• Nenhum resultado encontrado

3. PERSPECTIVAS TEÓRICO METODOLÓGICAS

3.3 Midiatização e a renovada configuração de sujeito comunicante

3.3.1 Perspectivas para pensar o sujeito comunicante

Nossa pesquisa tem o âmbito do sujeito comunicante como um dos eixos da problemática no qual, especificamente, tem-se o objetivo de entender os usos e as apropriações dos inscritos no canal Porta dos Fundos no YouTube, em relação aos sentidos ofertados pelos VPFY, que apresentam marcas de forma incomum.

A pesquisa TIC Domicílios 2018 indica que 70% da população brasileira usa a internet – o que representa 126,9 milhões de pessoas (CETIC, 2019). Segundo o estudo Digital in 2017 Global Overview,46 no que se refere aos usos, metade da população brasileira acessa a internet por dispositivos móveis e 58% dos brasileiros utilizam redes sociais. Gasta-se em média, 8h56m diárias conectadas, 3h43m nas redes sociais. A mesma pesquisa mostra que a porcentagem de uso das cinco mídias sociais mais utilizadas no Brasil são de 63% para o YouTube, 62% para o Facebook, 40% para o Instagram, 38% para G+ e 36% para o Twitter. Isso também se reflete quanto ao comércio eletrônico já que 58% dos brasileiros pesquisam sobre produtos na internet e 60 milhões de brasileiros já compraram via internet, sendo que 26% já compraram pelo celular. O ticket médio de compra em comércios na internet, em 2016, foi de $274 dólares.

Esses dados reforçam a pertinência da pesquisa sobre a publicidade na Internet, sobretudo quando presentes em conteúdos disseminados em redes sociais, como é o caso dos VPFY. Além disso, nos dão indícios de o quanto os hábitos de consumo da comunicação estão se modificando e, com isso, configurando as relações e a produção de sentido dos sujeitos.

Os estudos que buscam entender as relações entre os meios e as audiências têm uma longa trajetória e diversas vertentes teóricas. Autores da área concordam que as principais correntes são: pesquisa dos efeitos, pesquisa dos usos e gratificações, estudos de crítica literária, estudos culturais e estudos de “recepção”. (LOPES, 2000).

Para compreendermos a evolução na forma de olhar os sujeitos comunicantes, é importante revisitarmos a teoria da recepção de Martín-Barbero, uma vez que compartilhamos da ideia de que esta teoria deve ser entendida “como uma perspectiva de investigação e não uma área de pesquisa sobre mais um dos componentes do processo de comunicação, neste caso, a audiência. Trata-se de uma tentativa de superação dos impasses que têm nos levado a investigação fragmentada e, portanto, redutora do processo de comunicação em áreas autônomas de análise: da produção, da mensagem, do meio e da audiência.” (LOPES, 2014, p.68). Na presente pesquisa, a “recepção” é entendida como perspectiva teórica integradora do processo comunicacional e como momento privilegiado da produção de sentido.

Lopes (2014) faz um resgate das modificações que o mapa das mediações de Martin-Barbero foi tendo ao longo do tempo. A autora afirma que não existe uma definição única de mediação, já que esta noção acompanha as mudanças da sociedade no que diz respeito ao papel da comunicação.

Ao apresentar o primeiro mapa metodológico das mediações, afirma que naquele momento, finais dos anos 80 do século XX, Martín-Barbero entende que o foco da pesquisa em comunicação deve ser a partir da cultura. Ele propõe o estudo das mediações culturais da comunicação. “No centro do mapa estão as mediações constitutivas: comunicação, cultura e política que remetem a dois eixos: o diacrônico ou histórico, entre matrizes culturais e formatos industriais; e o sincrônico entre lógica da produção e competências da recepção ou consumo cultural.” (LOPES, 2014, p.70)

No segundo mapa, já percebemos a necessidade de imposição de uma articulação entre produtores, mídia, mensagens, receptores e cultura. A mediação, aqui, leva em conta que para entender as relações entre os sujeitos e meios, é preciso analisar as articulações entre as práticas de comunicação e lógicas sociais, observar as diferentes temporalidades e a pluralidade de matrizes culturais. Ou seja, a sua proposta, neste segundo mapa, parte do princípio de que, para entender o processo de comunicação, não podemos nos concentrar apenas no estudo dos meios, mas também e, principalmente, na produção de sentidos realizada pela audiência e nas suas dimensões configuradoras.

A importância desse mapa está em reconhecer que a comunicação está mediando todas as formas da vida cultural e política da sociedade. Portanto, o olhar não se inverte no sentido de ir dos meios para as mediações e nem das mediações aos meios, senão para ver a complexa teia de múltiplas mediações. (LOPES, 2014, p.72).

A partir dessa perspectiva, embora os criadores dos vídeos do Porta dos Fundos tenham uma intenção ao ofertar o conteúdo publicitário em seus produtos audiovisuais, isso não é o único fator determinante para que os sujeitos entendam o que foi ofertado, pois sua produção de sentido é configurada por diversas mediações. Nessa proposta, o meio não é entendido, então, como o detentor do poder absoluto no processo de comunicação e nem os sujeitos como mero depositório de mensagens. Os sujeitos são aqui entendidos como produtores de sentido. Ainda, neste segundo mapa, é importante destacar que o autor assume que modificou a forma de olhar para a comunicação.

Não era fazer o caminho contrário de ir das mediações aos meios, mas assumir que a comunicação se modificou a partir da institucionalidade da tecnicidade. É preciso pensar, agora, nas mediações comunicativas da cultura. Cultura que ultrapassa seus produtos, mas envolve sociedade e política. (LOPES, 2009). Existia antes uma identidade da comunicação vinculada aos meios e agora ela ocorre “Na interação que possibilita a interface de todos os sentidos, portanto, é uma “intermedialidade”, um conceito para pensar a hibridação das linguagens e dos meios. (LOPES, 2009, p.153)

Bonin (2018) revisita a obra de Martín-Barbero, Dos meios às Mediações, buscando destacar a relevância dessa proposta para pensarmos as práticas e fenômenos digitais. A autora destaca cinco aspectos trabalhados pelo autor, que permearam a pesquisa em recepção nos últimos anos, e que de alguma forma precisam ser atualizados nas pesquisas no âmbito digital.

A comunicação é um processo complexo e multidimensional e a recepção uma das dimensões ou instâncias componentes deste processo. Pensar a comunicação, nesta perspectiva, inclui considerar que suas instâncias (produção, produto, recepção) se inter-relacionam complexamente, em vínculos que se constituem – e só podem ser inteligíveis – historicamente. (BONIN, 2018, p.61).

comunicacional são interdependentes e inter-relacionadas e, tendo em vista o ambiente digital em que está inserida, a complexidade das instâncias é um dos pontos que devemos considerar, porque existe a possibilidade de produção e produto estarem em parte na instância da recepção. Entretanto, não podemos deixar de considerar que uma boa parte dos sujeitos consome os vídeos do YouTube e não fazem parte da produção ou do produto. Assim, mesmo em vídeos disponibilizados no YouTube, que tem uma característica mais flexível de produção, ainda é interessante observarmos as diferentes instâncias, atentando para o fato da digitalização, que configura e transforma a produção de sentidos.

Os processos comunicacionais se realizam em contextos históricos concretos – sendo constituídos e constituintes destes contextos. Na visão do autor, os processos de comunicação, e, em específico, aqueles relativos à recepção, não se realizam fora, mas estão atravessados por dimensões socioculturais, políticas e econômicas históricas (entre outras) que marcam, configuram, matriciam – de diferentes formas, no concreto das realidades em que se inserem – estes processos, sendo parte das lógicas de sua inteligibilidade. (BONIN, p.62, 2018)

Seguindo esta perspectiva, entendemos que tanto os vídeos do Porta dos Fundos, que apresentam publicidade de forma incomum, quanto os sujeitos inscritos no canal, estão atravessados por diferentes dimensões socioculturais, políticas, econômicas e históricas não havendo, assim, uma produção única de sentidos e sim diversas, que são transformadas a partir da historicidade dos sujeitos inscritos. Mesmo em um ambiente de digitalização, que complexifica o processo, entendemos que a diversificação de perfil e realidades socioculturais, políticas, econômicas e históricas dos participantes é essencial para compreendermos o que configura e atravessa sua produção de sentido. Ao encontro disso, está a próxima premissa do autor refletida por Bonin (2018).

Os sujeitos partícipes dos processos comunicacionais são multidimensional e multicontextualmente constituídos – e estes múltiplos contextos e dimensões vividos por eles são configuradoras de suas culturas, de suas subjetividades e marcam seus processos de produção de significações. (p.62)

Mesmo fazendo parte de um mesmo contexto macro sociocultural, político, econômico e histórico, a experiência individual de cada sujeito, inserido

neste contexto, faz parte da sua inteligibilidade em relação à produção do Porta dos Fundos e da publicidade inserida nela. Estes inscritos no canal são parte constituinte do processo de comunicação. Mesmo com a abertura e flexibilidade do YouTube em relação às produções, sabemos que os vídeos do Porta dos Fundos têm uma intencionalidade na produção; mas a produção de sentido dos inscritos nesse canal são múltiplas e complexas. “As produções de sentido no universo da recepção são múltiplas, complexas, podendo apresentar afinidades, cumplicidades, contradições, ambiguidades, resistências, apropriações e mesmo subversões em relação às ofertas simbólicas midiáticas.” (BONIN, p.63, 2018).

As produções do Porta dos Fundos, que apresentam publicidade incomum e os inscritos no canal do coletivo de humor no YouTube, são parte de uma problemática de pesquisa complexa e configurada por um ambiente digital e midiatizado. Ao encontro disso, a quinta premissa de Martín Barbero, refletida por Bonin (2018, p.64) se faz ainda mais atual e necessária na pesquisa de comunicação. “A necessidade de produzir teorias e métodos para as problemáticas investigadas e em afinidade com os contextos concretos investigados.”

Na pesquisa aqui empreendida, vários movimentos e esforços foram arquitetados, em termos teóricos e metodológicos para entender as rupturas presentes na publicidade presente nos Vídeos do Porta dos Fundos. No próximo capítulo explicitamos o processo metodológico que foi sendo construído nos embates entre as dimensoes empírica e o teórica. Compreender a produção de vídeos de humor, disponibilizados no YouTube, com publicidade incomum, bem como a produção de sentido de diferentes inscritos no canal exigiu um esforço de criação e combinação de estratégias de coleta e análise de dados, bem como de compreensão teórica que desse conta de diferentes instâncias comunicacionais.

Ao refletir sobre esses aspectos na pesquisa que envolve os sujeitos, Bonin retoma estes pontos a partir de pesquisas que trabalham o contexto da digitalização e destaca a relevância da proposta epistemológica do autor, repensada e trabalhada para tal contexto.

As próprias releituras feitas por Martín Barbero de sua obra, reconhecendo a tecnicidade como dimensão estrutural, alimentaram nossas reformulações no modo de perspectivar as mediações e assumir os processos midiáticos como foco central. No âmbito dos sujeitos, as dimensões mediadoras dos processos de recepção que investigamos foram sendo reconhecidas como simultaneamente atravessadas e matriciadas (de modos desiguais, a depender das experiências concretas) pelos processos de midiatização constituídos nas suas trajetórias de vida. (BONIN, p.12, 2018)

A proposta de Certeau (1994) também traz elementos importantes para a compreensão do processo de “recepção”. O autor aponta que os usuários de produtos midiáticos, como os televisivos, se apropriam ativamente das mensagens oferecidas e produzem sentidos com aquilo que recebem. Mas o autor vai além afirmando que, a partir das práticas cotidianas, os sujeitos se reapropriam dos produtos massivos e, com isso, fabricam outros sentidos diferentes daqueles que eram a intenção da produção.

Com isso, mesmo recebendo algo que vem da posição dominante, ou seja, dos meios de comunicação de massa, o sujeito fabrica algo próprio. Embora não se possa notar como produto, a fabricação é percebida na forma com que esses sujeitos empregam os produtos, ou seja, na apropriação. Certeau reflete ainda sobre o caráter tático das práticas dos sujeitos, principalmente da cultura popular, uma vez que elas não possuem um espaço próprio de produção. Ou seja, por meio de táticas oriundas de sua experiência cotidiana, esses sujeitos fabricam novos sentidos para a mensagem recebida; além disso, produzem conteúdos e os disponibilizam nos espaços virtuais, seguindo uma lógica atravessada pelos meios e suas configurações.

As reflexões do autor se deram em torno de meios massivos de comunicação, como o rádio e a TV. Mas, mesmo a internet sendo mais flexível e apontando para um acesso mais democratizado, tendo o YouTube como um espaço que teoricamente coloca a produção ao acesso de todos os sujeitos, consideramos que a ideia de apropriação ainda é pertinente nesse espaço, tendo um potencial de exposição maior.

Na pesquisa, seguimos tais perspectivas, considerando que os usos, as apropriações e os sentidos que os espectadores dos VPFY estão ligados a sua situação sociocultural e aos seus repertórios culturais, e que, nesses usos, podem se instituir operações de apropriação, negociações e recusas. Levando

em conta que o produto que faz parte da problemática proposta, ou seja, os VPFY, tem a lógica de produção própria da internet, sendo disponibilizados no YouTube e compartilhados pelos sujeitos em redes sociais, cabe também, ter a pesquisa proposta como espaço de reflexão sobre os sujeitos e cidadãos comunicantes deste tipo de produto. Ao criar um novo produto a partir dos vídeos, percebemos as táticas apontadas por Certeau. As mídias sociais oferecem estes espaços, embora limitados, de criação e exposição dessas táticas.

Buscando avançar na proposta de estudar os processos comunicacionais, Maldonado (2013) argumenta que os meios de comunicação digitais reconfiguram e transformam os padrões culturais. Embora os sistema e meios de comunicação hegemônicos continuem a permear boa parte da audiência, as formas de comunicação digital permitem o desenvolvimento de produções independentes, que muitas vezes subvertem a lógica do lucro ransformando, assim, a relação dos sujeitos com as mídias.

Existe a necessidade de pensarmos no caráter dos agentes sociais participantes dos processos comunicacionais, neste contexto. Eles se configuram como públicos dos sistemas midiáticos ou como comunicadores socioculturais no atual sistema? É necessário aprofundar a problemática do sujeito comunicante. Nos estudos de recepção, já se assumia que o receptor não era passivo, mas também produtor. Entretanto os termos receptor, consumidor, usuários e massa são concepções instrumentais, funcionalistas, estruturais, tecnicistas e mercadológicas. (MALDONADO, 2017).

Os sujeitos comunicantes ou as pessoas em comunicação produzem sentido de maneira fluída, caótica, estruturada, condicionada, livre, pactuada, enquadrada e subversiva. A maioria dos processos está em confrontação com os sistemas midiáticos estabelecidos. Os fluxos de comunicação são atômicos, as pessoas migram circulam e se transferem. O digital permite o comunicador-produtor. Não que fossem passivos, mas com o digital os sujeitos vão dando continuidade a suas culturas midiáticas históricas. Assim, combinam possibilidades de experimentação permitidas pelo digital. (MALDONADO, 2017, p.93).

As condições de produção simbólica se transformaram. As formas de circulação quebraram o domínio das mídias hegemônicas. O YouTube é uma plataforma que revoluciona o acesso e compartilhamento de conteúdo. Mas isso não quer dizer que não exista controle e vigilâncias, porque mesmo o YouTube,

tem suas limitações e mecanismos de vigilância. Podemos dizer que vivemos um momento de socialização da experimentação. Os sujeitos receptores em comunicação mudaram suas competências, suas características, seus hábitos e seus esquemas operacionais. (MALDONADO, 2017).

Vivemos hoje, uma renovada configuração onde os sujeitos são produtores de informação e comunicação, além dos enquadramentos conservadores. (MALDONADO, 2017). Neste sentido, entendemos que um canal do YouTube, não substitui outros meios de comunicação, mas complementa e oferece novas ofertas midiáticas, por meio de seus usos e significações.

Alinhados com a perspectiva de Maldonado (2013, 2017) assumimos nessa tese a expressão inscritos em comunicação, para nos referir aos participantes da pesquisa. Levando em conta que não são receptores, ou produtores de sentido, ou produtores de conteúdo, mas tudo isso de maneira complexa e atravessada por um contexto digital midiatizado.