUBAR, 2005). Afirma o autor:

40

HERÁCLITO. Os pensadores originários. Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Traduções de Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski. 4. ed. Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2005, p .92.

A identidade social não é “transmitida” por uma geração à seguinte, cada geração a constrói, com base nas categorias e nas posições herdadas da geração precedente, mas também através das estratégias identitárias desenvolvidas nas instituições pelas quais os indivíduos passam e que eles contribuem para transformar realmente. Essa construção identitária adquire uma importância particular no campo do trabalho, do emprego e da formação, que conquistou uma grande legitimidade para o reconhecimento da identidade social e para a atribuição dos status sociais. (DUBAR, 2005 p. 136)

O trabalho constitui espaço para a ocorrência dessas negociações identitárias, as quais darão origem à estrutura de identidade profissional. Nas discussões de Dubar (2006, p.85) “as identidades profissionais são maneiras socialmente reconhecidas para os indivíduos se identificarem uns aos outros, no campo do trabalho e do emprego.” E sobre o papel do emprego e da formação na construção da identidade social, o autor destaca como se dá a inserção da dimensão profissional na construção da identidade social:

Ente as múltiplas dimensões da identidade dos indivíduos, a dimensão profissional adquiriu uma importância particular. Por ter se tornado um bem raro, o emprego condiciona a construção das identidades sociais; por passar por mudanças impressionantes, o trabalho obriga a transformações identitárias delicadas; por acompanhar cada vez mais todas as modificações do trabalho e do emprego, a formação intervém nas dinâmicas identitárias por muito tempo além do escolar. (DUBAR, 2005, p. 26)

No exercício da profissão, a disputa pelo poder em contexto de acesso desigual caracteriza as relações de trabalho e dá origem aos diferentes tipos de identidades: (a) Identidade do “distanciamento” para combinar as escolhas individuais com estratégias de oposição; (b) Identidade “fusional”, que combina as eleições coletivas com estratégias de aliança; (c) Identidade “negociatória”, que combina polarização no grupo com estratégias de oposição e (d) Identidade “afinitária”, para combinar as escolhas individuais com estratégias de aliança. (DUBAR, 2005)

Para Dubar (2005), as formas identitárias se caracterizam pela elucidação das formas de identificação socialmente pertinentes em uma determinada esfera de ação, a partir do estudo de suas dimensões relacionais e biográficas. Aparece então a concepção de ator como aquele que se define, ao mesmo tempo, pela estrutura de sua ação e pela sua formação profissional, em um determinado contexto. Desta forma, a profissão tem grande importância na construção da identidade dos indivíduos.

Associadas à identidade estão as motivações, os interesses, as expectativas, as atitudes, que exercem influências nas perspectivas perante a formação do professor e as formas de atuação profissional (GATTI, 1996). A intersecção entre construção idiossincrática e interações sociais “define um modo de ser no mundo, num dado momento, numa dada cultura e história.” (GATTI, 1996, p. 86)

Ao mesmo tempo em que a ancoragem do ser humano no seu contexto histórico não exclui possíveis resistências às formas de controle dos corpos e da alma, na sociedade disciplinar capitalista, mesmo privado de liberdade, o homem é livre enquanto produtor de sentidos e enquanto possibilidade viva de transformação das condições de opressão. (FERNANDES; TAVARES, 2010)

Essa ideia de que o homem seja livre para fazer suas escolhas, mesmo em situações de vulnerabilidade na relação de trabalho, apresenta-se como possível alternativa de ação para os gestores da educação numa tentativa de romper com aquilo que está posto e participar ativamente de seus destinos.